Brad Pitt e Casey Affleck visitam as origens
da cultura da celebridade num faroeste lento,
pensativo e altamente original
Isabela Boscov
Divulgação |
Affleck como o assassino de Jesse James (Pitt, na foto acima): sem fãs não há fama |
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Certos filmes são tão obstinados na maneira de contar uma história que não há como gostar ou desgostar deles pela metade; é preciso aceitá-los inteiros e ver suas falhas como parte indispensável de sua personalidade. O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, Estados Unidos, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país, é um desses casos. Segundo trabalho na direção do neozelandês Andrew Dominik (o primeiro, Chopper, de 2000, revelou Eric Bana), esse novo acréscimo ao cânone do lendário bandido Jesse James é, para efeitos práticos, um western. Mas um western lento, pensativo, de poucos tiros que contam muito, e no qual as cores quentes da poeira e do sol são trocadas pelas luzes frias e inóspitas da fotografia magistral de Roger Deakins. Trata-se, principalmente, de um western com idéias muito contemporâneas sobre os protagonistas mencionados no título.
Jesse James morreu em 1882, aos 34 anos, tendo muito antes disso passado à história como uma espécie de semideus – um homem sociável e carismático, muito mais arguto que qualquer xerife ou detetive da então onipresente agência Pinkerton, que mantinha a fidelidade aos ideais sulistas derrotados na Guerra Civil (1861-1865) e que roubava dos ricos para dar aos pobres. Seu currículo de dezenas de assassinatos e assaltos se encerrou, porém, com um tiro pelas costas, disparado por um jovem que acolhera em seu bando – Robert Ford, que ficaria marcado como um covarde e um traidor. Isso é o que diz o folclore. O que Andrew Dominik vê nele, entretanto, é um episódio exemplar na formação de uma cultura tão americana quanto a do faroeste – a da celebridade e da auto-invenção.
O diretor segue um caminho à primeira vista familiar: o da -des–construção do mito. Contrastando imagens impressionistas com narração em off desapaixonada, ele mostra que as qualidades atribuídas a Jesse James são, na verdade, a versão que ele próprio teceu de sua brutalidade, amoralidade e narcisismo. No único de seus roubos mostrados no filme, ele mata de forma gratuita um contador que se recusa a abrir um cofre. Noutra cena, tortura um menino à cata de uma informação que ele obviamente não possui. E, durante quase duas horas, extravasa sua paranóia caçando com método, um a um, os integrantes de sua gangue. Alguns ele assassina pelas costas, depois de lhes sorrir pela frente. O que logo se percebe é fascinante: esse não é "o homem por trás do mito". Na ótima interpretação de Brad Pitt, feita com o conhecimento de causa de quem todo dia estampa tablóides, Jesse James deixou de ser um homem. Não passa de um mito ocupado de sua própria manutenção. Robert Ford, o rapaz que cresceu lendo sobre as aventuras de Jesse em jornais e romances baratos, é a variável sem a qual essa equação não existe: o fã ardoroso. O problema é que o jovem Robert não quer apenas ser como o seu objeto de desejo. Quer devorá-lo e se transformar nele. Não consegue desistir desse propósito nem quando as rachaduras na fachada de seu herói se tornam evidentes. À sua obsessão, então, junta-se outro fator – o desprezo por si mesmo.
Aí O Assassinato de Jesse James se revela por inteiro: esta não é a balada de um bandido e seu fim violento, como nos vários filmes já feitos sobre o personagem, mas a história do encontro entre dois homens vazios, que imaginam poder se preencher um ao outro. Casey Affleck, o irmão mais novo e bem mais talentoso de Ben Affleck, conta essa história no próprio rosto, no papel de Robert Ford. Informe, furtivo e com expressões vacilantes como as de um bebê na primeira parte do filme, ele se altera por completo nos extraordinários vinte minutos finais, que traçam a trajetória do rapaz a partir do disparo na nuca de Jesse. Primeiro, num período de intensa notoriedade, durante o qual Robert e seu irmão Charley (Sam Rockwell) mataram o bandido outras 800 vezes nos palcos do vaudeville. Depois, durante sua lenta e irrevogável queda em desgraça, que ganhou um ponto final quando outro sujeito sem senso de identidade atirou nele para fugir ao anonimato.
Por causa de seus silêncios, suas tomadas longas e suas cenas de campos de trigo ao vento, que às vezes testam a paciência da platéia, Andrew Dominik vem sendo comparado, em suposta desvantagem, ao cineasta recluso Terrence Malick, de Dias de Paraíso e Além da Linha Vermelha. Ao contrário de Malick, porém, que concebe o cinema como uma exploração com destino incerto (e às vezes sem destino nenhum), Dominik sabe aonde quer chegar: a esse desfecho antológico, que tem tanto a dizer sobre os Estados Unidos do século XIX quanto à cultura da imagem que se cristalizou no século XXI. Antes como hoje, ele propõe, a existência por procuração não é existência. É só vazio.