A solução é derrubar Edição 1938 . 11 de janeiro de 2006 A prefeitura de São Paulo vai demolir a parte mais degradada do centro da cidade e oferecer os terrenos à iniciativa privada Camila Antunes Filipe Araújo/AE | O ENDEREÇO DO CRIME A área a ser demolida e incluída na zona de benefícios fiscais pela prefeitura paulistana ficou conhecida como Cracolândia, por reunir traficantes e usuários da droga que é sinônimo de pobreza e degradação | Cesar Diniz/AE | O centro de uma cidade deveria ser como uma sala de visitas, onde se mostra o que se tem de melhor em casa. O centro de São Paulo, no entanto, parece um depósito de lixo. Sujo e degradado, foi abandonado por famílias, empresas e bancos. Seus imóveis caindo aos pedaços foram invadidos pela prostituição, pelo tráfico de drogas e pelo comércio de produtos piratas. A decadência começou nos anos 70, quando Paulo Maluf, então prefeito, construiu um viaduto de 3 quilômetros, o Minhocão, para resolver problemas de tráfego. A obra devastou o valor dos imóveis próximos, mas os engarrafamentos continuaram. Os desastres se sucederam nas administrações seguintes. Os calçadões criados por Olavo Setúbal em 1976 dificultaram o acesso aos escritórios e às lojas, levando a que muitos deles fechassem as portas ou se mudassem para os bairros. Para completar a degradação, Marta Suplicy instalou 400 famílias sem-teto em imóveis abandonados, enterrando de uma vez a possibilidade de recuperar a economia da região. Fotos divulgação | CARTÃO-POSTAL No centro de Chicago, um estacionamento gigantesco deu lugar a jardins e a um palco para shows criado pelo arquiteto Frank Gehry (acima) | | Alguns abnegados que ali permanecem ainda tentam recuperar o centro de São Paulo, estimulando a reforma de fachadas e fiscalizando a limpeza dos principais logradouros. Nos últimos anos, os governos da capital e do estado de São Paulo recuperaram muitos monumentos do centro, como a Estação da Luz, a Pinacoteca e a Sala São Paulo, usada para concertos de música erudita. Nenhuma dessas medidas interrompeu a degradação do centro, que, sem alternativa econômica, continuou sendo um reduto de pobreza. A ruína do centro paulistano é tamanha que só há uma maneira de resolver o problema: a demolição pura e simples de boa parte dele. O prefeito José Serra já tomou essa iniciativa em relação ao pedaço mais degradado, a Cracolândia. A região engloba dez quarteirões distribuídos em 150.000 metros quadrados próximos à Estação da Luz. Como avisa o nome, é reduto de traficantes e viciados – e prostitutas e ladrões, obviamente. A área será desapropriada e, em seguida, leiloada a empresas interessadas em se instalar no centro. Todos os 850 imóveis desses quarteirões poderão ser demolidos – nenhum deles, registre-se, de valor histórico. "São apenas um antro que atrapalha o funcionamento da cidade", diz o subprefeito Andrea Matarazzo, que chefia o projeto. Uma área maior, que compreende a Cracolândia e seu entorno, tornou-se uma zona de incentivo fiscal. Quem investir nos seus 25 quarteirões – cerca de 250.000 metros quadrados – terá desconto de até 60% em todos os tributos municipais. Arquivo Nacional/Acervo Correio da Manhã | NADA SAUDOSA MALOCA Na década de 60, a favela Praia do Pinto, no bairro carioca do Leblon, foi erradicada. Em seu lugar, surgiu um condomínio para a classe média | Oscar Cabral | Como não tem dinheiro em caixa para tocar a idéia, a prefeitura paulistana recorreu a uma peculiar engenharia financeira para reformar o centro. As desapropriações só serão pagas depois que o dinheiro arrecadado com a venda dos terrenos entrar no caixa municipal. Ou seja, depois que os atuais ocupantes dos imóveis já estiverem na rua. A idéia só dará certo, portanto, se aparecerem compradores para os quarteirões da Cracolândia. Para garantir o sucesso da licitação, Andrea Matarazzo assedia potenciais investidores para convencê-los a participar da concorrência. Sua meta é atrair gráficas, laboratórios farmacêuticos, escolas e, principalmente, call centers, que poderão aproveitar uma das maiores concentrações de linhas telefônicas por metro quadrado do país. Cinqüenta empresas já manifestaram interesse em transferir-se para a região. Entre elas, está a Fundação Getulio Vargas, que pretende construir um campus universitário por lá. Outras cidades já recorreram a medidas drásticas para recuperar seus centros degradados. Entre elas, Nova York e Londres. Chicago transformou um estacionamento gigantesco num jardim com esculturas e um palco de shows projetado por um dos mais famosos arquitetos vivos, Frank Gehry. Arrasada por quinze anos de guerra civil, Beirute, a capital do Líbano, consumiu 12 bilhões de dólares na reconstrução de cada um de seus edifícios, ruas e monumentos. A Cidade do México saiu de uma situação mais caótica do que a de São Paulo. Também lá, o centro era o endereço principal do crime. Pior: em 1985, um terremoto condenou a estrutura de 1.500 edifícios históricos, muitos deles construídos no século XVI. Uma década depois, empresários mexicanos doaram 1 bilhão de dólares para a recuperação da área. A iniciativa privada foi acompanhada pela do poder público, que