Tropa de Elite, o filme mais visto e mais comentado
da história do cinema brasileiro, é uma obra de ficção.
Mas retrata com uma fidelidade jamais vista como a
criminalidade degradou o Brasil de alto a baixo
Marcelo Carneiro
Divulgação |
VEJA TAMBÉM
|
Para ser qualificada de grande, uma obra de arte precisa estabelecer conexões profundas com as pessoas. Ao analisar o papel das tragédias teatrais, por exemplo, o filósofo grego Aristóteles concluiu que elas acabavam por purificar os espectadores quando lhes causavam sentimentos de terror e compaixão. Isso porque, depois de experimentá-los, as pessoas sairiam aliviadas, purgadas dos próprios pesadelos. Aristóteles chamou a isso catarse. O tipo de conexão proporcionado por Tropa de Elite, do diretor José Padilha, é de outra ordem. Trata-se de um grande filme justamente pelo contrário: ele não concede válvulas de escape ao retratar como a criminalidade degradou o país de alto a baixo. O pesadelo real ganha ainda mais nitidez. A sociedade brasileira, pelo jeito, ansiava por esse tapa na cara dado pelo capitão Nascimento, o policial interpretado magistralmente por Wagner Moura. Lançado há apenas duas semanas, Tropa de Elite já é o filme mais visto e comentado da história do cinema brasileiro. As salas de exibição lotam em todas as sessões e estima-se que mais de 11 milhões de pessoas tenham assistido ao filme em DVDs piratas que inundaram os camelôs de várias capitais do país (veja reportagem). Gírias policiais reproduzidas no filme e trechos de diálogos entre os personagens – como "pegou geral" e "01 pede pra sair" – tornaram-se bordões repetidos nas mais diversas situações.
O assunto da obra do diretor José Padilha é a guerra diuturna que a polícia carioca move contra os traficantes de drogas encastelados nos morros favelizados da cidade. Mais especificamente o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), a tropa de elite do título. O tráfico de drogas, o nervo mais exposto de um país em desordem e refém do medo (veja o quadro), é tema comum na cinematografia nacional recente. A diferença é que esse filme o aborda pondo os pingos nos is. Bandidos são bandidos, e não "vítimas da questão social". Há policiais corruptos, mas também muitos que são honestos. Se existem traficantes de cocaína e maconha, é porque há milhares de consumidores que os bancam. Muitos desses consumidores, aliás, são aqueles mesmos que fazem "passeatas pela paz" e compactuam com a bandidagem para abrir ONGs em favelas. Por último, a brutalidade de alguns policiais pode ser explicada pelo grau de penúria e abandono que o estado lhes reserva.
Fotos Ricardo Moraes/AP |
MISSÃO DADA É MISSÃO CUMPRIDA Policiais do Bope carregam corpo de traficante morto em confronto: tropa treinada para não fazer reféns |
Ditas de maneira tão simples, essas verdades parecem de uma obviedade ululante. E são. Mas o Brasil, infelizmente, é um país de idéias fora do lugar por causa da afecção ideológica esquerdista que inverte papéis, transformando criminosos em mocinhos e mocinhos em criminosos. Aqui, a "questão social" é justificativa para roubos, assassinatos e toda sorte de crime e contravenção – mesmo quando praticados por quadrilhas especializadas, compostas por integrantes que nada têm de coitadinhos. O apresentador Luciano Huck que o diga. Dois ladrões roubaram-lhe um relógio caro em São Paulo e ele, indignado, atreveu-se a escrever um artigo no jornal Folha de S. Paulo para reclamar da falta de segurança. Por ser um homem rico, da elite, Huck sofre um linchamento moral. Há até quem pergunte se ele "mereceu ser roubado". Existe quem mereça?
