Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 13, 2008

DANIEL PISA

Metamorfose dissimulante


A melhor história que conheço sobre mudar de opinião é a do economista John Maynard Keynes, conhecido no Brasil como inspirador do desenvolvimentismo, de gastos públicos para superar períodos ruins, mas que foi um dos principais articuladores no pós-Guerra de instituições como o FMI, besta-fera da ''''esquerda'''' latino-americana. Um dia lhe observaram que, quando os fatos mudavam, ele sempre mudava de opinião. Keynes respondeu: ''''E você faz o quê?'''' Isso, no entanto, não significa que Keynes diria ser uma metamorfose ambulante. Há uma diferença enorme e fundamental entre as posturas.

A expressão, como se sabe, foi inventada por Raul Seixas, cuja canção vi outro dia na TV interpretada por Lobão. É meio pleonástica, porque metamorfose já implica movimento, mas pode ser entendida como ''''metamorfose bípede'''', já que o alvo de Raul (no caso, sem Paulo Coelho) são os seres humanos que mantêm ''''a mesma velha opinião formada sobre tudo''''. Eu diria que essa mesma opinião sobre tudo não é formada, não é trabalhada, mas em geral herdada, repetida do que se ouviu de pais ou professores ou amigos. Bem, 99% das opiniões são assim. Foram ouvidas em algum lugar antes e replicadas sem muito filtro nem esforço. A mesmice vem da falta de informação, preguiça e/ou coragem.

O próprio Raul serve de exemplo. Apesar de ter experimentado todos os gêneros musicais, do brega ao rock, ele morreu pensando as mesmas coisas que pensava na adolescência. No programa de TV, apareceu dizendo que sempre foi ''''maldito'''' porque ouvia Elvis Presley e seus familiares o criticavam por isso. Quando começou sua carreira, Elvis já estava longe de ser um perturbador da ordem... e talvez isso explique que o rock de Raul, interessante como era, nunca tenha ido além da balada. Sua crença numa ''''sociedade alternativa'''' também nunca foi abalada. De qualquer modo, ele era um artista e não dá para cobrar suas canções como tratados filosóficos, ainda que alguns as considerem.

Os obituários gostam de exaltar a ''''coerência'''' dessas personalidades, como quando Luiz Carlos Prestes morreu e não houve texto que não o chamasse de ''''coerente'''' por ter sido comunista stalinista a vida toda. O Muro de Berlim caindo, e Prestes lá com sua velha opinião coerente sobre tudo... Coerência é essencial, mas principalmente para que um conjunto de valores não se torne um sistema fechado, impermeável à realidade mutante. No site Edge (www.edge.org), por sinal, há no momento uma enquete com cientistas sobre que opinião mudaram em sua carreira. Mas a formulação da pergunta faz questão de acrescentar: depois que ''''fatos e dados'''' os levaram a tanto.

Aqui no Brasil a grande guinada de idéias recente teria sido a de Lula e do PT, que teria ''''amadurecido'''' com a democracia brasileira de 1985 para cá, a tal ponto que Lula só foi eleito na quarta ocasião justamente quando, entre outros, parou de criticar - ora, veja - o FMI, com quem logo tratou de quitar os débitos integralmente, para grande satisfação do mercado financeiro. Longe da imagem de radical, Lula virou ''''Lulinha paz & amor'''', jurou cumprir contratos, seguiu as linhas básicas da política econômica do segundo mandato do antecessor (câmbio livre, juros reais altos para conter inflação, superávit fiscal com aumento contínuo de impostos), declarou não ser mais ''''de esquerda'''' e, claro, se justificou com a frase de Raul Seixas.

Em termos práticos, essa mudança teve benefícios. Quem criticava o PT por sua visão nacionalista, estatizante e antiquada hoje comemora - com certa dose de ilusão - os resultados econômicos de seu governo. Os que defendiam o PT, como os buldogues do ''''socialismo democrático'''' pregado por professores da USP, hoje se escondem em cinismo - já até vi alguns festejando recordes da Bovespa! - ou então estrilam contra o governo pelas razões erradas. Daí a confusão mental do momento, em que velhas opiniões como ''''direita é pelo lucro, esquerda é pelo social'''' resistem por falta de opção, pois ninguém parece ter idéias novas. Hoje fulano vira casaca com a mesma rapidez com que um jogador de futebol beija o escudo do time que acabou de contratá-lo.

