Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 10, 2007

O Som e a Fúria de Tim Maia, de Nelson Motta

140 quilos de som
e transgressão

Uma biografia de Tim Maia mostra como o inventor do samba
soul alcançou o sucesso mesmo mergulhado numa rotina
vertiginosa de drogas e álcool. O vício o fazia faltar aos
próprios shows e lhe rendeu 300 processos judiciais


Okky de Souza

Oscar Cabral
Nelson Motta (à esq.), autor do livro: anos de espera até a Justiça determinar os herdeiros legítimos de Tim Maia (à dir.)

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Trecho do livro

Em matéria de histórias folclóricas sobre vida pessoal e profissional, ninguém supera Tim Maia na música brasileira. Nem mesmo João Gilberto. Conviver com Tim, ainda que por poucos minutos, era garantia de levar do encontro grandes recordações – para o bem ou para o mal. O cantor e compositor que produziu sucessos do quilate de Primavera, Azul da Cor do Mar e Sossego, morto em 1998, aos 55 anos, era um rolo compressor de irreverência, transgressão e grosseria. Implicava com a aeromoça? Chamava-a em público de aerovelha. Era vaiado por entrar no palco bêbado, drogado e sem condições de cantar? Brindava a platéia com uma saraivada de palavrões. Em contrapartida, o doidão-mor da música brasileira cultivava um senso de humor do tamanho de seu corpanzil. Suas tiradas, como "Não fumo, não cheiro e não bebo, mas às vezes minto um pouquinho", dita pela primeira vez numa entrevista a VEJA, desarmavam até seus desafetos. Em outra de suas piadas, acrescentou um rabicho a um célebre aforismo do anedotário brasileiro. "O Brasil é o único país onde prostituta tem orgasmo, cafetão tem ciúme e traficante é viciado", diz a frase original. "E pobre é de direita", emendou Tim. Além disso, ele era de uma enorme generosidade para com os amigos, os parceiros e a família. Um exemplo: em sua casa, sempre cheia dos tipos mais exóticos, quem atendesse a um telefonema de um empresário contratando um show levava na hora uma porcentagem do cachê.

Essa combinação de besta-fera com figura humana terna emerge com todas as tintas em Vale Tudo – O Som e a Fúria de Tim Maia (Objetiva, 392 páginas, 49,90 reais), biografia do compositor assinada pelo escritor e produtor musical Nelson Motta, nas livrarias na semana que vem. Como escreve o autor, nem um ficcionista seria capaz de imaginar as peripécias que Tim Maia viveu e as trapalhadas em que se metia. Motta era amigo pessoal de Tim e conviveu profissionalmente com ele em diversas passagens de sua carreira. Em 1969, foi um dos primeiros a colocá-lo sob holofotes, convidando-o a fazer um dueto com Elis Regina num disco da cantora produzido por ele. Após a morte do compositor, Motta decidiu escrever sua biografia. Não imaginava que o projeto teria de ser adiado por vários anos porque, mesmo depois de morto, as confusões de Tim Maia continuaram a assombrar o mundo dos vivos. Seu primeiro passo foi procurar os herdeiros legais de Tim para negociar com eles os direitos sobre a obra. Queria evitar o que ocorreu com a biografia de Garrincha, recolhida das livrarias depois que os herdeiros do jogador moveram uma ação judicial contra o autor e a editora.

Fotos álbum de família
Tim, aos 21 anos, como guia de turismo na Ilha de Paquetá: bico para ajudar a família

Ao procurar quem negociava em nome de Tim Maia, Motta ficou surpreso. Havia herdeiros verdadeiros e falsos, presumidos e assumidos, supostas ex-mulheres, filhos adotivos e biológicos – uma confusão monumental. Afinal, um juiz foi designado para desfazer o emaranhado familiar e tocar o longo inventário. Desfeito o imbróglio, concluiu-se que o único herdeiro de Tim é seu filho Carmelo Maia, hoje com 32 anos, formado em teatro e que administra o acervo deixado pelo pai. Tim lhe legou uma bela fortuna em direitos autorais sobre a edição de suas músicas, mas também lhe repassou uma formidável dor de cabeça – quase 300 processos judiciais em que figurava como réu, movidos por empresários, casas noturnas, músicos e bicões que alegam ter parceria em canções. "Tim poderia ter ganho muitos desses processos, mas jamais compareceu às audiências determinadas pelos juízes", diz Júlio César Figueiredo, advogado de Carmelo.

