Ah, esses críticos
sinopse
Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br
Outro sintoma é a confusão entre instituição e pessoa. Os defensores de determinado mandarim garantem que a entidade - seja a CBF, seja a Osesp, seja um governo - não sobrevive sem eles, e tal ameaça faz que se perpetuem no poder. Assim como a "ideologia impessoal do liberalismo democrático" não fixou raízes profundas, como diz Sérgio Buarque de Holanda, ele mesmo crítico literário profissional, a tendência local é sempre desmerecer um argumento desmerecendo quem o defendeu. Se você diz isto, é porque é "burguês", "da elite branca", "sério demais" e outros qualificativos incríveis que ainda se usam no Brasil; se diz aquilo, é porque perdeu alguma vantagem, não é bem-sucedido, não tem diploma, etc. Este é o nível do debate nacional em voga, como se vê em polêmicas sobre os mais diversos assuntos - e cada vez mais, porque o mundo virtual garante o anonimato para que cada um berre mais alto de cada lado do muro. Não se consideram as idéias em si mesmas. Daí sua escassez.
Não que não existam bons críticos culturais no Brasil, capazes de analisar e selecionar, sem medo da incisividade. Mas eles são poucos e logo esquecidos. Veja o que está acontecendo com a obra de Edmund Wilson, o grande crítico americano, 25 anos depois de sua morte. Acaba de ganhar dois volumes na Library of America, uma coleção que não tem similar no Brasil. O prestígio dela vem do fato de que é muito criteriosa, só inclui os autores realmente grandes - de Mark Twain a Philip Roth, um dos três únicos vivos (ao lado de Philip K. Dick e Paul Bowles, mas Roth com cinco volumes) - e faz edições definitivas. De críticos, sem contar ensaístas e coletâneas, traz, além de Wilson, apenas James Agee, resenhista de cinema e jornalista literário.
Algumas resenhas de Wilson são inéditas em livro, como a que trata de outro grande crítico americano, H.L. Mencken: "Mencken é a consciência civilizada da América moderna, seu estudo, sua inteligência e seu gosto, percebendo a grosseria de seus modos e mentes e gritando seu horror e sofrimento." Wilson também o foi, como herdeiro mais democrático e menos agudo de Mencken, e não importa que eu discorde dele em alguns temas. Ele não gostava, por exemplo, de Joseph Conrad, que Mencken adorava e cuja obra, por sinal, Philip Roth - cujo mais recente romance, Exit Ghost, curto no momento - disse ter lido ou relido durante o primeiro semestre todo do ano passado. Todo grande escritor, como Conrad e Roth, é antes de mais nada um grande leitor.
Um grande leitor brasileiro foi Augusto Meyer, de quem a editora José Olympio acaba de lançar um volume de Textos Escolhidos por Alberto da Costa e Silva. Iniciativas assim surgem de vez em quando; a mais importante delas é a da Topbooks com Otto Maria Carpeaux. Logo de saída, Meyer vai ao ponto: a má interpretação da frase "o estilo é o homem", que licencia atribuir tudo da obra à pessoa, como se "a asma de Proust, a gagueira de Machado, a epilepsia de Dostoievski e os males de entranha do pobre Eça" fossem traços estéticos... E olhe que Meyer não viveu para ver estes tempos em que os autores são qualificados de acordo com sua etnia e sexualidade.
Meyer não está ao nível de Carpeaux ou de Álvaro Lins e é um dos responsáveis pela idéia falsa de que Machado de Assis era melhor contista que romancista. Mas Antonio Candido também disse que Machado não compôs galeria memorável de personagens - e olhe Capitu, Brás Cubas, Aires ou Quincas Borba tão vivos entre nós - e Roberto Schwarz o transformou num crítico do capitalismo, como se Machado visse inocência antiburguesa em Capitu e fosse um precursor de Paulo Lins, autor de Cidade de Deus... Mas Meyer escreve muito bem sobre Dostoievski e Conrad, autores de romances mais intensos. "Pode ser também que cada um de nós tivesse a opinião do seu temperamento"... De quem é esta frase mesmo? Ah, sim: de Machado de Assis.
