Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 04, 2007

DANIEL PISA

Em busca da essência perdida

daniel.piza@grupoestado.com.br, www.danielpiza.com.br

Não há semana que não seja pródiga em exemplos da corrupção e da incompetência com que o poder público é exercido no Brasil. Melhor ainda, ou pior ainda: não há semana que não seja pródiga em mostrar como a corrupção e a incompetência se alimentam mutuamente no exercício do poder público no Brasil. Vejo, por exemplo, as notícias sobre o mensalão do Zeca do PT, a falta de gás, a crise da aviação, a idéia golpista do terceiro mandato de Lula, a Copa da CBF e o escambo pela CPMF. Esses diversos apagões - transportes, energia, política - parecem unidos pelo velho apagão ético, prolongado nestes tempos de "um erro tucano justifica o outro petista" e "se o errado é praxe, então tudo é permitido". Porque o problema da corrupção não é apenas moral; é corroer o funcionamento da máquina, é vicejar à sombra do mérito e da legalidade.

Tais problemas são de ordem cultural, histórica, e não dizem respeito a uma essência, a uma propriedade ideal. Todas as grandes interpretações sobre o Brasil, à direita ou à esquerda, sofrem desse vício. De um lado, a cada hora se detectava um impedimento absoluto: o clima quente, o povo mestiço, a formação católica - raízes de nossa atemporal preguiça, malandragem, ineficiência. Era como se todo brasileiro fosse por definição ou por genética um sujeito sem vocação para o progresso, para o capitalismo civilizado. Do outro lado, tratou-se de converter esses impedimentos em qualidades igualmente absolutas: o brasileiro é alegre, flexível, criativo. O "jeitinho" é bom. Mesmo Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, que sabiam estar numa sociedade em transformação, não conseguiram escapar dessa tensão idealista.

Até hoje ouvimos as classificações do que é ser brasileiro, como se alguns sentimentos humanos fossem exclusivos da nacionalidade, ao menos em grau. O brasileiro nunca "está" assim; ele sempre "é" assim. Daí a velha querela entre os que dizem que "o Brasil não tem jeito" e os que dizem "o Brasil é o melhor lugar do mundo para viver" - não raro saindo da boca da mesma pessoa, como o sujeito que vive descendo o pau no país e, quando ouve a crítica de um estrangeiro, se transforma instantaneamente em ufanista ofegante. Perde-se mais energia nessa busca pela essência perdida do que em trabalhar para que os óbvios problemas sejam resolvidos.

Como então começar a ter soluções mais práticas para as mazelas que historicamente se acumularam na sociedade e na mentalidade brasileira? Acho que a primeira providência é justamente afastar esses discursos totalizantes sobre o que é ou não é o Brasil, abandonar essa polarização entre copiar modelo pronto e inventar modelo original. Chega de fórmulas, de acreditar que a adoção de duas ou três medidas bastaria para o sonho de um Brasil "de Primeiro Mundo, mas sem os problemas do Primeiro Mundo". Mitos podem até ser necessários, por sua força aglutinadora, mas tomar decisões - ou deixar de tomá-las - em função de um país imaginário cada vez mais distante do real, de uma auto-imagem que não resiste a uma análise rigorosa, é tolice.

Se é verdade que a cultura brasileira não tem problemas de segregação ou conflito étnico na escala vista em outros países, que a natureza nos livrou de terremotos e que a unidade nacional jamais teve trauma de guerra civil, também é verdade que algumas idéias fundamentais da modernidade fixaram raízes fracas em nosso solo. Raymundo Faoro, nessa coletânea póstuma A República Inacabada, nota como o liberalismo brasileiro quase sempre foi de fachada: a filosofia liberal implicava, acima de tudo, o controle efetivo do poder, a distinção entre público e privado, a tentativa de pôr o esforço individual em favor do bem coletivo. Não é nem o "Estado mínimo" dos economistas do regime militar ou dos monetaristas tucano-petistas, inexistente em qualquer nação moderna, nem o "amparo social" da esquerda populista, dissociado do dinamismo tecnológico.