Vários dos processos sofridos por Tim Maia decorrem daquele que era seu hábito mais notório: o de não aparecer nos próprios shows, deixando a platéia a ver navios e, às vezes, promovendo enormes tumultos. Tim agradava a todos os públicos e se apresentava tanto em casas noturnas luxuosas quanto em barracões de subúrbio. Onde quer que fosse, deixava os donos dos locais roendo as unhas e torcendo para que ele aparecesse. Certa vez, anunciado a semana inteira como a grande atração do programa Domingão do Faustão, não apareceu e a Rede Globo durante anos proibiu sua presença nos programas da emissora. Melhor sorte tinha o apresentador Chacrinha. Quando desconfiava que Tim iria dar o cano em seu programa, pedia a intervenção da mãe do compositor, de quem era amigo. Sempre funcionava. Dona Maria Imaculada, mãe de Tim Maia, era a única pessoa a quem o compositor ouvia e respeitava.

Na TV, na época da jovem guarda, com Eduardo Araújo e coristas: sonhando em namorar as menininhas de Copacabana

Em geral, Tim Maia faltava aos shows porque na noite anterior havia se entregado ao que chamava de "triátlon", uma maratona de uísque, cocaína e maconha, em companhia de amigos, sem hora para terminar. Freqüentemente, após um triátlon, ele até queria fazer o show da noite seguinte, mas sua voz estava inutilizada. Às vezes, Tim estragava os próprios shows, reclamando o tempo todo do técnico de som ou entrando trôpego em cena. Durante uma apresentação na boate de um hotel de São Paulo, exibia-se em estado lastimável para uma platéia de grã-finos, quando uma senhora, chocada com o espetáculo, levantou-se para ir embora. Tim não perdoou: "Já vai, dona Maria? Já vai tarde, mocréia!" E passou a conjecturar o que ela faria depois que saísse do local – coisas impublicáveis, evidentemente. Tim vivia alterado, em diferentes graus. Um hotel paulista o baniu como hóspede depois que ele protagonizou um incidente peculiar. Saiu à porta para pegar um táxi no ponto em frente e se encaminhou para o primeiro carro da fila. O motorista conversava animadamente com os colegas metros atrás e o ignorou. Como a chave estava na ignição, Tim entrou no carro, deu a partida e saiu dirigindo. Duas horas depois, estacionou o táxi nos fundos do hotel e deixou uma soma na recepção para pagar a corrida.

Com a última companheira, Adriana, na limusine em que percorreu os Estados Unidos um ano antes de morrer

Na infância, Tim Maia já aprontava das suas, na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde nasceu. Aos 12 anos, ajudava a família distribuindo pelo bairro as marmitas preparadas na pensão de seu pai – no caminho, aliviava o peso da carga comendo um pouquinho de cada marmita. Na adolescência, mergulhou no rock juntamente com os amigos Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Jorge Ben, que integravam a turma do Divino, um bar da Tijuca. Todos participavam de conjuntinhos e sonhavam em morar em Copacabana para namorar as meninas lindas que apareciam nas revistas ao lado do pessoal da bossa nova. Aos 16 anos, Tim Maia conseguiu uma passagem barata para os Estados Unidos, numa excursão de padres, e desembarcou em Nova York com 12 dólares no bolso. Nesse período, flertou com a marginalidade ao viajar por nove estados do país com um trio de amigos barras-pesadas, num carro roubado cheio de bebidas e drogas, fazendo pequenos furtos. Foi preso na Flórida e, depois, deportado para o Brasil. "Nunca mais ponha os pés aqui", foi a última frase que ouviu nos Estados Unidos. O lado bom da desdita americana é que Tim trouxe na bagagem tudo o que absorvera da nova música que tomava conta dos EUA, o rhythm'n'blues, o balanço irresistível de Sam Cooke e Smokey Robinson and The Miracles. Essa foi sua escola. Mais tarde, Tim transpôs os arranjos repletos de metais da soul music americana para os ritmos brasileiros e inventou o seu som inconfundível.

