Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 02, 2007

Petrobras Faltou gás para o Rio e São Paulo

De apagão em apagão

Como a falta de planejamento e a inexistência
de competição podem tirar o gás da economia


Julia Duailibi

Divulgação
Fábrica da Bayer em Belford Roxo, no Rio: produção paralisada por falta de gás

Desde o apagão de 2001, os governos procuram convencer os brasileiros de que o gás natural é um ótimo substituto para a energia hidrelétrica e a gasolina. Seu consumo foi largamente estimulado. Deu certo. Desde 2000, o consumo de gás natural cresceu 120%. Seu uso é hoje imprescindível não apenas no 1,5 milhão de veículos e nas dezenas de fábricas que o utilizam, mas também, de forma emergencial, na geração de energia elétrica. Durante os períodos de estiagem, quando cai o nível dos reservatórios, são acionadas as cerca de vinte usinas termelétricas movidas a gás inauguradas depois do apagão. Tudo iria bem se houvesse gás em volume suficiente para abastecer ao mesmo tempo as usinas térmicas e os consumidores industriais. Mas não há. Na semana passada, para acionar as usinas térmicas devido ao baixo nível dos reservatórios de água, a Petrobras cortou o fornecimento de gás em 17%, em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde se concentram os dois maiores parques industriais do país. A medida pegou de surpresa duas grandes empresas, a Bayer e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que se viram obrigadas a interromper sua produção. Houve filas de carro nos postos de GNV (gás natural veicular). Na prática, para evitar um novo apagão elétrico, criou-se um novo apagão: o de gás.

Todo o gás natural no Brasil é fornecido pela Petrobras. Metade dele vem da Bolívia, e o restante, de poços brasileiros. O fornecimento aos consumidores finais (como a Bayer) é feito por meio de distribuidoras privadas. O corte da semana passada atingiu a distribuidora CEG, do Rio, e a Comgás, de São Paulo. Segundo a Petrobras, essas distribuidoras venderam a seus clientes gás acima do contratado com a estatal. Portanto, ainda de acordo com a empresa, não teria havido um racionamento, mas apenas a redução do fornecimento de gás para o nível acordado. A CEG tinha um contrato de compra de até 5,1 milhões de metros cúbicos por dia de gás natural. Mas, na prática, comprava 7,3 milhões. O mesmo ocorria com a Comgás, que comprava 14 milhões de metros cúbicos, embora o seu contrato fosse de 12,4 milhões. E por que as distribuidoras vendiam mais gás do que o volume contratado? Elas dizem ter sido estimuladas pelo próprio governo e que vinham tentando adaptar os contratos à demanda. "Quando havia um excedente de gás, as concessionárias eram estimuladas a comprá-lo, mas sem contrato. Esse processo todo, agora, cria uma insegurança em todo mundo", afirma Dilma Pena, secretária de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo.

Antonio Scorza/AFP
Fila de táxis em posto do Rio: o país tem 1,5 milhão de carros a gás

Quem tem razão nessa briga? Todos, e ninguém. O racionamento decorre pura e simplesmente da falta de planejamento de longo prazo e do baixo nível de investimento em infra-estrutura no país. Ninguém se importaria com a escassez de gás se os projetos de novas usinas hidrelétricas tivessem saído do papel. Como questões ambientais e regulatórias travam esses investimentos, ampliou-se a necessidade do gás de origem termelétrica. Já o baixo nível dos reservatórios não seria tão dramático em tempos de seca se houvesse mais fontes de gás no país. Mas não há uma coisa nem outra. O gasoduto Brasil-Bolívia, que representa metade do consumo nacional, está no seu limite. O projeto de ampliá-lo não foi adiante nem será agora com o risco político representado pelo fanfarrão presidente boliviano Evo Morales. A Petrobras preferiu dedicar-se de corpo e alma à meta de atingir a auto-suficiência em petróleo. Outro ponto a ser considerado é a falta de concorrência no fornecimento do combustível. Em tese, qualquer empresa privada poderia competir com a Petrobras na produção de gás. O problema é que os gasodutos existentes estão nas mãos da Petrobras. Haveria a possibilidade de importar gás liquefeito, mas a infra-estrutura portuária necessária para isso ainda não existe. Na prática, o fornecimento de gás no país depende apenas do planejamento de uma única empresa.

Nos estertores da antiga União Soviética, havia falta crônica de produtos básicos, que eram racionados. Apenas os caciques do Politburo tinham acesso total a itens diversificados, inclusive importados do mundo capitalista. Esse é o tipo de disfunção que ocorre quando burocratas tentam definir as necessidades das pessoas, atropelando a livre lei dos mercados e dos desejos individuais. Guardadas as devidas proporções, o Brasil também teve uma economia fechada. Nos últimos quinze anos, no entanto, o país vem se integrando cada vez mais à economia mundial, e nunca antes o acesso a bens foi tão disseminado. O consumo avançou tão rapidamente que o Brasil começa a trombar cada vez mais em seus limites. As reformas foram feitas pela metade, ainda falta muito a privatizar e inexiste planejamento de longo prazo. Enquanto não houver investimentos em hidrelétricas e em novas fontes de gás, esse mesmo roteiro virá sempre à tona. Até lá, a sorte do país estará nas mãos das chuvas de São Pedro e do gás de Evo Morales.

Com reportagem de Cíntia Borsato




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Fotos Stéferson Faria/Petrobras, Celio Junior/AE, Ricardo Rollo

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