restaurou calçadas e melhorou o policiamento. Atualmente, começam a ser construídos apartamentos de luxo na região. Fotos Aymantrawi | DEPOIS DA TERRA ARRASADA Beirute, a capital do Líbano, renasceu dos escombros após quinze anos de guerra civil. A reconstrução, bancada pela iniciativa privada, custou 12 bilhões de dólares | | Mesmo no Brasil já foram feitas grandes reformas que mudaram a paisagem urbana. O Rio de Janeiro é pródigo nessas intervenções. Em 1902, o presidente Rodrigues Alves derrubou 1.600 edifícios de cortiços e abriu no lugar novas avenidas, ruas e praças. Até hoje, essas são as vias onde ficam as empresas mais importantes da cidade. O problema é que o bota-abaixo de 1902 tirou os pobres do centro, mas, como sói acontecer em terras brasileiras, não foi seguido de uma solução para essa horda – que acabou se refugiando nos morros, iniciando a formação das favelas. O Aterro do Flamengo é fruto de uma intervenção bem planejada dos anos 50. Nos anos 60, a favela da Praia do Pinto, no meio do Leblon, foi eliminada para dar lugar a um conjunto de apartamentos de classe média que se tornou conhecido como Selva de Pedra. Um dos objetivos da demolição de parte do centro de São Paulo é reavivar a idéia de espaço público. O tecido urbano não pode ser dividido ou degradado sem mais nem menos por soluções da conveniência de ricos ou pobres. Assim como seria absurdo cercar os bairros elegantes com muros eletrificados, é também um despautério erguer paredes de lixo em torno dos centros empobrecidos. Evidentemente, os demagogos de plantão (veja quadro) classificam iniciativas como a da prefeitura paulistana de "higienistas". É um ponto de vista completamente equivocado. "Não se resolvem problemas urbanos sendo benevolente com os pobres, porque a única forma de eles saírem da miséria é recuperar a economia", diz o sociólogo Richard Sennett, da Universidade Harvard. Para os sem-teto da área central que atualmente dormem ao relento ou em buracos, a prefeitura de São Paulo oferece abrigos limpos e nos quais há vagas de sobra (por isso é só mais um ato de demagogia comparar o que está em curso na capital paulistana ao que ocorreu no Rio de Janeiro de 1902). O centro paulistano só estará recuperado quando a iniciativa privada acreditar que poderá se instalar nele e auferir lucros com isso – empregando decentemente, inclusive, pobres que hoje sobrevivem de expedientes informais. À demolição, pois. O que mudará no centro de São Paulo ÁREA LARANJA (a ser derrubada) EXTENSÃO • 150 000 metros quadrados • 10 quarteirões COMO É HOJE 500 dos 850 imóveis da região estão irregulares, muitos servem à prostituição e ao tráfico de drogas ÁREA VERDE (que terá incentivo fiscal) EXTENSÃO • 250 000 metros quadrados • 25 quarteirões COMO É HOJE Concentra o comércio de bugigangas e de eletrônicos, em grande parte piratas. Quem investir nessa região só pagará metade dos impostos municipais Fonte: Prefeitura de São Paulo | | O PECADO DA DEMAGOGIA Antonio Milena | Lancelotti, seus pupilos e paróquia: protegidos por cerca elétrica | O padre Júlio Lancelotti, líder de uma organização política ligada ao PT chamada Pastoral da Rua (atenção, papa Bento XVI), comete todos os dias um pecado mortal – o da demagogia. Ele é o criador de uma categoria que leva o nome de "Povo da Rua". É a denominação de Lancelotti para mendigos, menores abandonados e loucos que vagam pelas ruas de São Paulo. A pretexto de defender o "Povo da Rua", o padre quer transformar uma situação precária – a dos sem-teto e que tais – em permanente. Toda e qualquer iniciativa para colocar esse pessoal em abrigos, custeados pela prefeitura, limpar os logradouros públicos de barracas e excrementos e livrar os transeuntes do risco de assaltos protagonizados por pivetes é torpedeada por Lancelotti com a classificação de "prática higienista". Os motivos do padre estão longe de ser religiosos. O que ele quer mesmo é ter à sua disposição um rebanho de manobra para fazer política. Rogerio Cassimiro/Folha Imagem | A calçada da passagem que leva à Avenida Paulista: por que o padre não vai morar lá? | Se Lancelotti fosse mesmo sensível às necessidades do seu "Povo da Rua", começaria por oferecer abrigo na igreja da qual é pároco: a de São Miguel Arcanjo, no bairro paulistano da Mooca. A igreja, porém, tem grades nas portas e cerca elétrica nos muros – um aparato suficiente para definir aquela casa de Deus como um "bunker antimendigo". "Antimendigo" é a expressão usada por ele – e por jornalistas amigos seus – para classificar pejorativamente a iniciativa da prefeitura de São Paulo de colocar rampas de superfície áspera sob o viaduto que leva à Avenida Paulista. A administração municipal recorreu a esse expediente para desalojar os marginais que, instalados no local, assaltavam as pessoas que transitam por ali. Lancelotti continua a esbravejar que "as rampas antimendigo" fazem parte de uma "visão higienista". Pois bem, propõe-se aqui um acordo: a prefeitura retira as rampas e o padre abandona o seu bunker e passa a morar debaixo do viaduto. Lá, poderá controlar os assaltantes e encontrar a santa felicidade junto ao "Povo da Rua". | | |