UM PAÍS COM MEDO Cidadãos na linha de tiro, em confronto entre policiais e bandidos no Rio de Janeiro: para a maioria esmagadora da população, não há dúvida de quem são os vilões |
Tentaram fazer o mesmo com Tropa de Elite. Os ideólogos que o rotularam de "fascista" viram-se, porém, obrigados a dobrar-se ao sucesso do filme. Na semana passada, a pedido de VEJA, o instituto Vox Populi realizou uma pesquisa para medir o impacto de Tropa de Elite nos espectadores. Os resultados indicam por que o filme é arrebatador. Na opinião de 72% dos entrevistados, os criminosos que aparecem no filme são tratados como merecem. Quase 80% deles concordam que a polícia é apresentada com fidelidade – ou seja, tem uma banda podre e uma banda boa. Tropa de Elite agrada também por abordar a responsabilidade dos usuários de drogas sem meias palavras. O capitão Nascimento diz que o "playboy" que fuma um cigarro de maconha é o responsável pela morte de um traficante abatido pelo Bope. A afirmação encontra eco na população. Para 85% dos espectadores, o raciocínio do capitão Nascimento está correto. O policial vivido por Wagner Moura ganhou enorme popularidade, mas isso não significa que todas as pessoas enxerguem num Rambo a solução para problema tão complexo como o da criminalidade. Na opinião de 53% dos entrevistados, o capitão é um herói, mas 43% rejeitam essa idéia, embora o vejam com relativa simpatia. As características do personagem ajudam a explicar tal divisão. Nascimento é um ser humano devastado. Sofre de síndrome do pânico, consome vorazmente remédios de tarja preta e suas explosões freqüentemente resultam em ações que extrapolam o manual do Bope.
Na pesquisa encomendada por VEJA, chama atenção o fato de 51% dos espectadores desaprovarem a tortura como um meio de extrair confissões de criminosos. É uma maioria pequena – 47% aprovam esse método desumano –, mas que aponta no sentido da civilização. Seria até de esperar que o desespero dos brasileiros em relação à segurança se traduzisse numa proporção ainda mais larga de pessoas adeptas da tortura policial. É bom que se diga: em nenhum momento, Tropa de Elite legitima o uso da tortura, o que seria deplorável. Apenas mostra como o descaso e a barbárie podem animalizar agentes da lei. "Como está dito no filme, o policial tem três escolhas: ou ele se corrompe, ou se omite ou vai para a guerra", afirma o diretor José Padilha. O Brasil só tem duas escolhas: ou derrota os criminosos ou é derrotado por eles. Pela acolhida que o filme está recebendo, os brasileiros não têm a menor dúvida do caminho a seguir.
Abaixo a mitologia da bandidagem
Tropa de Elite não rompe só com a tradição nacional
de narrar uma história do ponto de vista do bandido:
rompe com a visão pia e romantizada do criminoso
Isabela Boscov
Fotos divulgação e Embrafilme |
DE REBELDES A MAUS ELEMENTOS Paulo Villaça em O Bandido da Luz Vermelha, de 1968, e Reginaldo Faria em Lúcio Flávio, de 1977: criminosos sem dúvida, mas também inconformistas, uma visão que Cidade de Deus (acima) começou a desmistificar |
VEJA TAMBÉM
|
Cenas chocantes não faltam em Tropa de Elite. Uma delas é abissal – não pela violência, mas pela inversão moral que representa. Baiano, chefe do tráfico em um morro, descobre que Matias, o namorado de uma estudante que trabalha numa ONG na favela (e que consome sua mercadoria), é policial. Baiano encurrala a moça e os amigos dela, exigindo uma resposta: com quem, afinal, eles "fecham"? Com ele ou com a polícia? Com ele, é claro, responde o contingente zona-sul. Que fala com sinceridade, não apenas por medo, mas porque a esses garotos e garotas de fato parece impensável alinhar-se com a autoridade e seu suposto fascismo.
Também o cinema brasileiro "fechou" com os bandidos. Ele os prefere por razões que vão de hábitos criativos à ideologia e às circunstâncias históricas do Brasil – remotas e presentes. A romantização do crime teve seu primeiro momento forte nas décadas de 60 e 70, quando a ditadura militar deu à autoridade policial contorno arbitrário. O Bandido da Luz Vermelha, O Assalto ao Trem Pagador e Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia marcaram época nas salas de exibição. Hoje, de Cidade de Deus e Carandiru a Cidade dos Homens, a vida do ponto de vista do crime, ou de quem existe na sua proximidade, permanece talvez o maior tema do cinema nacional. Tropa de Elite é uma exceção no empenho em observar o caos brasileiro por um prisma diverso.