Rede Globo
No especial de fim de ano de Roberto Carlos, em 1985: amigos desde a adolescência, quando ouviam rock juntos nos bares da Tijuca

Por meandros que só o jeito Tim Maia de ser explica, mesmo sendo deportado dos Estados Unidos, ele conseguiu voltar ao país, um ano antes de morrer. Com sua última companheira, Adriana Silva, fez uma viagem nostálgica por lá – de limusine. O motorista era um português contratado inicialmente para levar o casal apenas de Miami a Orlando, um trajeto de poucas horas. Diante dos argumentos intimidadores de Tim Maia, e de generosas gorjetas, o motorista foi em frente até Washington e, depois, Nova York, embora não tivesse sequer uma troca de roupa. Ao chegar a Nova York, a trupe se hospedou no tradicional Hotel Delmonico's e Tim causou constrangimento na recepção ao perguntar a funcionários e hóspedes onde poderia conseguir um fuminho. Em março de 1998, no meio de um show em Niterói, Tim Maia começou a cambalear no palco e sua voz travou. O público, julgando-o bêbado e drogado, começou a vaiar. Tim não havia fumado maconha nem bebido. Fora acometido por uma crise de hipertensão, embolia pulmonar e parada cardiorrespiratória. Foi internado numa UTI, onde morreria uma semana depois. Até os 50 anos, orgulhava-se de nunca em sua vida adulta ter consultado um médico. Como tantos artistas que levam a transgressão ao limite, Sebastião Rodrigues Maia não deixa exemplo de vida para ninguém, mas sua obra continua a ser admirada e a influenciar as novas gerações.

Frases

"FIZ UMA DIETA RIGOROSA, CORTEI ÁLCOOL, GORDURAS E AÇÚCAR. EM DUAS SEMANAS PERDI 14 DIAS."

"DOS ARTISTAS DO RIO, METADE É PRETO QUE ACHA QUE É INTELECTUAL E METADE É INTELECTUAL QUE ACHA QUE É PRETO."

"NÃO FUMO, NÃO CHEIRO E NÃO BEBO, MAS ÀS VEZES MINTO UM POUQUINHO."

"MAIS GRAVE! MAIS AGUDO! MAIS ECO!
MAIS RETORNO! MAIS TUDO!"

QUEIXANDO-SE PARA O TÉCNICO DE SOM, NOS SHOWS

"COM OS ACORDES QUE TEM EM UMA MÚSICA DO TOM JOBIM DÁ PARA FAZER UMAS CINQÜENTA."

"AGRADEÇO À MINHA MÃE, MARIA IMACULADA, MEUS SOBRINHOS, OS PADRES CAPUCHINHOS E OS TROMBADINHAS DA PRAÇA DA BANDEIRA. APESAR DE TER FEITO UM COMERCIAL PARA A MITSUBISHI, A SHARP MORA NO MEU CORAÇÃO. BOA NOITE."
AO RECEBER O PRÊMIO SHARP DE 1991

"ISSO É DESUMANO. NEM NO FUNDO MUSICAL DO XOU DA XUXA EU POSSO CANTAR. ASSIM AS CRIANÇAS CRESCEM SEM SABER QUEM É O TIM MAIA. "
COMENTANDO SOBRE A DECISÃO DA REDE GLOBO DE BANIR TIM DE TODOS OS PROGRAMAS DA EMISSORA, DEPOIS QUE ELE FALTOU AO DOMINGÃO DO FAUSTÃO

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