Tal confusão tem suas vantagens, porque ao menos enterra alguns clichês (como ''''a moratória é a única saída para os países dependentes''''). E não foi apenas a mudança de Lula e PT que gerou esse estado caótico, sem diferenças aparentes. Mas ajudou, e muito. A deflexão se deu sem reflexão; a metamorfose não foi produto de uma revisão orgânica; a conversão teve impulso eleitoreiro, oportunista, auto-interessado, dissimulado de suas verdadeiras intenções, dissociado da observação de fatos (como o dinamismo da economia digital). Isso é da política, claro. Mas o debate na sociedade precisa ir além. O trabalho da opinião é despir essa camuflagem, é não se render às formas e cores propostas por ela. Mudar de opinião é fácil; difícil é sustentá-la sobre dois pés.

TERCEIRA CULTURA

Há muitas respostas interessantes à pergunta do Edge. Destaco a de Nicholas A. Kristakis, médico e cientista social de Harvard, emblema de algo que sempre comento aqui que é a reaproximação de ciências naturais e humanas. Ele diz que cultura e biologia interagem profundamente, inclusive no plano genético. Nosso genoma segue em evolução e se alterou muito nos últimos 10 mil anos, o que, em termos de escala natural, é um tempo brevíssimo. Logo, hábitos culturais facilitam adaptações a mudanças naturais, embora causadas por mutações que não podemos prever. Esse tema reaparece em vários textos, como os de Steven Pinker e Daniel Dennett: ''''Neurônios são biomáquinas profundamente distintas de componentes de computador em muitos aspectos.''''

Outro depoimento muito interessante é o de Ernst Põppel, neurocientista da Universidade de Munique, que discorda da frase de Wittgenstein: ''''O limite da minha linguagem é o limite do meu mundo.'''' Põppel diz que a linguagem não é essa armadilha, essa camisa-de-força, porque há conceitos que dominamos intuitivamente, antes das palavras, e que assimilam características reais do mundo externo. Wittgenstein não via a linguagem apenas como um sistema de palavras, e Põppel chega a escrever que ''''em nossa pesquisa somos mal conduzidos pelas palavras'''', o que ecoa diretamente outra frase conhecida de Wittgenstein sobre o ''''enfeitiçamento'''' da razão pelas palavras. Mas sua pesquisa vai ao ponto: pela linguagem vemos um mundo maior que ela.

RODAPÉ

Wittgenstein também é mencionado no livro Alan Turing - O Homem Que Sabia Demais, de David Leavitt (editora Novo Conceito). A grande biografia de Turing é a de Andrew Hodges, The Enigma, mas Leavitt faz uma boa introdução ao trabalho desse matemático inglês precursor da computação, mal compreendido porque excêntrico e homossexual. O encontro com Wittgenstein é fundamental. Em suas aulas em Cambridge, o pensador austríaco dizia que a lógica contém contradições internas, o que não significa que não possa funcionar, e Turing dizia que era impossível erguer uma ponte com cálculos contraditórios. É um debate semelhante ao que teve com Karl Popper e foi narrado num livro excelente, O Atiçador de Wittgenstein. Turing, claro, era um pragmático, dotado de enorme habilidade para encontrar padrões sob seqüências numéricas, e por isso se tornou célebre ao decifrar os códigos dos alemães na Segunda Guerra.

POR QUE NÃO ME UFANO (1)

Fico imaginando se num país sério um diretor de uma de suas mais importantes instituições culturais, há muitos anos no cargo, deixaria que ela passasse por tantas dificuldades como falta de luz, segurança e resultado financeiro. Mais ainda: fico imaginando se num país sério esse diretor não pediria renúncia tão logo informado de que a instituição foi, por aqueles motivos, furtada de dois de seus maiores bens. Mas não. No caso do Masp, o arquiteto Júlio Neves - que passou bom tempo de sua gestão tentando levantar dinheiro para ocupar um prédio ao lado e que colocou dois filhos no conselho de mandarins que não contribuem materialmente com o museu - não só não renunciou, como aproveitou a recuperação das telas de Picasso e Portinari para distorcer esses fatos, ganhar ajuda de empresas e fazer uma demonstração de poder em público. O mais triste é ver gente capaz compactuando com tudo isso.

POR QUE NÃO ME UFANO (2)

Por falar em coerência, é curioso que a peçam para Lula a respeito do aumento de impostos. O presidente disse que não haveria aumento e, na calada do réveillon, soltou um minipacote para tungar mais R$ 10 bilhões da sociedade. Mas só estava sendo coerente com sua opinião de que o Brasil não dá para governar sem aumentar gastos... E ele ainda diz que é uma novidade em 500 anos de história! Enquanto isso, José Dirceu aparece na revista Piauí vivendo muitíssimo bem e declarando que houve caixa 2 no PT gaúcho, lá onde Marcos Valério não atuava, mas Delúbio sim. Ah, se o problema dos partidos fosse apenas o de não declarar receitas...

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

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