O Globo |
6/11/2007 |
A Copa de 2014 já está virando nossa utopia Meu amigo Paulo Perdigão morreu, há algum tempo. Era um grande crítico de cinema e louco por filosofia - Sartre, especialmente, de quem traduziu "O ser e o nada". Perdigão era idealista, angustiado, com manias intelectuais inusitadas como por exemplo remontar "Shane", de George Stevens, de modo que ele próprio aparecesse na cena da porrada final contra Jack Palance, dentro do saloon. Perdigão tinha um trauma: a Copa do Mundo de 1950. Seu pai, severo e seco, teve um gesto amoroso e levou-o pela primeira vez ao Maracanã, para ver a decisão entre Brasil x Uruguai. Ele aí, fascinado, com 10 anos. Aí, o Brasil perdeu. A felicidade do passeio com o pai deu lugar à quase certeza de que ele, menino, ali, junto ao pai desesperado, era o pé-frio, o culpado pela derrota. Passou a vida com esse sentimento de culpa, com essa obsessão da qual tentou se livrar escrevendo um conto genial e depois um livro sobre essa famosa desgraça nacional. No conto, ele descobre uma máquina do tempo e volta ao passado para salvar o Brasil e impedir o gol de Ghiggia. Chega ao estádio, vê a si mesmo junto ao pai, ainda menino, consegue se infiltrar no campo e se posta atrás da trave de Barbosa, para avisá-lo do perigo e inverter a derrota em vitória. Ele sabe tudo, o minuto, o segundo em que Schiafino vai pegar a bola e passá-la para Ghiggia, que vai chutar em gol. Naquele exato momento, como planejado, ele grita para Barbosa: "Cuidado, Barbosa!". E a tragédia se consuma. Barbosa olha para o lado, e a bola entra. A partir daí fica provado que ele era o culpado de tudo, nessa dobra do espaço-tempo que ele tentou iludir. O conto é maravilhoso, uma prefiguração brasileira de "Back to the future". Além do conto, Perdigão se obstinou nessa derrota de 50. Sabia cada lance, cada chute, examinando quadro a quadro as pobres imagens do jogo que existem nos vergonhosos arquivos nacionais. Logo depois, Perdigão desenvolveu uma teoria em seu interessantíssimo livro "Anatomia de uma derrota": de que o Brasil seria outro país se tivéssemos ganhado "aquela" Copa, "naquele" ano. Talvez não tivesse havido a morte de Getúlio nem a ditadura militar. É incrível e inteligente, porque talvez ele tivesse razão. Perdigão achava (e eu também) que as outras Copas não chegaram a sarar as feridas daquele dia. A vitória em 50 teria sido essencial para o progresso nacional. Ele escreve: "Foi uma derrota atribuída ao atraso do país e que reavivou o tradicional pessimismo da ideologia nacional: éramos inferiores por um destino ingrato. Tal certeza acarretou nos brasileiros a angústia de sentir que a nação tinha morrido no gramado do Maracanã..." Ali, tínhamos perdido uma grande chance histórica. E aí ele diz a frase rasgada de dor: "Nunca mais seremos campeões do mundo de 1950!". Não me levaram ao famoso Brasil x Uruguai em 50. Mas me lembro de meu avô, chorando e dizendo: "Só se ouvia o som dos pés das pessoas descendo as rampas. Ninguém falava. Só se ouviam os sapatos". "O silêncio era ensurdecedor" - esse foi o oximoro de meu avô para descrever aquele dia. O silêncio dos sapatos. A partir desse dia, associei futebol e país, numa "tabelinha histórica". As taças de 58 e 62 marcaram um momento de abertura econômica e de progresso cultural jamais visto: JK, Brasília, bossa nova, cinema, teatro, reformas populares em um país novo. Mas a esperança seria arrebentada em 64, pelo golpe. A Copa de 70 teve para mim um sabor amargo e doce, sob o sinistro sorriso do ditador Médici, legitimando a tortura e a morte de heróis. A taça de 70 foi outro oximoro: uma "alegria dolorosa". Eu imaginava torturadores e torturados no pau-de-arara, todos torcendo pelo Brasil. A vitória em 70 veio animar o torto "milagre brasileiro", que nos mergulhou em buracos de dívidas impagáveis. Depois, vieram: a derrota das eleições diretas, a morte de Tancredo Neves, que teve o mesmo gosto de fracasso de "Brasil x Uruguai"; depois, os "anos Sarney", quando parecia que o Brasil nunca mais sairia do buraco, descrente até mesmo da liberdade, com a falência do Estado e a descoberta de que a "democracia real" não existia dentro das instituições, nos alicerces do país. Depois desse período letárgico, com gosto de conto-do-vigário, os brasileiros convocaram o "bonapartismo narcísico" de Collor para "salvá-los" mais uma vez... O impeachment e os caras-pintadas foram o trailer da vitória de 94, com o governo FH raiando com "novas palavras". Quase no mesmo mês, derrotamos a inflação e viramos tetracampeões. Um novo tempo estava começando! Foi lindo! E agora? O que vem aí até 2014? Parece tão longe... Fica cada vez mais difícil sincronizar o ritmo do mundo com as Copas. As copas são lentas, vêm de quatro em quatro anos, e o tempo se acelerou, brutal e ávido. Se, em 50, achávamos que a Taça Jules Rimet nos salvaria da mediocridade, hoje vemos a Copa de 2014 como a fantasia de um país desenvolvido finalmente, com menos violência, corrupção, a república funcionando, as forças da nação mais conscientes. Como se disséssemos: "Ah... até lá tudo estará bem!" Será? Vivemos a Copa de 14 como uma utopia a ser realizada, organizados e respeitados. É essa a nossa esperança. Há uma retomada da fantasia de 57 anos atrás. 2014 será nossa redenção? - pensamos. Ao pensar isso, ouço a voz de meu amigo Perdigão sentenciando nosso destino e acho que talvez ele esteja certo: "Nunca mais seremos campeões do mundo de 1950!" |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, novembro 06, 2007
Arnaldo Jabor - Nunca mais seremos campeões do mundo de 50
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