Miguel Reale Júnior
Para não muito retrogradar, lembro o Serviço de Diligências Especiais, criado no Rio de Janeiro em fins da década de 1950 pelo chefe de Polícia, general Amaury Kruel, para combater bandidos, como o Cara de Cavalo, com licença para exterminar malfeitores. Logo depois, nos anos 60, criou-se um grupo de 12 membros, os Homens de Ouro, integrado, entre outros, pelos delegados Sivuca, Milton Le Cocq e Mariel Mariscotte de Mattos, que tinha por missão invadir barracos nos morros, eliminar assaltantes, enfrentados como inimigos numa guerra em que a sociedade era defendida segundo o lema "bandido bom é bandido morto". Nascia o Esquadrão da Morte, designação por si mesma enfaticamente reveladora dos objetivos do grupo dos Homens de Ouro.
Com o assassinato do delegado Milton, instituiu-se a Scuderie Le Cocq, com vista a vingar a morte de um dos líderes do grupo especial de combate à criminalidade. O resultado foi uma quantidade espantosa de cadáveres, pois se passava a perseguir os suspeitos de serem suspeitos, cujos corpos metralhados eram chamados de "presuntos", para nem mortos serem reconhecidos como pessoas.
Em São Paulo, o combate à criminalidade comum era empreendido também por um Esquadrão da Morte, liderado pelo delegado Sérgio Fleury, cuja ação repressiva veio a ser investigada e perseguida judicialmente pela ação firme do promotor Hélio Bicudo.
Os grupos de extermínio do Rio de Janeiro e de São Paulo deram sua contribuição à ditadura no combate aos "subversivos", com a prática de tortura entre quatro paredes e com o abate a tiros na rua. Estes policiais derivaram depois para a promoção e a proteção do jogo do bicho ou do tráfico de drogas, operando-se a transformação dos grupos policiais em organizações criminosas, como sucedeu com a Scuderie Le Cocq.
No enfrentamento da criminalidade na periferia de São Paulo, durante a ditadura, atuava a Rota, pessimamente equipada ao término do governo Maluf, mas dada à indiscriminada prática de abusos contra inúmeros inocentes, pessoas sem passagem policial, mortos nas ruas sem prova de ter havido confronto. Todos esses atos de violência policial recebiam, no Rio e em São Paulo, apoio da população, especialmente da classe média, vítima desde a década de 70 do clima de medo.
A mídia deu força a essas milícias formadoras de um Estado paralelo, que substituía as instituições do sistema de administração da Justiça, a ponto de o famoso jornalista David Nasser se sentir honrado em ser presidente de honra da Scuderie Le Cocq, vindo o seu caixão a ser coberto com a bandeira da scuderie, a caveira e duas tíbias.
Com o processo de redemocratização, apesar dos esforços, pouco se avançou no controle da violência policial, pois as pessoas mortas pela polícia em São Paulo e no Rio chegam a corresponder a 20% do total de vítimas de homicídio, enquanto em cidades americanas e européias o porcentual gira em torno de 1%.
O monopólio do uso da violência pelo Estado e o comedimento desse uso por parte dos agentes de polícia geram tranqüilidade e sensação de segurança. Tal ainda não sucedeu em nosso país.
Na verdade, a violência espraia-se na sociedade, como produto da desorganização social e da omissão do Estado nas grandes cidades. Nos lares, a agressão a mulheres e crianças. Nos bairros de periferia, forças privadas atuam como justiceiras. Nestes recantos, banaliza-se a vida pela resolução dos conflitos por via da chacina, eliminando-se indiscriminadamente todos os que estão próximos ao inimigo a ser destruído.
Nas esquinas dos bairros de classe média se é assaltado com revólver na cara, nos apartamentos se é vítima do arrastão.
As forças policiais ainda afundam no despreparo, na corrupção, no medo, na violência sem regras. Não se efetivam uma ampla diretriz de segurança pública e uma política criminal de cunho social. Resta apenas à sociedade a expectativa da ação salvadora de "heróis" truculentos capazes de acalmar o temor crescente.
De outra parte, a vida política cinge-se ao mensalão, ao despudor presidencial de justificar a cada passo os desvios do próprio governo. A compra de votos de deputados continua com o preço entregue depois das votações. O Senado desmoraliza-se com a presidência de um senador que paga pensão alimentícia à filha havida fora do casamento com dádivas de lobista de empreiteira. A crise de autoridade aumenta o desalento.
Está pronto o caldo de cultura propício para o descrente cidadão comum receber com aplausos o capitão Nascimento do filme Tropa de Elite, um dos incorruptíveis membros do Batalhão de Operações Especiais, o Bope do Rio, cuja retidão o legitima ao uso da violência mais brutal na luta contra o crime. Imbuído de santidade, o torturador afirma ser possível matar com eficiência e dignidade.
Com todas as instituições, públicas ou privadas, corroídas, o capitão, no caixão do companheiro de armas morto na guerra carioca, sobrepõe à Bandeira do Brasil a bandeira do batalhão com caveira e duas facas.
Aí estão os ingredientes de uma ditadura ao estilo de Robespierre: virtude e terror. "A virtude sem a qual o terror é funesto; o terror sem o qual a virtude é impotente", como disse o "Incorruptível", na França de 1793.
Apresenta-se o pior dos mundos: o Estado pretoriano, liderado pelos "puros", a resultar numa ditadura fundada no orgulho da virtude, que em breve irá corroer a si mesma.
No regime do medo, o aplauso à caça aos suspeitos, por forças que legitimam a si próprias para a prática do extermínio, aumenta perigosamente a esgarçadura das instituições democráticas.