Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 16, 2007

Roberto Pompeu de Toledo

Viagem à Europa,
modelo 1830

O diário de um médico anglo-baiano mostra
como era viajar no tempo das embarcações
a vela e das diligências

Cansado dos tormentos nos aeroportos? Irritado com os buracos nas estradas? Um consolo para o leitor é travar conhecimento com o que era viajar nos idos de 1830. Um livro recente, O Diário de Jonathas Abbott (Editora Francisco Alves), dá uma idéia muito concreta da aventura em que então consistia uma viagem do Brasil à Europa, ou mesmo os deslocamentos dentro da Europa. Jonathas Abbott, nascido na Inglaterra e radicado na Bahia desde a adolescência, tinha 34 anos quando empreendeu a viagem. Médico e professor de medicina já então de algum destaque, em Salvador, e que mais destacado ainda se tornaria depois, ele fez a viagem com o objetivo de aperfeiçoar-se em Paris com os luminares da época em medicina e cirurgia, mas não deixou de, nos intervalos dos estudos, empreender viagens de turismo pela Itália e de visita aos parentes na Inglaterra. Durante os dois anos de permanência na Europa, manteve um diário, que dormiu nos arquivos da família até ser publicado pelo trineto, embaixador Fernando Abbott Galvão, também responsável pelas minuciosas notas e apêndices que acompanham o volume.

Abbott partiu de Salvador no dia 20 de julho de 1830 e em 19 de setembro desembarcou em Dover, na Inglaterra, porto de destino da galera sueca Ariadne. O vento, como é compreensível, para quem viajava numa embarcação a vela, é o grande protagonista do diário durante a travessia. Uma hora, caprichoso, ameaça empurrar a galera ao encontro da costa do Canadá. Em outras, ausenta-se. "Há dois dias que estamos em calmaria, andando caranguejamente com os movimentos mais engraçados do mundo", anota o diarista em 26 de agosto. Da Inglaterra à França ele atravessa nessa nova maravilha que é o barco a vapor. O percurso não dura mais que onze horas, e o viajante comemora: "Isto é andar, o mais é peta". Do Porto de Calais, toca ir a Paris – um percurso que não chega a 300 quilômetros, mas que cobrou dois dias para ser vencido. Abbott viajou numa diligência com outras 25 pessoas e bagagens respectivas. Os cavalos "não queriam, ou não podiam, correr; promessas, carinhos, chicote, a nada os brutos se moviam". Às vezes os passageiros desciam, para aliviar o peso do veículo.

Tanto melhor que o viajante dispunha da arma do humor, para contrabalançar os dissabores. Muitos meses depois, durante uma viagem de Paris a Marselha, coube-lhe dividir a carruagem com uma freira "cujos pezinhos exalam os suaves perfumes do queijo podre". Como observa Rubens Ricupero, no prefácio do livro, a viagem Paris–Marselha (cujos 750 quilômetros se vencem hoje em três horas no TGV, o trem de alta velocidade francês) implicava ficar "uma semana encerrado dentro de uma caixa apertada, não podendo entrar ar fresco por causa da poeira, obrigado a aturar todos os cheiros estranhos de passageiros para os quais o banho era luxo raro".

Se o leitor está cansado dos rituais dos aeroportos, passaporte para cá e para lá, revista, abre a mala, tira o sapato, espera pela bagagem, o diário de Abbott mostra que, também nesse item, as coisas já não eram agradáveis. Ao voltar à França, depois de uns dias na Inglaterra, ele tem retidas na alfândega as calças que adquirira em Londres – tecido inglês estava proibido de entrar na França. Em outra ocasião, ao subir de Nápoles para Roma, naquela Itália então dividida em vários pequenos estados, teve seu passaporte examinado cinco vezes, ao penetrar nos domínios pontifícios – sendo que, "de cada vez, se pára e se paga". Caso se esteja igualmente cansado de, no estrangeiro, ser assaltado por comparações desfavoráveis ao Brasil, o livro é um lenitivo. Diante do panorama que lhe oferece a Paris de 1830, recém-sacudida pela revolução que destronou a dinastia Bourbon e pôs o rei-cidadão Luís Felipe em seu lugar, observa: "No Brasil temos rusgas, mas não tão bárbaras e ferozes como as dos franceses". Ao passar ao largo da Sardenha, quando viajava para a Sicília, o capitão do navio lhe diz que ali as pessoas iam à missa com fuzil no ombro, e que, se ocorre de um barco avariar-se pelas proximidades, em vez de receber socorro, será roubado. Conclusão de Abbott: "Toda a Europa, portanto, não está mais adiantada que o Brasil, que tanto esses senhores acusam de bárbaro e cruel".

Inglês de nascimento, ele se mostra o mais brasileiro dos brasileiros, o mais baiano dos baianos, e está sempre morrendo de saudade. Sente falta das frutas da Bahia: "Quem me dera o pé de uma laranjeira... um coco mole para lhe beber a água!". No Jardim Botânico de Marselha, depara com uma bananeira – e lhe tira o chapéu, "tão satisfeito fiquei de ver uma patrícia, mesmo entre as plantas". Sobretudo, Abbott tem saudade das namoradas, inclusive – que tipo, e que época! – as que deixou entre as recolhidas de um convento de Salvador. Estamos diante de alguém sempre alerta aos encantos femininos, que lança em seu diário apreciações sobre a qualidade das mulheres de cada cidade, e cujos olhos se deleitam quando conseguem vislumbrar um pedaço de perna. Nem tudo eram agruras, nas viagens.

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