A missão que Tropa de Elite cumpre agora foi iniciada por Cidade de Deus, que desmantelou os estereótipos do criminoso coitado e do bandido camarada (figuras que, logo a seguir, Carandiru reinstauraria com veemência). No cinema da "retomada", o filme de Fernando Meirelles foi pioneiro em demonstrar que o crime tem, sim, mil maneiras de seduzir jovens e pobres – mas, salvo uma minoria, a quem as circunstâncias acuam de modo inescapável, pode-se não aceitar esse convite. Esse raciocínio domina também Tropa de Elite. Meirelles e Padilha, assim, estão solitários no seu rompimento com a visão praticada pela maioria dos cineastas brasileiros. A qual, em última análise, mitiga sempre a opção pelo crime em face da pobreza e "alivia" o bandido mesmo quando não haveria o que "aliviar".
Resumir toda a atitude de uma cinematografia perante a lei, a autoridade e a Justiça obriga a generalizações. Mas o que se obtém de um balanço entre o cinema nacional e o cinema americano são concepções opostas do lugar que a lei ocupa na sociedade. Desde os velhos faroestes, a produção americana é dominada pela idéia de contrato social: o país só nasce e subsiste na medida em que os homens abdicam de fazer justiça pelas próprias mãos e transferem esse poder aos "homens da lei". Esse pacto pode ser traído, subvertido, posto em questão – por facínoras, xerifes corruptos ou justiceiros. No entanto, o importante é reafirmá-lo e, assim, preservar a sociedade.
Isso não é sinônimo de maniqueísmo. O cinema americano comporta uma miríade de retratos de criminosos e de policiais, dos mais esquemáticos aos mais matizados. O que o distingue do brasileiro é que ele provavelmente retrata mais policiais do que criminosos – e não só em filmes do gênero. Com grande freqüência, o policial conduz dramas, porque é possível enxergar nele, honesto ou corrupto que seja, um personagem rico em dilemas – não apenas a figura do bufão, do seboso ou do fascista, tão comuns na produção nacional. Muitos viraram mitos, do inflexível xerife Wyatt Earp, que já pipocou em filmes diversos, ao personagem-título de Serpico, baseado no caso real de um detetive que delatou toda uma vasta rede de corrupção na polícia de Nova York. Ao contrário destes, o Dirty Harry interpretado por Clint Eastwood em Perseguidor Implacável – que, no início dos anos 70, foi tão controverso quanto Tropa de Elite – e numa série de outros filmes não foi uma figura verídica. Mas, até hoje, seu nome serve para definir um certo tipo de agente da polícia, que não tem paciência para com as regras judiciais e da corporação e usa de métodos próprios (leia-se, truculência) para fazer justiça às vítimas do crime.
Em outro filme de Eastwood, Os Imperdoáveis, Gene Hackman eternizou uma estirpe bem diversa de homem da lei – aquele que acha que a lei não se aplica, por exemplo, ao sujeito que mutilou uma prostituta. Quando todo o bordel se cotiza para contratar um pistoleiro que corrija a situação, tem-se um exemplo cristalino da importância da idéia do contrato social. Prostitutas também votam em xerifes, e portanto exigem a justiça que lhes é devida, ainda que por meios anômalos. A sociedade, enfim, está longe de ser perfeita – mas o cancelamento de seus acordos básicos seria ainda pior. No cinema brasileiro, prevalece a idéia oposta: a de que a sociedade é essencialmente má. Em parte, essa visão decorre de o Brasil ser de fato injusto; mas é sobretudo um resquício encarquilhado de esquerdismo: se a sociedade é ruim, jogue-se a sociedade fora.
No cinema brasileiro, o bandido foi, antes de tudo, um romântico, um inconformista. Isso, até agora. O impacto de Tropa de Elite mostra com clareza que o cinema nacional precisa de uma nova sociologia. A platéia sabe que escolher entre uma polícia corrupta e uma polícia violenta não é escolha. Mas dá sinais de que não quer mais ver a bandidagem mitificada.
Recorde de contravenção
Tropa de Elite já conta com milhões de espectadores.
