Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 03, 2007

Virtude e terror

Miguel Reale Júnior


A violência policial tem sido uma constante na vida brasileira. O filme Tropa de Elite, inspirado no Bope, batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro especializado em missões policiais nas favelas, reproduz uma triste realidade de nossa História.

Para não muito retrogradar, lembro o Serviço de Diligências Especiais, criado no Rio de Janeiro em fins da década de 1950 pelo chefe de Polícia, general Amaury Kruel, para combater bandidos, como o Cara de Cavalo, com licença para exterminar malfeitores. Logo depois, nos anos 60, criou-se um grupo de 12 membros, os Homens de Ouro, integrado, entre outros, pelos delegados Sivuca, Milton Le Cocq e Mariel Mariscotte de Mattos, que tinha por missão invadir barracos nos morros, eliminar assaltantes, enfrentados como inimigos numa guerra em que a sociedade era defendida segundo o lema "bandido bom é bandido morto". Nascia o Esquadrão da Morte, designação por si mesma enfaticamente reveladora dos objetivos do grupo dos Homens de Ouro.

Com o assassinato do delegado Milton, instituiu-se a Scuderie Le Cocq, com vista a vingar a morte de um dos líderes do grupo especial de combate à criminalidade. O resultado foi uma quantidade espantosa de cadáveres, pois se passava a perseguir os suspeitos de serem suspeitos, cujos corpos metralhados eram chamados de "presuntos", para nem mortos serem reconhecidos como pessoas.

Em São Paulo, o combate à criminalidade comum era empreendido também por um Esquadrão da Morte, liderado pelo delegado Sérgio Fleury, cuja ação repressiva veio a ser investigada e perseguida judicialmente pela ação firme do promotor Hélio Bicudo.

Os grupos de extermínio do Rio de Janeiro e de São Paulo deram sua contribuição à ditadura no combate aos "subversivos", com a prática de tortura entre quatro paredes e com o abate a tiros na rua. Estes policiais derivaram depois para a promoção e a proteção do jogo do bicho ou do tráfico de drogas, operando-se a transformação dos grupos policiais em organizações criminosas, como sucedeu com a Scuderie Le Cocq.

No enfrentamento da criminalidade na periferia de São Paulo, durante a ditadura, atuava a Rota, pessimamente equipada ao término do governo Maluf, mas dada à indiscriminada prática de abusos contra inúmeros inocentes, pessoas sem passagem policial, mortos nas ruas sem prova de ter havido confronto. Todos esses atos de violência policial recebiam, no Rio e em São Paulo, apoio da população, especialmente da classe média, vítima desde a década de 70 do clima de medo.

A mídia deu força a essas milícias formadoras de um Estado paralelo, que substituía as instituições do sistema de administração da Justiça, a ponto de o famoso jornalista David Nasser se sentir honrado em ser presidente de honra da Scuderie Le Cocq, vindo o seu caixão a ser coberto com a bandeira da scuderie, a caveira e duas tíbias.

Com o processo de redemocratização, apesar dos esforços, pouco se avançou no controle da violência policial, pois as pessoas mortas pela polícia em São Paulo e no Rio chegam a corresponder a 20% do total de vítimas de homicídio, enquanto em cidades americanas e européias o porcentual gira em torno de 1%.

O monopólio do uso da violência pelo Estado e o comedimento desse uso por parte dos agentes de polícia geram tranqüilidade e sensação de segurança. Tal ainda não sucedeu em nosso país.

Na verdade, a violência espraia-se na sociedade, como produto da desorganização social e da omissão do Estado nas grandes cidades. Nos lares, a agressão a mulheres e crianças. Nos bairros de periferia, forças privadas atuam como justiceiras. Nestes recantos, banaliza-se a vida pela resolução dos conflitos por via da chacina, eliminando-se indiscriminadamente todos os que estão próximos ao inimigo a ser destruído.

Nas esquinas dos bairros de classe média se é assaltado com revólver na cara, nos apartamentos se é vítima do arrastão.

As forças policiais ainda afundam no despreparo, na corrupção, no medo, na violência sem regras. Não se efetivam uma ampla diretriz de segurança pública e uma política criminal de cunho social. Resta apenas à sociedade a expectativa da ação salvadora de "heróis" truculentos capazes de acalmar o temor crescente.

De outra parte, a vida política cinge-se ao mensalão, ao despudor presidencial de justificar a cada passo os desvios do próprio governo. A compra de votos de deputados continua com o preço entregue depois das votações. O Senado desmoraliza-se com a presidência de um senador que paga pensão alimentícia à filha havida fora do casamento com dádivas de lobista de empreiteira. A crise de autoridade aumenta o desalento.

Está pronto o caldo de cultura propício para o descrente cidadão comum receber com aplausos o capitão Nascimento do filme Tropa de Elite, um dos incorruptíveis membros do Batalhão de Operações Especiais, o Bope do Rio, cuja retidão o legitima ao uso da violência mais brutal na luta contra o crime. Imbuído de santidade, o torturador afirma ser possível matar com eficiência e dignidade.

Com todas as instituições, públicas ou privadas, corroídas, o capitão, no caixão do companheiro de armas morto na guerra carioca, sobrepõe à Bandeira do Brasil a bandeira do batalhão com caveira e duas facas.

Aí estão os ingredientes de uma ditadura ao estilo de Robespierre: virtude e terror. "A virtude sem a qual o terror é funesto; o terror sem o qual a virtude é impotente", como disse o "Incorruptível", na França de 1793.

Apresenta-se o pior dos mundos: o Estado pretoriano, liderado pelos "puros", a resultar numa ditadura fundada no orgulho da virtude, que em breve irá corroer a si mesma.

No regime do medo, o aplauso à caça aos suspeitos, por forças que legitimam a si próprias para a prática do extermínio, aumenta perigosamente a esgarçadura das instituições democráticas.

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