As eleições nos EUA, os conservadores e os equívocos
O Estadão publica hoje um artigo de David Brooks, colunista do The New York Times, intitulado “A noite dos dois terremotos políticos em Iowa”. Leiam trechos (em azul). Volto depois:
Já presenciei noites eleitorais que provocaram um terremoto no país. Nunca havia presenciado, porém, uma noite eleitoral que provocasse dois.
Barack Obama venceu as primárias de Iowa. É preciso ter um coração de pedra para não se comover com isso. Um afro-americano vence uma campanha equilibrada num Estado decisivo. Ele bate dois adversários fortes, incluindo a poderosa máquina Clinton. Ele o faz em um sistema que favorece eleitores rurais e o faz atraindo a participação de jovens eleitores. Esse é um momento grandioso. É um daqueles momentos em que um movimento que parecia etéreo e idealista se torna realidade e ganha consistência política.
Iowa não decide a corrida, mas o restante da temporada das primárias será matizado pelo brilho desse acontecimento. Sejam quais forem suas filiações políticas, os americanos vão se sentir bem com a vitória de Obama, que é uma história de juventude, possibilidade e unidade por meio da diversidade - os temas primordiais da experiência americana. E os americanos não vão querer ver isso interrompido. Quando um afro-americano está comandando uma investida irresistível rumo à Casa Branca, quem vai querer se levantar e dizer “não”?
Obama conseguiu um feito notável. À primeira vista, seus discursos são sermões abstratos e seculares de elevação pessoal - cheios de indagações sobre a natureza da esperança e os contornos da mudança.
Ele fala de apagar velhas categorias, como vermelho e azul (e, implicitamente, negros e brancos), e substituí-las por novas categorias, das quais as mais importantes são o novo e o velho. Ele parece em princípio mais preocupado em mudar o modo de pensar do que em mudar a legislação.
Contudo, no transcorrer de seus discursos e no transcorrer de sua campanha, Obama persuadiu muitos moradores de Iowa de que há substância aqui também. Ele construiu uma organização poderosa e conseguiu produzir uma vitória tangível.
Barack Obama fez com que Hillary Clinton parecesse pouco inspirada, com sua abordagem pragmática da política. O senador pelo Estado de Illinois fez John Edwards, com seus gritos irados de que “a ganância corporativa está matando o futuro de nossas crianças”, parecer antiquado. Agora, pode-se dizer que a carreira política de Edwards provavelmente está acabada. Obama está mudando o tom do liberalismo americano, e, talvez, da política nos Estados Unidos também.
No lado republicano, minha mensagem é: não tenha medo. Algumas pessoas vão lhe dizer que a vitória do ex-governador do Arkansas Mike Huckabee na noite de quinta-feira em Iowa representa um triunfo dos cruzados do criacionismo. Errado. Huckabee venceu não por seus sermões, mas porque explorou realidades que outros republicanos têm sido lentos em reconhecer.
Primeiro, os evangélicos mudaram. Huckabee é o primeiro evangélico irônico no cenário nacional. Ele é engraçado, popularesco (note-se sua admiração pelo ator Chuck Norris) e não está em guerra com a cultura moderna.
(...)
Será que Huckabee avançará para liderar esse novo tipo de conservadorismo? Altamente duvidoso. As últimas semanas expuseram suas graves falhas como candidato presidencial. Seu conhecimento sobre política externa é mínimo. Seus escorregões para o amadorismo simplesmente não ajudarão numa campanha nacional.
Integra abaixo
Voltei
David Brooks assumiu a vaga de “colunista conservador” do The New York Times que já foi do grande William Safire. Um sinal dos tempos. De maus tempos. A melhor definição a seu respeito é de Michael Kinsley, editor da revista Slate: “É o conservador favorito de todo liberal". O texto acima demonstra por quê. Brooks é mais um caído de amores por Barak “quase” Obama. A sua caracterização do pré-candidato democrata é a que se dispensa a um demagogo idiota, eventualmente perigoso. Falta agora deixar claro por que ele acha isso algo tão encantador.
Leiam o artigo na íntegra. Se Brooks não fosse de hábito tão, como direi?, ambíguo, diria que seu apreço pelo senador democrata e falastrão é só uma torcida em favor dos republicanos... Mas acho que não é bem assim. Em dezembro, escreveu um artigo apontando as virtudes da “democracia” venezuelana e do furacão Chávez. Sistema vicioso mesmo ele via nos... Estados Unidos!