Mas poucos deles pagaram pelo ingresso de cinema
Silvia Izquierdo/AP |
DINHEIRO QUE O DIRETOR NÃO VIU Cópias pirateadas de Tropa de Elite apreendidas: um prejuízo em bilheteria e impostos difícil de calcular |
VEJA TAMBÉM
|
Quando receberam os resultados de uma pesquisa feita pelo Ibope na semana passada, os produtores de Tropa de Elite encontraram ali um número animador: 35% dos entrevistados declararam que pretendem assistir ao filme no cinema – o que equivaleria a algo como acachapantes 22 milhões de indivíduos. Outro número contido na pesquisa, porém, é ainda mais assombroso. Estima-se que mais de 11 milhões de pessoas já tenham visto o filme, embora ele tenha estreado há dias apenas. Como? Em cópias ou downloads piratas, claro. "Na primeira batida policial, foram apreendidos milhares de DVDs. No dia seguinte, os camelôs voltaram às ruas alardeando 'o filme que a polícia quer proibir'. Venderam o dobro", conta o diretor José Padilha, que diz ter levado "um banho de criatividade" do comércio ilegal. O qual, a esta altura, já fez de Tropa de Elite um sucesso também nas ruas de Moçambique, Angola e Portugal.
É impossível calcular as perdas que o estouro de Tropa de Elite na pirataria representa, em bilheteria, em impostos e em concorrência desleal com os comerciantes que pagam suas taxas. Padilha acha que essa febre provocada por seu filme contém algumas mensagens: existe uma enorme demanda por filmes nacionais que saibam do que e como falar ao público; e os exibidores e distribuidores estão perdendo boas oportunidades de atender a essa demanda e faturar com ela, baixando preços de ingressos e DVDs para ganhar em escala. Enfim, por meios estritamente legais. Pirataria é crime organizado, tanto quanto o tráfico de drogas. Na melhor das hipóteses, já começa por envolver corrupção e conspiração criminosa. "Não vou dar nome aos bois (o nome, no caso, seria o do ministro Gilberto Gil), mas há pessoas sugerindo por aí que a pirataria é uma forma democrática de disseminação da cultura. Isso é loucura. Não se pode ter posição dúbia quanto a isso: a única cultura que a pirataria dissemina é a da contravenção", diz Padilha. E vale lembrar que, também como no caso das drogas, é o usuário recreativo (aqui, na acepção da palavra) que sustenta essa organização criminosa, com seus 5 reais aqui, 5 reais ali.
Máquina letal contra o crime
Treinamento exaustivo e código de conduta rigoroso
fazem do Bope uma das melhores tropas do mundo
Ronaldo Soares
Marcos Tristão/Ag. O Globo |
BANDIDOS NA MIRA |
VEJA TAMBÉM
|
De todas as platéias de Tropa de Elite, a mais sensível é formada pelos próprios policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), do Rio de Janeiro. Eles se dividem. Têm orgulho por haver sido retratados como salvadores da pátria no caótico cenário da violência urbana. Por outro lado, dizem que há muito exagero em algumas cenas que mostram como a tropa atua. Olhado sem paixão, o filme é um retrato bastante fiel – para o bem e para o mal – da conduta do batalhão, mesmo com a ação se passando dez anos atrás. Na semana passada, VEJA ouviu ex-integrantes da unidade e pessoas que acompanham de perto sua rotina, para avaliar a verossimilhança das cenas. "É tudo verdade. E ainda tem mais", afirmou um ex-oficial, sob a condição de não ser identificado. O treinamento pode incluir sessões de choques elétricos e afogamentos, noites inteiras de imersão na água gelada de um rio e o golpe conhecido como "telefone", que em duas ocasiões causou perfuração de tímpano. Cenas como a da comida jogada no chão e a dos tapas na aula inaugural retratam quase à perfeição o cotidiano do batalhão.
