Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 02, 2007

A reurbanização da Cracolândia, em São Paulo

Começou a faxina

Com a eliminação da "Cracolândia", São Paulo
segue a tendência mundial de reurbanização
de áreas centrais degradadas


Paula Neiva

Valéria Gonçalvez/AE
Screet
As demolições já iniciadas (à esq.) darão nova cara a ruas como a Santa Ifigênia (no projeto à dir.)


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Dos arquivos de VEJA
A solução é derrubar
11 de janeiro de 2006

Há duas décadas os habitantes de São Paulo são obrigados a conviver com um cancro urbano a que se apelidou – não é difícil imaginar por que – de "Cracolândia". Fincada em pleno centro da cidade, próximo à belíssima Estação da Luz, ponto de encontro da elite paulistana na época áurea do café, a região se transformou em reduto de tráfico e consumo de drogas a céu aberto, prostituição e todo tipo de bandidagem. Há uma semana, com a demolição de meia dúzia de prédios, a prefeitura da cidade deu os primeiros passos para acabar com a Cracolândia (como adiantou VEJA numa reportagem no ano passado) e promover um ambicioso plano de revitalização dos 25 quarteirões por onde ela se estende. O projeto prevê que em breve serão derrubados outros cinqüenta imóveis deteriorados e sem valor histórico ou arquitetônico. Em seu lugar serão erguidos prédios residenciais e comerciais. Outras tantas construções terão a fachada reformada. Ruas como a Santa Ifigênia, famosa na cidade por abrigar centenas de lojas de produtos eletrônicos, serão remodeladas e toda a fiação será aterrada.

A intenção da prefeitura é transformar a área da Estação da Luz e seu entorno num pólo de empresas de tecnologia da informação, comunicação e telemarketing. Para atrair os novos empreendimentos, a prefeitura criou uma política de incentivos fiscais. Serão concedidos descontos e créditos em tributos municipais como o imposto predial e territorial urbano (IPTU) e o imposto sobre serviços (ISS) que podem chegar a 100% do valor, por um prazo de cinco anos. Dos 34 projetos já apresentados à prefeitura, 23 foram aprovados, entre eles um prédio da Microsoft e outro da IBM. O investimento ficará na casa dos 800 milhões de reais, entre dinheiro público e privado, e as obras devem durar dois anos. O bairro que surgirá será batizado de Nova Luz. "A idéia é criar um pólo de tecnologia, criatividade e inovação", diz o secretário das Subprefeituras de São Paulo, Andrea Matarazzo. Ao riscar a Cracolândia do mapa, substituindo-a por um bairro novo por onde circulará muito dinheiro, a prefeitura espera estimular a melhoria de todo o centro da cidade.

Com as obras na Luz, São Paulo segue uma tendência mundial de revitalização de zonas degradadas das metrópoles. São regiões que, por motivos diversos, se tornaram obsoletas para o papel que desempenhavam na cidade. Puerto Madero, em Buenos Aires, e as Docklands, em Londres, por exemplo, entraram em decadência a partir da década de 60 porque não mais conseguiam receber os navios gigantescos que passaram a dominar o transporte de cargas. Ambas foram recuperadas. Puerto Madero se transformou num dos metros quadrados mais caros da capital argentina, onde despontam espigões modernos e hotéis caríssimos, como o Faena, projetado pelo incensado arquiteto francês Philippe Starck. "É desnecessário expandir os limites da cidade quando regiões com infra-estrutura pronta, mas mal aproveitadas, já existem", diz o arquiteto Paulo Bruna, professor de história da arquitetura contemporânea da Universidade de São Paulo. "O investimento para dinamizar uma região que já tem redes de transporte e comunicação instaladas é muito menor." Em Londres, parte das Docklands foi incorporada à City, o centro financeiro da cidade.

O arquiteto e urbanista Jorge Wilheim ressalta que muitas vezes as regiões centrais das cidades entram em decadência porque não conseguem acompanhar as mudanças no modo de vida da população. Diz ele: "A intensificação do uso de automóveis como meio de transporte no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, fez com que muitas pessoas se mudassem das áreas centrais, pois os prédios em que elas moravam não tinham garagem". Os urbanistas concordam que uma das maneiras mais eficazes para recuperar regiões centrais deterioradas é atrair moradores de volta para elas. É justamente essa uma das estratégias da prefeitura paulistana para consolidar o novo bairro da Luz.

