Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 18, 2007

FERREIRA GULLAR

O imperador republicano

Dom Pedro 2º foi um governante íntegro, austero e solidário com os humildes e escravos

ONTEM, 17 de novembro, fez 118 anos que dom Pedro 2º, deposto do trono dois dias antes, foi forçado a embarcar em um vapor ancorado no porto do Rio de Janeiro. O temor do tenente-coronel Mallet, encarregado de levá-lo numa lancha, era que, ao transferi-lo para o vapor, na escuridão da noite, ele caísse no mar e se afogasse, já que dom Pedro, com um 1,90 m de altura, era muito grande e pesado.
Li isso no excelente perfil do imperador escrito por José Murilo de Carvalho, um livro bom de ler, que alia erudição e lucidez a uma narração objetiva e bem-humorada. Esse livro mostra-nos quem foi de fato aquele homem que, contra sua vontade, ocupou o trono do império brasileiro durante 49 anos.
Se, criancinha, reagiu chorando à aclamação do povo no Campo de Santana, aos 65 anos receberia com serenidade a notícia de sua deposição. "Estão todos malucos", exclamou, referindo-se aos golpistas -e voltou os olhos para o livro que lia.
Aliás, ele lia como ninguém, e seu interesse pelas ciências, pela literatura e pelas religiões durou toda a vida. Falava latim, francês, inglês, alemão, italiano e espanhol; lia grego, árabe, hebraico, sânscrito, provençal e tupi-guarani. Os caricaturistas, no entanto, o ridicularizaram por ler muito e ter por hobby a astronomia. A intenção era mostrar que ele vivia no mundo da lua e talvez vivesse, mas nem sempre, porque, quando Solano López invadiu Mato Grosso, ele montou num cavalo, dirigiu-se ao Paço Imperial e ali conclamou o povo a defender a honra do Brasil. Finda a guerra, quiseram erguer duas estátuas em sua homenagem. Ele repeliu a idéia, tal era seu horror a pompas e rapapés.
Isso se deve em parte à maneira como foi educado, com o propósito, diz José Murilo, de fabricar-se um príncipe perfeito. Impressiona a clareza do projeto de formá-lo e, sobretudo, a consciência dos valores que devem constituir o caráter e a visão de um governante, mas é verdade também que ele tinha pendor para os estudos, deixando muitas vezes de brincar para estudar.
Decretada a maioridade do jovem monarca, era preciso casá-lo, mas as famílias reais européias, lembrando-se de Pedro 1º, temiam dar-lhe uma filha em casamento, com conseqüências imprevisíveis. Em desespero de causa, negociou-se o casamento de Pedro 2º com uma irmã de Fernando 2º das Duas Cecílias. Ao ver o retrato da possível noiva, Teresa Cristina, ele a achou linda e aceitou casar-se. Foi, porém, grande sua decepção quando a viu pessoalmente: era feia, gorda, baixota e manca. Ele chorou no ombro de sua aia, murmurando: "Enganaram-me, Dadama!".
Isso não ia ficar assim. Muito embora não fosse como seu pai, um atleta sexual, não se manteve fiel à esposa. Pelo contrário, corneou-a com muitas jovens e belas mulheres, solteiras ou casadas, como Mariquinha Guedes, um exemplo de beleza, ou a viúva Maria Leopoldina. Mas o amor de sua vida foi a condessa de Barral, por quem alimentou uma grande paixão, física e intelectual, que durou 26 anos. Entrementes, porém, teve outras amantes, como se vê pelas cartas que deixou: "Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de te cobrir de carícias", escreveu à condessa Villeneuve.
Mas não é isso que mais importa na personalidade de Pedro 2º. Ele foi um estadista íntegro, austero, solidário com os mais humildes e, particularmente, com os escravos. Duramente criticado pelos jornais, defendeu a liberdade de imprensa. Ao longo de seu reinado, nunca aceitou aumento da dotação do Estado à família imperial. Não acumulou dinheiro, as viagens que fazia ao exterior eram custeadas com empréstimos pessoais e ainda doava parte da dotação ao Tesouro. Quantos políticos brasileiros você conhece com tal desprendimento?
Dom Pedro 2º, por estranho que pareça, era republicano e abolicionista como sua filha, Isabel, que chegou a acoitar escravos fugidos no palácio imperial de Petrópolis. Assim, incompatibilizou-se com os fazendeiros, que condicionavam o apoio à monarquia ao apoio dele à escravidão. Assinada a Lei Áurea, Cotegipe disse à princesa Isabel: "Com a abolição, você redimiu uma raça, mas perdeu um trono".
No dia de hoje, há 118 anos, a uma da madrugada, o navio Alagoas partiu rumo à Europa, levando dom Pedro e a família real para o exílio. Ao passar por Fernando de Noronha, soltaram um pombo, que levava como mensagem de despedida a palavra saudade. Mas o pombo, de asas podadas, caiu no mar e afogou-se, diante de seus olhos. Dois anos depois, em Paris, dom Pedro morria. De amor pelo Brasil.

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