O treinamento, rigorosíssimo, é também o que diferencia o Bope do restante da polícia (veja quadro abaixo). Existem dois cursos preparatórios para ingressar na unidade. Para inscrever-se, o voluntário tem de ter pelo menos dois anos de Polícia Militar. O mais longo, no qual o filme se baseia, dura três meses e é o mais truculento. Nele, o soldado ganha experiência em operações de alto risco em favelas, na selva ou em regiões montanhosas. "Nesse curso, a rotina do aluno é quebrada. Ele dorme muito pouco, se é que dorme, alimenta-se muito pouco, quando se alimenta, e é submetido a tarefas extenuantes", diz o comandante do Bope, o coronel Pinheiro Neto. A tese é que, ao passar por situações de extrema privação e humilhação, o aluno aprende a controlar melhor sua agressividade. Como boa parte do curso acontece no meio da mata, durante o inverno, próximo a uma represa no interior do Rio, o aluno fica conhecendo ali uma das máximas do Bope: "O inferno não é feito de fogo. Ele é verde, frio e molhado". Apenas 20% dos que entram nesse curso vão até o fim. Houve o caso de um aluno que não voltou para casa: morreu afogado, depois de um treinamento que o obrigou a ficar um bom tempo nas águas geladas de uma represa.
Quem consegue superar esse inferno passa a integrar uma tropa considerada hoje uma das melhores em operações de conflito armado em áreas urbanas. "Existe um reconhecimento mundial do padrão de excelência do Bope", diz Leonardo Barreto, ex-tenente do Exército que já fez cursos com polícias especializadas nos Estados Unidos, Israel, Itália e Espanha. Quando está de serviço, o policial fica 24 horas de prontidão – a média é de uma operação por dia. Quando não há missão, treina-se o tempo todo. Com sua expertise, o grupo já formou mais de 2.000 homens, entre policiais de outros estados, agentes federais e militares. Na semana que vem, 160 homens da Força de Paz do Exército passarão por um período de aperfeiçoamento no Bope, antes de seguir para missões no Haiti e no Sudão.
O batalhão foi criado em 1978, quando a polícia fluminense decidiu montar uma unidade de elite para operações de resgate de reféns. Com a explosão da criminalidade nos anos 80 e 90, o grupo se especializou em enfrentar bandidos em favelas. A tropa atual, com 400 homens, fica baseada em um prédio no alto de um morro em Laranjeiras, na Zona Sul. Ali a vizinhança é heterogênea. De um lado fica a favela Tavares Bastos, onde o Bope realizou um trabalho que os policiais batizaram de "assepsia" – ou seja, a expulsão dos traficantes. Do outro lado do morro ficam as mansões do Parque Guinle, área nobre que inclui o Palácio das Laranjeiras, residência oficial do governador do Rio, Sérgio Cabral.
Depois do filme, o Bope virou um sucesso de público. A média de e-mails enviados à unidade, que até então era de 400 por semana, passou a 400 por dia. São mensagens de felicitações pelo combate ao crime e pedidos de visita ao batalhão. Houve até universitários interessados em desenvolver teses acadêmicas sobre os homens de preto do Bope. Outra amostra de popularidade se deu no desfile de 7 de Setembro, no Centro do Rio, quando a tropa foi ovacionada pelo público, enquanto algumas autoridades foram vaiadas. No embalo da lua-de-mel vivida com a população, um tabu está prestes a ser quebrado: no ano que vem, pela primeira vez na história do Bope será ministrado um curso só para mulheres. Mas a reputação nem sempre foi essa. O batalhão ficou nacionalmente conhecido em 2000, por causa de uma operação desastrosa. Ao tentar libertar a professora Geisa Gonçalves, refém do assaltante Sandro do Nascimento no ônibus 174, um policial errou o alvo, permitindo que Sandra fosse morta pelo bandido. Para piorar, o assaltante, depois de dominado, chegou ao hospital morto por asfixia. Os envolvidos foram absolvidos, mas o episódio manchou a reputação da unidade.
O padrão de excelência ostentado hoje também é fruto de uma atitude mais rigorosa em relação aos maus policiais. No batalhão, o policial é excluído ao menor sinal de irregularidade. "Uma simples suspeita é o suficiente para que o policial seja afastado, mesmo que ela não fique totalmente comprovada. Não pode pairar nenhuma desconfiança sobre um homem do Bope", diz o coronel Mário Sérgio Duarte, ex-comandante da unidade. Nos últimos quatro anos, pelo menos 43 policiais foram afastados, seja por baixa qualidade técnica, seja por desvios de conduta. Entre as supostas irregularidades havia suspeita de ligação com o jogo do bicho e de desvio de material da polícia. Quanto à conduta informal de asfixiar bandidos com sacos plásticos, como método de arrancar confissões, ninguém foi afastado do Bope por empregá-la.