O REINO DOS MENDIGOS

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Praça da Sé reformada: banheiro ao ar livre


Há menos de um ano, a prefeitura de São Paulo concluiu uma reforma total na Praça da Sé, um dos cartões-postais da cidade. Refizeram-se jardins, trocaram-se luminárias e bancos – tudo para tornar a praça mais agradável e acolhedora para a população. De pouco adiantou. Logo a Sé foi tomada por mendigos e moradores de rua que a utilizam como dormitório, banheiro e lavanderia. Alguns deles usam drogas. O mau cheiro impera. E por que a prefeitura não expulsa os habitantes indesejáveis da praça? Porque o Ministério Público não deixa, alegando que a lei preserva o direito de ir, vir e permanecer em locais públicos. A prefeitura não consegue nem mesmo fazer com que os mendigos saiam dos bancos para que seja feita a limpeza com jatos d'água. Resultado: os 10 milhões de habitantes de São Paulo têm à disposição uma praça nova em folha, mas são impedidos de usufruí-la por causa de meia dúzia de desocupados. Melhor faria o Ministério Público se ajudasse a prefeitura a tirar os mendigos da Sé.


A solução é derrubar Edição 1938 . 11 de janeiro de 2006

A prefeitura de São Paulo vai demolir
a parte mais degradada do centro da cidade
e oferecer os terrenos à iniciativa privada


Camila Antunes

Filipe Araújo/AE
O ENDEREÇO DO CRIME
A área a ser demolida e incluída na zona de benefícios fiscais pela prefeitura paulistana ficou conhecida como Cracolândia, por reunir traficantes e usuários da droga que é sinônimo de pobreza e degradação
Cesar Diniz/AE

O centro de uma cidade deveria ser como uma sala de visitas, onde se mostra o que se tem de melhor em casa. O centro de São Paulo, no entanto, parece um depósito de lixo. Sujo e degradado, foi abandonado por famílias, empresas e bancos. Seus imóveis caindo aos pedaços foram invadidos pela prostituição, pelo tráfico de drogas e pelo comércio de produtos piratas. A decadência começou nos anos 70, quando Paulo Maluf, então prefeito, construiu um viaduto de 3 quilômetros, o Minhocão, para resolver problemas de tráfego. A obra devastou o valor dos imóveis próximos, mas os engarrafamentos continuaram. Os desastres se sucederam nas administrações seguintes. Os calçadões criados por Olavo Setúbal em 1976 dificultaram o acesso aos escritórios e às lojas, levando a que muitos deles fechassem as portas ou se mudassem para os bairros. Para completar a degradação, Marta Suplicy instalou 400 famílias sem-teto em imóveis abandonados, enterrando de uma vez a possibilidade de recuperar a economia da região.


Fotos divulgação
CARTÃO-POSTAL
No centro de Chicago, um estacionamento gigantesco deu lugar a jardins e a um palco para shows criado pelo arquiteto Frank Gehry (acima)

Alguns abnegados que ali permanecem ainda tentam recuperar o centro de São Paulo, estimulando a reforma de fachadas e fiscalizando a limpeza dos principais logradouros. Nos últimos anos, os governos da capital e do estado de São Paulo recuperaram muitos monumentos do centro, como a Estação da Luz, a Pinacoteca e a Sala São Paulo, usada para concertos de música erudita. Nenhuma dessas medidas interrompeu a degradação do centro, que, sem alternativa econômica, continuou sendo um reduto de pobreza. A ruína do centro paulistano é tamanha que só há uma maneira de resolver o problema: a demolição pura e simples de boa parte dele. O prefeito José Serra já tomou essa iniciativa em relação ao pedaço mais degradado, a Cracolândia. A região engloba dez quarteirões distribuídos em 150.000 metros quadrados próximos à Estação da Luz. Como avisa o nome, é reduto de traficantes e viciados – e prostitutas e ladrões, obviamente. A área será desapropriada e, em seguida, leiloada a empresas interessadas em se instalar no centro. Todos os 850 imóveis desses quarteirões poderão ser demolidos – nenhum deles, registre-se, de valor histórico. "São apenas um antro que atrapalha o funcionamento da cidade", diz o subprefeito Andrea Matarazzo, que chefia o projeto. Uma área maior, que compreende a Cracolândia e seu entorno, tornou-se uma zona de incentivo fiscal. Quem investir nos seus 25 quarteirões – cerca de 250.000 metros quadrados – terá desconto de até 60% em todos os tributos municipais.


