Artigo - Roberto DaMatta |
O Globo |
17/10/2007 |
"Tropa de elite" desperta um tropo (uma figura) de elite. Corre a opinião de que seria um filme - valha-nos Deus! - fascista e, talvez pior que isso, conservador. Para um certo Brasil, tudo o que desagrada à tropa dos "revoltados contra tudo isso que aí está" cai imediatamente na categoria dos leprosos. Para quem se acha acima da sociedade e detesta examinar as conseqüências de suas ações, toda leitura complicada e não-ortodoxa de fenômenos complexos - o crime como um valor, a violência e a tortura como método, a politicagem canalha dos fins que justificam os meios, e a insinceridade como um estilo de vida - são geralmente chamados de "fascista". Foi assim com o filme de Mel Gibson sobre a paixão de Cristo e foi também assim com outros filmes, livros, pessoas e assuntos. Por exemplo: num certo momento, falar de sociedade brasileira buscando suas singularidades e diferenças era "fascista", porque a leitura do sistema por suas instituições sociais e simbólicas seria a plataforma para tudo perdoar ou compreender - no caso, a ditadura militar. Do mesmo modo, tomar o futebol, o carnaval ou a obra de alguns autores (penso sobretudo em Jorge Amado, cujo acervo baiano vai acabar em Harvard, imagine...) como objeto de reflexão era um outro interdito. Para alguns, era reacionário admirar a coragem e a integridade esperançosa de um Quincas Berro D"Água; a decidida decisão de não decidir de uma dona Flor entre seus dois maridos. Do mesmo modo, nada mais mistificador do que apreciar a renovação orgiástica do carnaval. Ter orgulho do futebol tantas vezes campeão do mundo era apoiar a ditadura. Qualquer posicionamento otimista deveria ser substituído pelo mais crasso cinismo, pelo pessimismo mais negro e pela mais profunda desesperança. O mote do "tanto pior melhor", exprimindo uma esperança às avessas, falava esplêndida e tragicamente dessa persistente confusão entre regime político e país, protesto e autoflagelação, cuidado ao se discutir certos assuntos e a sua pura e simples proibição. E, mais complicado do que tudo isso, como vemos neste governo Lula, ser oposição é estar no poder. No tropo das elites, a arrogância dá voz de prisão não apenas a pessoas e obras - Gilberto Freyre foi por longa data um degredado no mundo acadêmico brasileiro como um famigerado "conservador" - mas também a assuntos e sentimentos. Gostar do Brasil é, diz esse figurino, um troço, digo, um tropo, babaca. Sem a menor sensibilidade para a dinâmica social, a suposição ainda é a de que só se pode mudar o que está podre ou exaurido; ou ao que se odeia. Lendo a sociedade como um pervertido, a esquerda mais burra queria que o Brasil chegasse ao fundo do poço para salvá-lo. Neste sentido, fazer oposição (algo fundamental em qualquer posicionamento democrático) seria ser irremediavelmente do contra. A ausência de limites para a crítica abriu um fosso ético dificultando o reconhecimento de que não se vive sem alguma forma de limite. E, como conseqüência, de que tudo - até mesmo o poder e o crime - tem um limite, do mesmo modo que a ausência de limites é um terrível limite. Um limite perverso, mas um limite, como estamos cada vez mais conscientes no Brasil. O adágio "é proibido proibir" é uma tirada alegre, mas é também uma triste, autoritária - e "fascista" - proibição. Lembro-me de que, um dia, no decorrer de uma conferência, falando do poder coercitivo de hábitos, valores, instituições e normas sociais, terminei - para horror de alguns colegas - declarando-me conservador. Conservador no sentido de reconhecer a força e a inércia dos valores culturais e da dificuldade (mas não da impossibilidade) de corrigir e remendar o que eu percebia como anacrônico ou errado no sistema. Coisas como o machismo, o preconceito de não ter preconceito contra negros, índios e mulheres; contra os velhos e os diferentes. Esses que, no Brasil, chamamos de "esquisitos". Mencionava também o meu respeito ao poder das condescendências que impediam ver os dois lados, as duas medidas e os seus duplos pesos, das quais resultava aquela famosa tirada tão em voga na minha juventude: "Eu tenho ciência; você, ideologia!" Tudo isso para dizer que o tropo mais detestável de "Tropa de elite", um filme de resto um tanto mecânico, com personagens achatados e sob o mais completo controle dos seus criadores, é que ele apresenta a questão dos limites. Seria possível ser um policial honesto numa policia corrupta? Como combater o crime numa sociedade que o crime depende de quem o pratica? Seria plausível estar preocupado intelectualmente com o tráfico e ser também um consumidor-traficante? Até onde é razoável estar nos dois lados e jogar nos dois times? Em que medida se pode comungar dos dois mundos e tirar vantagem de tudo, sem ter a menor preocupação com os limites, mesmo quando se está diante da tortura e da morte? Qualquer solução passa, como sugere o filme, pela obrigação de honrar valores e demandas morais. Tropo terrível para a nossa tropa que fala em tudo mudar, desde que as coisas fiquem nos seus lugares. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, outubro 17, 2007
'Tropa de elite' e tropo de elite
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