Reinaldo Azevedo
Capitão Nascimento bate
no Bonde do Foucault
Divulgação |
VEJA TAMBÉM
|
Nunca antes neste país um produto cultural foi objeto de cerco tão covarde como Tropa de Elite, o filme do diretor José Padilha. Os donos dos morros dos cadernos de cultura dos jornais, investidos do papel de aiatolás das utopias permitidas, resolveram incinerá-lo antes que fosse lançado e emitiram a sua fatwa, a sua sentença: "Ele é reacionário e precisa ser destruído". Num programa de TV, um careca, com barba e óculos inteligentes, índices que denunciam um "inteliquitual", sotaque inequívoco de amigo do povo, advertia: "A mensagem é perigosa". Outro, olhar esgazeado, sintaxe trêmula, sonhava: a solução é "descriminar as drogas". E houve quem não resistisse, cravando a palavra mágica: "É de direita". Nem chegaram a dizer se o filme – que é entretenimento, não tratado de sociologia – é bom ou não.
Seqüestrado pelo Bonde do Foucault (já explico o que é isso), Padilha foi libertado pelo povo. A pirataria transformou seu filme num fenômeno. A esquerda intelectual, organizada em bando para assaltar a reputação alheia (como de hábito), já não podia fazer mais nada. Pouco importava o que dissesse ou escrevesse, o filme era um sucesso. Derrotada, restou-lhe arrancar, como veremos, do indivíduo Padilha o que o cineasta Padilha não confessou. Por que tanta fúria? A resposta é simples: Tropa de Elite comete a ousadia de propor um dilema moral e de oferecer uma resposta. Em tempos de triunfo do analfabetismo também moral, é uma ofensa grave.
Qual dilema? Não há como ressuscitar o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), mas podemos consultar a sua obra e então indagar ao consumidor de droga: "Você só pratica ações que possam ser generalizadas?". Ou por outra: "Se todos, na sociedade, seguirem o seu exemplo, o Brasil será um bom lugar para viver?". O que o pensamento politicamente correto não suporta no Capitão Nascimento, o anti-herói com muito caráter, não é a sua truculência, mas a sua clareza; não é o seu defeito, mas a sua qualidade. Ele não padece de psicose dialética, uma brotoeja teórica que nasce na esquerda e que faz o bem brotar do mal, e o mal, do bem. Nascimento cultua é o bom paradoxo. Segue a máxima de Lúcio Flávio, um marginal lendário no Brasil, de tempos quase românticos: "Bandido é bandido, polícia é polícia".
A cena do filme já é famosa: numa incursão à favela, o Bope mata um traficante. No grupo de marginais, há um "estudante". Aos safanões, Nascimento lhe pergunta, depois de enfiar a sua cara no abdômen estuporado do cadáver: "Quem matou esse cara?". Com medo, o rapaz engrola uns "não sei, não sei". Alguns tapas na cara depois, acaba respondendo: "Foram vocês". E ouve do capitão a resposta que mais irritou o Bonde do Foucault: "Não! Foi você, seu maconheiro". Nascimento, quem diria?, é um discípulo de Kant. Um pouco desastrado, mas é. A narrativa é sempre pontuada por sua voz em off. Num dado momento, ele faz uma indagação: "Quantas crianças nós vamos perder para o tráfico para que o playboy possa enrolar o seu baseado?".
O Bope que aparece no filme de Padilha é incorruptível, mas violento. O principal parceiro de Nascimento chega a desistir de uma ação porque não quer compactuar com seus métodos, que, fica claro, são ilegais. Trata-se de uma mentira torpe a acusação de que o filme faz a apologia da tortura. Ocorre que o ódio que a patrulha ideológica passou a devotar à obra não deriva daí. Isso é pretexto. O que os "playboys" do relativismo rejeitam é a evocação da responsabilidade dos consumidores de droga na tragédia social brasileira. Nascimento invadiu a praia do Posto 9, em Ipanema.