A própria tese de Faoro sobre o estamento burocrático que se perpetua no poder desde a independência do Brasil, acrescento, cai em interpretação essencialista. Muitos dizem que o problema é essa "elite" (sic) que "domina o país há 500 anos", como se o Brasil não tivesse mudado nada. Mas por que então o poder parece ter um mecanismo próprio, geração depois de geração, de tal modo que grupos diferentes chegam a ele com discursos diferentes e saem dele com heranças tão parecidas? Por que o governo chefiado por um ex-imigrante nordestino e operário sindicalista - não o primeiro pobre a "chegar lá", mas visto como tal pela maioria - atua de forma tão parecida quanto o de um oligarca ou plutocrata, enredado em laços personalistas com empreiteiras e corporações, mal fiscalizados e quase nunca punidos? Por que o Brasil continua a manter fora da cidadania ao menos metade de sua população?

Não se trata de uma "alma" extemporânea, mas de um padrão histórico que, com mutações, se prolongou. É produto de uma arquitetura institucional tosca e de uma mentalidade que a torna ainda mais precária. Mas não é intransponível. Países quentes, católicos e mestiços deram certo; não por serem quentes, católicos e mestiços, mas porque deixaram ilusões de lado e trataram de reformar gradualmente a sociedade, com pactos e focos, corrigindo distorções em vez de produzir desculpas. Não é preciso abdicar da informalidade e da simpatia para ser ético e objetivo; não se pode admitir a corrupção e a incompetência porque coisas "universais" e "naturais", essa falsa espécie de alegação iluminista que serve para os vícios e não para as virtudes. Esperto não é quem dribla as regras para esconder seu despreparo; esse é o "ishperto" - cujo filho pode ser educado a pensar o contrário.

RODAPÉ (1)

Da arte de escrever mal:


"Acreditava que todos ali tinham medo dele, porque sempre fora ruim, e a ruindade é a melhor coisa que se pode estabelecer num bandido para ser respeitado. Para ele não existia paz, arrependimento, não fazia nada de que não pudesse colher frutos depois, tudo que fazia de bem, jogava na cara do beneficiado, pois sofria quando não era retribuído, destruindo assim tudo que não passasse pela sua cruel compreensão do mundo, de vida, de relacionamento." (Cidade de Deus, de Paulo Lins, Companhia das Letras, edição comemorativa de dez anos.)

"O próprio Einstein contestou a célebre teoria da gravidade de Newton, afirmando que a gravidade não era uma força, como o físico inglês dissera, mas um campo no espaço continuum, criado pela presença de massa. Mas a famosa fórmula E = mc² ainda não perdeu sua credibilidade. Thomas Huxley, outro renomado matemático (sic), como Einstein (sic), criou uma de suas principais teorias também fazendo cogitações e equações matemáticas em seu gabinete." (O Romance Morreu, de Rubem Fonseca, Companhia das Letras.)

RODAPÉ (2)

Melhor ir aos clássicos:


"O que chamamos nossa conduta permanece ignorado de nosso mais próximo vizinho; o que esquecemos haver dito, ou que até nunca dissemos, vai provocar hilaridade até num outro planeta, e a imagem que os outros formam de nossos gestos e atitudes tampouco se parece com a que nós próprios formamos, como um desenho, um decalque malfeito, e onde ora a um traço negro corresponde um espaço vazio, e a um branco, um contorno inexplicável. Pode aliás acontecer que o que não foi reproduzido seja algum traço irreal que só vemos por complacência, e que aquilo que parece acrescentado nos pertença de fato, mas tão essencialmente que nos escapa." (O Caminho de Guermantes, de Marcel Proust, tradução de Mario Quintana, editora Globo.)

"Escrito, bem escrito - Expressão usada pelos porteiros para designar os folhetins que os divertem." (Dicionário das Idéias Feitas, de Gustave Flaubert, tradução de Cristina Murachco, editora Nova Alexandria.)

POR QUE NÃO ME UFANO

A declaração do governador Nascimento, digo, Sérgio Cabral, de que favelas são fábricas de marginais e de que o aborto é necessário para conter a criminalidade, seria divertida se não fosse desastrosa. A maioria das pessoas que vive em favelas não é criminosa. E a fonte dessa idéia sobre o aborto é o best-seller Freakonomics, cuja consistência tende a zero. O combate ao crime e o controle de natalidade merecem melhor representante. Enquanto isso, a Justiça mantém sua longa tradição de livrar a cara dos ricos e poderosos, acatando a estratégia do deputado tucano da Paraíba, Ronaldo Cunha Lima, de renunciar para que o processo em que é acusado de homicídio volte à primeira instância e fique para o Dia de São Nunca. Por que Sérgio Cabral não chama o Judiciário ou o Congresso de fábrica de marginais?

Arquivo do blog