Duas leitoras atuais de qualidade são Leyla Perrone-Moisés e Leda Tenório da Motta. A primeira acaba de escrever Vira e Mexe Nacionalismo (Companhia das Letras), sobre um tema fundamental: a necessidade crônica da literatura brasileira (e latino-americana) de conceituar a identidade nacional - da qual escaparam poucos como Machado de Assis e Jorge Luis Borges, não por acaso os dois mais importantes do continente. "Tanto Machado como Borges são demasiadamente lúcidos para aceitar a nacionalidade como uma essência ontológica", diz. Ela vê Derrida mais como defensor da tradição do que ele mesmo diria e pinta Mario de Andrade como um satírico, esquecendo que Macunaíma sugere que a identidade brasileira é feita da falta de identidade; mas sua tese central é muito bem-vinda.
Leda Tenório, em Proust - A Violência Sutil do Riso (Perspectiva), não parte de uma tese original - a de que Em Busca do Tempo Perdido é um ciclo de romances com muito mais humor e senso cômico do que se costuma pensar -, mas faz isso com enorme consistência, apesar da linguagem às vezes empolada. Busca fontes na tradição literária francesa, como em Rabelais, Molière e Balzac, e na cultura judaica; mostra a duplicidade entre ação e divagação em sua obra, semelhante à de Baudelaire; analisa o impacto do Caso Dreyfus na maneira como Proust vê o absurdo daquela sociedade a que pertencia, do teatro de máscaras ao seu redor. Proust, por sinal, era crítico literário e teve entre suas grandes influências um crítico de arte, John Ruskin. Sim, há críticos que ficam por seu estilo e suas escolhas, não por suas estridências.
DE LA MUSIQUE (1)
Antonio Meneses é tão bom violoncelista que nos faz sentir enorme prazer com a interpretação de um compositor que nem admiramos tanto. É meu caso em relação a Mendelssohn, de quem acaba de lançar o CD Música para Violoncelo e Piano com Gérard Wyss (selo Clássicos; gravado em junho na Inglaterra pela Avie Records), com as Sonatas número 1 e 2, as Variações Concertantes e quatro Canções Sem Palavras. A concentração e a riqueza de Meneses, que acaba de festejar 50 anos, parecem abranger tudo, da citação mais refinada à emoção mais pura; parece que, quanto mais estuda uma obra, mais a executa de forma direta. "É preciso muito ensaio para ser espontâneo" (Fabrício Carpinejar).
DE LA MUSIQUE (2)
Há cinco anos Joni Mitchell lançou Travelogue, um CD retrospectivo, e disse que ia deixar a música e se dedicar à pintura. Agora, quase dez anos depois de seu último CD de canções inéditas, Taming the Tiger, ela reaparece com Shine. Não é um bom CD, porque muito irregular, mas há algumas faixas bonitas, como This Place, em seu estilo que poderia ser chamado de folk impressionista, e a versão do poema de Rudyard Kipling, If. Só por esta ousadia merece o registro.
POR QUE NÃO ME UFANO
A descoberta das reservas de petróleo e gás no campo de Tupi, curiosamente anunciadas em meio a uma crise de abastecimento de gás, é uma conquista da ciência, dos geólogos brasileiros em especial, não um trunfo político. Sua exploração vai levar alguns anos e exigir muito capital, logo não faz muito sentido essa tentativa de apropriação política por parte do governo Lula. De qualquer modo, Monteiro Lobato já se dá por feliz no túmulo da Consolação: durante décadas o escritor defendeu a exploração internacional do óleo para o bem do Brasil e até foi preso por isso; mais de 50 anos se passaram, e agora sim o País pode, mais que auto-suficiente, ser um exportador.
''''Tudo se precipita em lados opostos e, no fundo, semelhantes em sua falta de
distanciamento''''
''''Todo grande escritor, como Conrad e Roth, é antes de mais nada um grande leitor''''
Aforismos Sem Juízo
Passar da ansiedade juvenil diretamente para o conformismo adulto é perder o melhor da maturidade.