Já empreguei duas vezes a expressão "Bonde do Foucault" para me referir à quadrilha ideológica que tentou pôr um saco da verdade na cabeça de Padilha: "Confesse que você é um reacionário". "Bonde", talvez vocês saibam, é como se chama, no Rio de Janeiro, a ação de bandidos quando decidem agir em conjunto para aterrorizar os cidadãos. Quem já viu Tropa de Elite sabe: faço alusão também a uma passagem em que universitários – alguns deles militantes de uma ONG e, de fato, aliados do tráfico – participam de uma aula-seminário sobre o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). Falam sobre o livro Vigiar e Punir, em que o autor discorre sobre a evolução da legislação penal ao longo da história e caracteriza, de modo muito crítico, os métodos coercitivos e punitivos do estado.
No Brasil, os traficantes de idéias mortas são quase tão perigosos quanto os donos dos morros, como evidenciam nossos livros didáticos. Foucault sempre foi um incompreendido. Por que digo isso? Porque ele era ainda mais picareta do que seus críticos apontaram. No filme, aluna e professor fazem um pastiche de seu pensamento, e isso serve de pretexto para um severo ataque à polícia, abominada pelos bacanas como força de repressão a serviço do estado e suas injustiças. Sim, isso pode ser Foucault, mas Foucault era pior do que isso. Em Vigiar e Punir, ele fica a um passo de sugerir que o castigo físico é preferível às formas que entende veladas de repressão postas em prática pelo estado moderno. Lixo.
O personagem Matias, um policial que faz o curso de direito, é o elo entre o Capitão Nascimento, o kantiano rústico, e esse núcleo universitário. A seqüência em que essas duas éticas se confrontam desmoraliza o discurso progressista sobre as drogas e revela não a convivência entre as diferenças, mas a conivência com o crime de uma franja da sociedade que pretende, a um só tempo, ser beneficiária de todas as vantagens do estado de direito e de todas as transgressões da delinqüência. Por isso o "Bonde do Foucault" da imprensa tentou fazer um arrastão ideológico contra Tropa de Elite. Quem consome droga ilícita põe uma arma na mão de uma criança. É simples. É fato. É objetivo. Cheirar ou não cheirar é uma questão individual, moral, mas é também uma questão ética, voltada para o coletivo: em qual sociedade o consumidor de drogas escolheu viver? Posso assegurar: não há livro de Foucault que nos ajude a responder.
Derrotada, a elite da tropa esquerdopata não desistiu. José Padilha e o ator Wagner Moura foram convocados a ir além de suas sandálias. Assim como um juiz só fala nos autos, a voz que importa de um artista é a que está em seu trabalho. Ocorre que era preciso uma reparação. A opinião de ambos – ligeira e mal pensada – favorável à descriminação das drogas ameaçou, num dado momento, sobrepor-se ao próprio filme. Observem: Tropa de Elite trata é da falência de um sistema de segurança em que, segundo Nascimento, um policial "ou se corrompe, ou se omite, ou vai para a guerra".
A falha desse sistema independe do crime que ele é chamado a reprimir. Se as drogas forem liberadas e aquela falha permanecer, os maus policiais encontrarão outras formas de extorsão e associação com o crime. E esse me parece um aspecto importante do filme, que tem sido negligenciado. Um dos lemas da tropa é "No Bope tem guerreiros que acreditam no Brasil". Esse patriotismo ingênuo e retórico tem fôlego curto: um dos soldados da equipe morre, e seu caixão está coberto com a bandeira brasileira. Solene e desafiador, Nascimento chega ao velório e joga sobre o "auriverde pendão da esperança" a assustadora bandeira do Bope: um crânio fincado por uma espada, atrás do qual se cruzam duas pistolas. Outro dos refrões do grupo pergunta e responde: "Homem de preto, qual é sua missão? / Entrar na favela e deixar corpo no chão / Homem de preto, o que é que você faz? / Eu faço coisas que assustam satanás". Resta evidente que o filme não propõe este Bope como modelo de polícia.
Pouco me importa o que pensam Padilha e Moura. O que interessa é o filme. E o filme submete a um justo ridículo a sociologia vagabunda que tenta ver a polícia e o bandido como lados opostos (às vezes unidos), mas de idêntica legitimidade, de um conflito inerente ao estado burguês. O kantiano rústico "pegou geral" o Bonde do Foucault.