Sua leitura sobre Mike Huckabee é imaginosa, mas é tolinha. No fim da contas, serve apenas ao propósito de reforçar o velho preconceito de que os republicanos encarnam o jeca americano, incapaz de entender o mundo que o cerca. Não obstante, foi Nixon quem se entendeu com a China, e foi Reagan quem jogou a pá de cal sobre a União Soviética.
A propósito: alguns bobinhos me perguntam se chamei Huckabee de “cretino” porque ele é evangélico... Tenham paciência! Procurem o comentário que ele fez quando Benazir Bhutto foi assassinada e o conseqüente risco de guerra civil no Paquistão: “Precisamos monitorar as fronteiras do EUA para evitar a entrada em massa de refugiados paquistaneses.” É um imbecil. O presidente americano é tão importante, já disse alguém, que o mundo inteiro deveria votar. Caso Huckabee saia vitorioso no Partido Republicano, será destroçado pela mídia americana, e Brooks sabe disso melhor do que eu.
Não serei eu a criticar este ou aquele candidatos porque têm uma religião. Mas o estado é leigo e deve continuar a sê-lo. O republicano Rudy Giuliani é favorável ao aborto, e Huckabee é contrário? Não basta para que eu simpatize com o ex-governador do Arkansas. Continuo a preferir o ex-prefeito de Nova York, que me parece mais equipado intelectualmente para responder aos desafios postos para a maior economia do mundo — e também para a maior máquina militar do planeta. Se Huckabee, a esta altura do campeonato, ainda não entendeu a importância do Paquistão no cenário mundial, sou forçado a indagar: o que mais ele não entendeu? Prefiro, sim, candidatos com sólidas convicções religiosas. Mas a Casa Branca não pode ser confundida com um templo do interior...
Volto a Brooks. Há um certo anarquismo rudimentar e antiestablishment em sua análise que conduz ao vazio. Com Obama, o “quase”, ele se encanta porque, em Iowa, o senador quebrou a espinha do “pragmatismo” de Hillary Clinton. Mas por que o pragmatismo é um mal a ser superado em política? Isso, claro, ele não diz. Sua simpatia por Huckabee parece derivar da leitura de que o republicano expressa a visão bruta e pouco lapidada do homem comum, aquele que realmente construiria a América...
Não sei, não... Brooks, nesse caso, não foi um conservador iconoclasta. Acho que foi apenas bobo. Está saudando a safra de políticos americanos que têm o cheiro inequívoco do populismo mais rasteiro do Terceiro Mundo. Um conservador mesmo gostaria de uma disputa entre Giuliani (ou o bom McCain) e Hillary, duas expressões do establishment que fez a Grande América.
A noite dos dois terremotos políticos em Iowa
David Brooks*
Já presenciei noites eleitorais que provocaram um terremoto no país. Nunca havia presenciado, porém, uma noite eleitoral que provocasse dois.
Barack Obama venceu as primárias de Iowa. É preciso ter um coração de pedra para não se comover com isso. Um afro-americano vence uma campanha equilibrada num Estado decisivo. Ele bate dois adversários fortes, incluindo a poderosa máquina Clinton. Ele o faz em um sistema que favorece eleitores rurais e o faz atraindo a participação de jovens eleitores. Esse é um momento grandioso. É um daqueles momentos em que um movimento que parecia etéreo e idealista se torna realidade e ganha consistência política.
Iowa não decide a corrida, mas o restante da temporada das primárias será matizado pelo brilho desse acontecimento. Sejam quais forem suas filiações políticas, os americanos vão se sentir bem com a vitória de Obama, que é uma história de juventude, possibilidade e unidade por meio da diversidade - os temas primordiais da experiência americana. E os americanos não vão querer ver isso interrompido. Quando um afro-americano está comandando uma investida irresistível rumo à Casa Branca, quem vai querer se levantar e dizer “não”?
Obama conseguiu um feito notável. À primeira vista, seus discursos são sermões abstratos e seculares de elevação pessoal - cheios de indagações sobre a natureza da esperança e os contornos da mudança.
