Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 02, 2007

VEJA Entrevista: Jô Soares


"Rir é uma obrigação"

Prestes a completar cinqüenta anos de carreira,
Jô Soares diz que o humor exorciza tragédias e
é imbatível como maneira de demonstrar indignação


Isabela Boscov

Otavio Dias de Oliveira

"O humor tem de ser anárquico,
e o humorista não pode se engajar. Ao contrário: tem de ser oposição inclusive da oposição"

No ano que vem, Jô Soares comemora duas efemérides: meio século de carreira humorística, durante a qual criou cerca de 300 personagens, e duas décadas de seu talk-show, com 10 000 entrevistas realizadas – contadas aí suas fases no SBT e, atualmente, na Globo. Mas não pára para contemplar tanta longevidade, porque está trabalhando no seu ritmo peculiar. Jô não pensa em retornar ao cinema, porque o único filme que dirigiu, O Pai do Povo – sobre um brasileiro que é o último homem fértil da Terra e passa então a ser agenciado pelo governo "como uma Petrobras" –, foi lançado durante um Carnaval, "de onde se vê que não havia grandes intenções de que fizesse sucesso". Mas acaba de dirigir Bibi Ferreira no espetáculo Às Favas com os Escrúpulos. Está ainda lançando, em parceria com o músico Billy Forghieri, o CD Remix em Pessoa, no qual declama (com sotaque lusitano, para lhes preservar a musicalidade) poemas de Fernando Pessoa ao som de hip hop, jazz e drum'n'bass. Gostou tanto da experiência que, em novembro, estreará Remix no teatro, como show, com direção de Bete Coelho. Jô recebeu VEJA em seu apartamento para argumentar que rir do próprio país não é só uma vocação dos brasileiros – é quase obrigação.

Veja – Uma das peculiaridades do humor brasileiro é a capacidade de fazer piada até com as maiores desgraças, e no momento em que elas estão acontecendo. Isso é saudável?
Jô – É. É uma forma de exorcizar a tragédia. A Denise Fraga conta uma história que ilustra bem esse espírito nacional. Certo dia, ela encontrou na secretária eletrônica uma mensagem da mãe: "Filha, sua avó não está passando nada bem. Ela está na capela 3 do cemitério São João Batista". Ela adorava a avó, mas caiu na gargalhada, claro.

Veja – Será que às vezes o brasileiro não ri um pouco cedo demais, e assim tolera acontecimentos políticos que não deveria tolerar?
Jô – Acho que o riso, nesses casos, é uma manifestação de indignação, de falta de respeito. A primeira arma para desmoralizar um político é não respeitá-lo.

Veja – Mas ainda dá para rir desse clima de corrupção e imoralidade?
Jô – Você está falando de agora ou desde a descoberta do Brasil?

Veja – Vamos por partes. O Brasil de hoje ainda tem graça?
Jô – O poder em si já é uma coisa ridícula. Assim que o sujeito assume a Presidência, colocam nele uma faixa que parece um suspensório torto. Quando, ainda mais, acontecem canalhices como as que têm vindo à tona, é preciso exacerbar esse ridículo. Tem pessoas que ainda reelegem essa gente; então, que pelo menos elas também se sintam ridículas na parceria com os corruptos e que pensem duas vezes. Afinal, ninguém gosta de se sentir ridículo.

Veja – O caso Renan Calheiros daria uma boa comédia?
Jô – O caso me choca ainda mais por ele ser senador, um cargo que desde a Antiguidade clássica vem investido de um ideal superior. Aí o cara tem uma amante, e tem gente que vem dizer que a vida particular não deve ser misturada à vida pública. Ora, ele tem uma filha com essa moça, o que mostra a irresponsabilidade dos dois em transar sem camisinha. Sabe-se lá onde o senador andou colocando o pinto dele antes e que relacionamentos a moça teve. Por que uma pessoa que é incapaz de praticar sexo seguro não levará essa irresponsabilidade para a vida pública? É claro que renderia comédia. Como dizem, este é o país da piada pronta.

Veja – Qual é o espaço da baixaria no humor?
Jô – O importante é não excluí-la. Existem baixarias que são de rolar de rir, mas são também críticas contundentes. No Borat, por exemplo, aquela cena em que ele e o produtor obeso rolam nus na cama é horripilante – e hilariante. Não existe mau gosto em comédia. Mau gosto é uma convenção. Hoje significa uma coisa, amanhã outra. Repare que, no começo, o Cazaquistão ficou furioso por Borat ser um cazaque. Depois caiu a ficha: eles se tocaram que o personagem era uma crítica não a eles, mas aos Estados Unidos. Aí eles relaxaram. Só não vou dizer que gozaram porque isso é exclusividade da ministra.