Arquivo Nacional/Acervo Correio da Manhã
NADA SAUDOSA MALOCA
Na década de 60, a favela Praia do Pinto, no bairro carioca do Leblon, foi erradicada. Em seu lugar, surgiu um condomínio para a classe média
Oscar Cabral

Como não tem dinheiro em caixa para tocar a idéia, a prefeitura paulistana recorreu a uma peculiar engenharia financeira para reformar o centro. As desapropriações só serão pagas depois que o dinheiro arrecadado com a venda dos terrenos entrar no caixa municipal. Ou seja, depois que os atuais ocupantes dos imóveis já estiverem na rua. A idéia só dará certo, portanto, se aparecerem compradores para os quarteirões da Cracolândia. Para garantir o sucesso da licitação, Andrea Matarazzo assedia potenciais investidores para convencê-los a participar da concorrência. Sua meta é atrair gráficas, laboratórios farmacêuticos, escolas e, principalmente, call centers, que poderão aproveitar uma das maiores concentrações de linhas telefônicas por metro quadrado do país. Cinqüenta empresas já manifestaram interesse em transferir-se para a região. Entre elas, está a Fundação Getulio Vargas, que pretende construir um campus universitário por lá.

Outras cidades já recorreram a medidas drásticas para recuperar seus centros degradados. Entre elas, Nova York e Londres. Chicago transformou um estacionamento gigantesco num jardim com esculturas e um palco de shows projetado por um dos mais famosos arquitetos vivos, Frank Gehry. Arrasada por quinze anos de guerra civil, Beirute, a capital do Líbano, consumiu 12 bilhões de dólares na reconstrução de cada um de seus edifícios, ruas e monumentos. A Cidade do México saiu de uma situação mais caótica do que a de São Paulo. Também lá, o centro era o endereço principal do crime. Pior: em 1985, um terremoto condenou a estrutura de 1.500 edifícios históricos, muitos deles construídos no século XVI. Uma década depois, empresários mexicanos doaram 1 bilhão de dólares para a recuperação da área. A iniciativa privada foi acompanhada pela do poder público, que restaurou calçadas e melhorou o policiamento. Atualmente, começam a ser construídos apartamentos de luxo na região.


Fotos Aymantrawi
DEPOIS DA TERRA ARRASADA
Beirute, a capital do Líbano, renasceu dos escombros após quinze anos de guerra civil. A reconstrução, bancada pela iniciativa privada, custou 12 bilhões de dólares

Mesmo no Brasil já foram feitas grandes reformas que mudaram a paisagem urbana. O Rio de Janeiro é pródigo nessas intervenções. Em 1902, o presidente Rodrigues Alves derrubou 1.600 edifícios de cortiços e abriu no lugar novas avenidas, ruas e praças. Até hoje, essas são as vias onde ficam as empresas mais importantes da cidade. O problema é que o bota-abaixo de 1902 tirou os pobres do centro, mas, como sói acontecer em terras brasileiras, não foi seguido de uma solução para essa horda – que acabou se refugiando nos morros, iniciando a formação das favelas. O Aterro do Flamengo é fruto de uma intervenção bem planejada dos anos 50. Nos anos 60, a favela da Praia do Pinto, no meio do Leblon, foi eliminada para dar lugar a um conjunto de apartamentos de classe média que se tornou conhecido como Selva de Pedra.