Ele fala de apagar velhas categorias, como vermelho e azul (e, implicitamente, negros e brancos), e substituí-las por novas categorias, das quais as mais importantes são o novo e o velho. Ele parece em princípio mais preocupado em mudar o modo de pensar do que em mudar a legislação.
Contudo, no transcorrer de seus discursos e no transcorrer de sua campanha, Obama persuadiu muitos moradores de Iowa de que há substância aqui também. Ele construiu uma organização poderosa e conseguiu produzir uma vitória tangível.
Barack Obama fez com que Hillary Clinton parecesse pouco inspirada, com sua abordagem pragmática da política. O senador pelo Estado de Illinois fez John Edwards, com seus gritos irados de que “a ganância corporativa está matando o futuro de nossas crianças”, parecer antiquado. Agora, pode-se dizer que a carreira política de Edwards provavelmente está acabada. Obama está mudando o tom do liberalismo americano, e, talvez, da política nos Estados Unidos também.
No lado republicano, minha mensagem é: não tenha medo. Algumas pessoas vão lhe dizer que a vitória do ex-governador do Arkansas Mike Huckabee na noite de quinta-feira em Iowa representa um triunfo dos cruzados do criacionismo. Errado. Huckabee venceu não por seus sermões, mas porque explorou realidades que outros republicanos têm sido lentos em reconhecer.
Primeiro, os evangélicos mudaram. Huckabee é o primeiro evangélico irônico no cenário nacional. Ele é engraçado, popularesco (note-se sua admiração pelo ator Chuck Norris) e não está em guerra com a cultura moderna.
Segundo, Huckabee compreende muito melhor que Mitt Romney que atualmente passamos por uma crise de autoridade nos Estados Unidos. As pessoas perderam a fé na capacidade de seus líderes responderem a problemas. Enquanto Romney personifica a classe governante, Huckabee investiu contra ela. Ele criticou Wall Street e a K Street (rua que abriga numerosas organizações de pesquisas sociais e políticas, de lobistas e de advocacia em Washington). Mais importante, ele sentiu que os conservadores não acreditam que seu próprio movimento seja bem conduzido. Ele malhou Rush Limbaugh, o Clube de Crescimento do livre mercado e até o presidente George W. Bush. A velha guarda atirou tudo que tinha contra ele, deixando exposto seu próprio enfraquecimento.
Terceiro, Huckabee compreende como a ansiedade da classe média é realmente vivida. Os democratas são bons em falar sobre salários e empregos. Mas as famílias reais de classe média têm mais medo, economicamente falando, do divórcio que do acordo de livre comércio. As perspectivas de vida de uma pessoa serão mais ameaçadas por ela ser criada por apenas um dos pais que pela terceirização. Huckabee compreende que o bem-estar econômico se confunde com o bem-estar social e moral, e ele fala do inter-relacionamento de uma maneira como nenhum outro candidato faz.
Nesse sentido, a vitória do ex-governador não é um passo na direção do passado. Ela ameaça a coalizão Reagan de defensores do livre arbítrio e conservadores sociais, com certeza, mas abre caminho para uma nova coalizão.
Um conservadorismo que reconhece em famílias estáveis o alicerce do crescimento econômico não é difícil de imaginar. Um conservadorismo que ama o capitalismo, mas desconfia dos capitalistas, também não é difícil de imaginar. O filósofo Adam Smith pensava assim. Um conservadorismo que dá atenção às pessoas que ganham menos de US$ 55 mil por ano é o único conservadorismo que merece ser defendido.
Será que Huckabee avançará para liderar esse novo tipo de conservadorismo? Altamente duvidoso. As últimas semanas expuseram suas graves falhas como candidato presidencial. Seu conhecimento sobre política externa é mínimo. Seus escorregões para o amadorismo simplesmente não ajudarão numa campanha nacional.
Então a corrida vai seguir agora para New Hampshire. Romney está gravemente ferido e representa o que sobrou do “republicanismo 1.0”. Huckabee e John McCain representam iterações meio formadas de “republicanismo 2.0”. Minha aposta é que os republicanos agora se alinharão atrás de McCain para conter Huckabee.
Mike Huckabee provavelmente não será o indicado de seu partido à Casa Branca, mas desde quinta-feira à noite em Iowa um evangélico deu início à “Reforma Republicana”. TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK
*David Brooks é colunista do jornal ‘The New York Times’