Veja – O que mais o impressionou em Borat?
Jô – No filme e nos outros personagens que Sacha Baron Cohen faz, como o austríaco Brüno e o rapper Ali G, o que me impressiona é a vontade que as pessoas têm de aparecer. Você vê ministros, estudiosos, gente de todo tipo, topando enfrentar situações ofensivas ou constrangedoras para pôr a cara na televisão.

Veja – Então é para aparecer também que as pessoas vão a um programa de entrevistas como o seu?
Jô – Claro. E a primeira que quer aparecer sou eu. Você se coloca numa vitrine, em que milhões de pessoas vão te ver, e não tem vaidade nenhuma? É óbvio que tem. E quem vai ao programa também está exercendo um pouco da sua vaidade.

Veja – É desejável que a platéia possa observar as reações íntimas do entrevistador ao seu convidado?
Jô – Hoje em dia eu me policio, porque tenho a tendência de começar a arengar com o convidado quando o assunto pega fogo. Isso não é bom. Outra coisa que acontece é gente que mente na pré-entrevista para parecer interessante e na hora H se desvia do assunto, me deixando com cara de bobo. E teve o sujeito que bocejou enquanto contava uma história. Aí não agüentei. Virei para ele e disse: "Se você está bocejando, imagine o coitado que está em casa assistindo".

Veja – Por que há tão poucas mulheres comediantes? É um meio machista ou elas são menos engraçadas?
Jô – Não é um meio machista. É um mundo machista. Há muito menos mulheres do que homens na presidência de grandes corporações. Mas elas não são menos engraçadas. Antes existia uma noção primária de que a mulher para ser engraçada tem de ser feia – vesga, ou com uma verruga na ponta do nariz. Isso está mais do que desmentido. Existem mulheres lindas e que são também comediantes de grande talento, como Goldie Hawn. Na verdade, acho que a repressão ao humor feminino começa cedo, em casa. As mulheres não são encorajadas a conquistar pelo humor. Uma menina de 15 anos dizer aos pais hoje que quer ser comediante é mais ou menos como se, algumas décadas atrás, ela anunciasse que ia ser artista de circo.

Veja – Humor tem prazo de validade?
Jô – Tem, quando ele começa a se preocupar em não ofender esse ou aquele segmento. Jerry Lewis, por exemplo, era genial, até que deu para vetar palavreado chulo, referências a sexo e por aí vai. O humor tem de ser anárquico – não no sentido político-praticante, é claro. Aliás, muito ao contrário. Humorista não pode se engajar. Tem de ser oposição até da oposição.

Veja – Você já encontrou algum povo sem humor?
Jô – Não. O fato é que o ser humano é engraçado. A ausência de humor é a antecâmara do suicídio. Se o sujeito que quer se matar com a cabeça no forno conseguir visualizar a posição ridícula em que ele está, ajoelhado e com o traseiro para cima, ele vai dar uma gargalhada e desligar o gás.

Veja – Quando você descobriu que era engraçado?
Jô – Quando mamãe começou a rir, claro.

Veja – Mamãe não vale, porque tem obrigação de achar o filho uma graça.
Jô – Mas mamãe e papai valem, sim. Acredito que todos temos roteiros de vida que são traçados muito cedo, num plano mágico até. Eu comecei a falar tarde. Mamãe, que me teve com 40 anos, o que na época era considerado um absurdo, achava que, veja só, coitadinho, nasceu com problemas. Um dia, no berço, do lado dela, comecei a jogar a lata de talco no chão uma, duas, três vezes. Na quarta, quando ela se virou brava para mim, eu finalmente abri a boca: "Caiu!". Todo mundo achou lindo. Daí vi a utilidade daquilo. E comecei a usar.

Veja – Seus colegas de escola achavam você engraçado?
Jô – Crianças podem ser muito cruéis, como sabe qualquer um que foi gordo ou usou óculos na infância. O normal é que esse menino seja pego para Cristo. Mas percebi rapidamente que era melhor ser conhecido por ser engraçado do que por ser gordo. Tanto que nunca tive apelido de "gordo", ou as variações de praxe, na escola.