Um dos objetivos da demolição de parte do centro de São Paulo é reavivar a idéia de espaço público. O tecido urbano não pode ser dividido ou degradado sem mais nem menos por soluções da conveniência de ricos ou pobres. Assim como seria absurdo cercar os bairros elegantes com muros eletrificados, é também um despautério erguer paredes de lixo em torno dos centros empobrecidos. Evidentemente, os demagogos de plantão (veja quadro) classificam iniciativas como a da prefeitura paulistana de "higienistas". É um ponto de vista completamente equivocado. "Não se resolvem problemas urbanos sendo benevolente com os pobres, porque a única forma de eles saírem da miséria é recuperar a economia", diz o sociólogo Richard Sennett, da Universidade Harvard. Para os sem-teto da área central que atualmente dormem ao relento ou em buracos, a prefeitura de São Paulo oferece abrigos limpos e nos quais há vagas de sobra (por isso é só mais um ato de demagogia comparar o que está em curso na capital paulistana ao que ocorreu no Rio de Janeiro de 1902). O centro paulistano só estará recuperado quando a iniciativa privada acreditar que poderá se instalar nele e auferir lucros com isso – empregando decentemente, inclusive, pobres que hoje sobrevivem de expedientes informais. À demolição, pois.

O que mudará no centro de São Paulo



ÁREA LARANJA (a ser derrubada)

EXTENSÃO
150 000 metros quadrados
10 quarteirões

COMO É HOJE
500 dos 850 imóveis da região estão irregulares, muitos servem à prostituição e ao tráfico de drogas

ÁREA VERDE (que terá incentivo fiscal)

EXTENSÃO
250 000 metros quadrados
25 quarteirões

COMO É HOJE
Concentra o comércio de bugigangas e de eletrônicos, em grande parte piratas. Quem investir nessa região só pagará metade dos impostos municipais

Fonte: Prefeitura de São Paulo

O PECADO DA DEMAGOGIA


Antonio Milena
Lancelotti, seus pupilos e paróquia: protegidos por cerca elétrica

O padre Júlio Lancelotti, líder de uma organização política ligada ao PT chamada Pastoral da Rua (atenção, papa Bento XVI), comete todos os dias um pecado mortal – o da demagogia. Ele é o criador de uma categoria que leva o nome de "Povo da Rua". É a denominação de Lancelotti para mendigos, menores abandonados e loucos que vagam pelas ruas de São Paulo. A pretexto de defender o "Povo da Rua", o padre quer transformar uma situação precária – a dos sem-teto e que tais – em permanente. Toda e qualquer iniciativa para colocar esse pessoal em abrigos, custeados pela prefeitura, limpar os logradouros públicos de barracas e excrementos e livrar os transeuntes do risco de assaltos protagonizados por pivetes é torpedeada por Lancelotti com a classificação de "prática higienista". Os motivos do padre estão longe de ser religiosos. O que ele quer mesmo é ter à sua disposição um rebanho de manobra para fazer política.


Rogerio Cassimiro/Folha Imagem
A calçada da passagem que leva à Avenida Paulista: por que o padre não vai morar lá?

Se Lancelotti fosse mesmo sensível às necessidades do seu "Povo da Rua", começaria por oferecer abrigo na igreja da qual é pároco: a de São Miguel Arcanjo, no bairro paulistano da Mooca. A igreja, porém, tem grades nas portas e cerca elétrica nos muros – um aparato suficiente para definir aquela casa de Deus como um "bunker antimendigo". "Antimendigo" é a expressão usada por ele – e por jornalistas amigos seus – para classificar pejorativamente a iniciativa da prefeitura de São Paulo de colocar rampas de superfície áspera sob o viaduto que leva à Avenida Paulista. A administração municipal recorreu a esse expediente para desalojar os marginais que, instalados no local, assaltavam as pessoas que transitam por ali. Lancelotti continua a esbravejar que "as rampas antimendigo" fazem parte de uma "visão higienista". Pois bem, propõe-se aqui um acordo: a prefeitura retira as rampas e o padre abandona o seu bunker e passa a morar debaixo do viaduto. Lá, poderá controlar os assaltantes e encontrar a santa felicidade junto ao "Povo da Rua".


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