Veja – De onde você tira seus personagens?
Jô – Às vezes, do ar. Há tempos criei um lorde inglês que foi mordido à meia-noite, em Quixeramobim, por um cearense que por sua vez fora mordido por um lobo. Em noites de Lua cheia, então, ele se transformava no Cearomem. Tive a idéia do nada, ao descer do carro em Fortaleza e topar com um céu enluarado. Eu nunca seria capaz de explicar como se chega de uma coisa a outra, em casos assim.

Veja – Quando você se vê numa cena de um programa que fez na juventude, você se acha engraçado?
Jô – Não consigo me assistir. Acabo de gravar o programa – que também tem muito humor – e assisto profissionalmente, mas só. Fico com pudor de mim. Primeiro porque, quando está lá, você se acha um deus. Daí você se vê no vídeo e, claro, percebe que está muito longe disso. Eu me acho até gordo quando me vejo na televisão.

Veja – Incomodar-se com a própria aparência não é uma reação de principiante?
Jô – Não. Acho que a gente nunca se acostuma com a própria aparência, ou com a voz, os cacoetes. Imagine há quantos anos você usa a secretária eletrônica – e eu aposto que você ainda estranha a sua voz na gravação.

Veja – Quais são os personagens que você criou de que mais gosta?
Jô – O Gardelón, que era aquele pobre coitado daquele argentino, um sofredor. Gostava muito também do último exilado em Paris, que falava um francês macarrônico e dizia à mulher no telefone: "Madalena, você não quer que eu volte". Ou a Norminha, que era muito solta, digamos, mas muito menina. E o Reizinho. Mas não é só uma questão de personagem. Eu me divertia imensamente com um quadro que fazia com o Paulo Silvino, o jornal para pessoas mais ou menos surdas. O Silvino dava a notícia e eu repetia gritando. Era uma bobagem, mas eu morria de rir.

Veja – O exilado usava a expressão "chose de loque", que virou bordão popular. Entrar na cultura é a melhor medida do acerto?
Jô – Quando isso acontece, fico como aquelas mães de filho único, que morrem de orgulho do filho – como a minha mãe. Toda vez que vejo uma expressão dessas sendo usada, tenho vontade de dizer ao mundo que fui eu quem inventou, porque a origem se perde, e as pessoas falam sem saber de onde veio. Como "muy amigo", ou "mata o velho". Um dos reis do bordão é o meu amigo e colaborador, Max Nunes. Desde os tempos do rádio ele vem inventando bordões geniais.

Veja – Fazer os outros rir é um vício?
Jô – Quando você experimenta essa sensação, não há como viver sem ela. É preciso até maneirar para não se tornar inconveniente.

Veja – Ao contrário dos entrevistadores americanos, você recebe em seu programa pessoas que não são famosas. Por que tomou essa decisão?
Jô – Esses convidados são um aspecto essencial do programa, e ninguém descarta pauta por ser exótica ou absurda demais antes de ela passar por mim. Isso, aliás, é o que me desagrada nos programas de David Letterman e Jay Leno hoje: a ênfase nas celebridades. Eles praticamente só entrevistam gente famosa, que está ali promovendo seus últimos trabalhos – além do ar de que foi tudo muito ensaiado. Todos somos herdeiros de um mesmo formato. Mas no auge dele, com Johnny Carson, a variedade de convidados era enorme.

Veja – Você chama todos os seus convidados, sem exceção, de "você". Por quê?
Jô – No Brasil, "senhor" não é um tratamento que indica respeito ou falta de intimidade, mas sim uma forma de diferenciação de classe social. Na França, um ministro chama outro ministro e também o seu motorista de vous. No Brasil, outro ministro é "senhor" e o motorista é "você". Então, no meu sofá, todos teriam de ser "senhor" ou todos teriam de ser "você". Escolhi o tratamento informal porque ele é mais coloquial e, às vezes, faz o entrevistado se soltar mais. Como Luís Carlos Prestes, que tomou um susto quando eu o tratei por "você", mas a alturas tantas declarou que Olga Benario é que havia sido a grande paixão da sua vida – algo que ele nunca dissera com todas as letras antes, ao menos em público.

Veja – Rir de si mesmo é um dos mandamentos da comédia?
Jô – Eu diria que é um mandamento da vida, não só da comédia.

Veja – O que, para você, melhor define o que é ser humorista?
Jô – Diz a lenda que, quando um grande comediante estava para morrer, seus amigos lhe perguntaram se estava sendo difícil enfrentar o fim. "Não", ele disse. "Morrer é fácil. Difícil é a comédia."

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