Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 21, 2007

A ruína moral da nação Gaudêncio Torquato

O Brasil precisa, mais uma vez, aprender com Montesquieu. Ele ensinava que os homens são administrados por um conjunto de coisas, como o clima, a religião, as leis, as máximas dos governantes, os exemplos dos fatos passados, os costumes, as maneiras. Daí resulta um espírito geral, que, em cada Nação, ganha um tom dominante. A natureza e o clima, por exemplo, determinam o modo de vida dos povos selvagens; as lições filosóficas e os costumes balizavam o governo na Roma Antiga; enquanto o maneirismo está na alma dos orientais. A preocupação central do autor de O Espírito das Leis era, porém, com a degradação do espírito geral das Nações, com a vitória dos vícios sobre as virtudes. Infelizmente, esse parece ser um cenário cada vez mais visível, eis que, ao lado do progresso material, se distingue na estampa internacional um quadro de exaustão, cujos matizes agregam fatores como quebra da lei e da ordem, anarquia crescente, Estados fracassados, ondas de criminalidade, máfias transnacionais, debilitação da família, declínio da confiança nas instituições, cartéis de drogas, enfim, o paradigma do caos.

Como nosso país se encaixa nessa leitura? A inserção é total. Chegamos ao estágio terminal no campo da ética e da moral. De onde se pinça a indagação: qual tem sido o elemento central gerador para explicar o avançado grau de deterioração de costumes políticos e práticas sociais? A resposta abriga variáveis de natureza histórica e cultural, entre elas a superposição dos interesses pessoais sobre a força das idéias, porém a má qualidade da gestão política constitui, seguramente, um dos principais vetores do caos moral em que se afunda o País. O descalabro aponta para a incapacidade dos Poderes, com ênfase no Executivo e no Legislativo, para cumprir a missão a que se dedicam. Traços deste panorama: trânsfugas são pintados como heróis; a banalização da violência amortece a sensibilidade social; o desprezo pelas leis (um dos maiores cipoais legislativos do mundo) expande a anomia e, conseqüentemente, a impunidade. O sábio Sólon dizia que dera aos atenienses "as melhores leis que podiam tolerar". Os brasileiros ganham dos nossos legisladores as melhores leis que podem esquecer.

Não é de surpreender, portanto, que o espírito geral da Nação esteja de ponta cabeça. Cenas do cotidiano mostram a curva da inversão dos nossos valores. Em Maringá (PR), o desempregado Jorge Luiz Melo, 19 anos, foi preso, dia desses, após praticar furto e roubo. Roubado por outros ladrões que lhe tomaram os objetos surrupiados, passou a ser a voz da consciência coletiva. Na cadeia, reclamou: "Maringá precisa de mais polícia nas ruas." A distinção que esse ladrão faz entre o roubo que praticou e o de que foi vítima se insere numa lógica de conveniências, a mesma que os atores políticos adotam. O cabeludo senador Wellington Salgado, acusado de sonegar milhões em impostos quando dirigia uma Universidade de sua família, diz-se tão ético quanto os colegas. Pego com a mão na botija, promete abandonar a política. Um rap de nome Ferréz retrucou em artigo um apresentador de TV, que, em texto no mesmo jornal, denunciara o assalto em que perdeu um Rolex, ridicularizando este por "pendurar o equivalente a várias casas populares no pulso". Recebeu aplausos de admiradores. Virou moda achar que roubar relógio de rico é fazer a justiça dos pobres.

A estapafúrdia tese se encaixa na moldura da perversão nacional. O caso que envolve o presidente do Senado, Renan Calheiros, é um exemplo da iniqüidade. Tornou-se ele o epicentro da crise moral que arrebenta a instituição política. Denúncias acumulam-se. Agora, é uma empresa sem sede, de um amigo de Calheiros, que amealha R$ 1 milhão dos cofres públicos. Mesmo assim é possível que o carcomido senador seja salvo pelo gongo de um acordo pelo qual renunciará ao comando da Câmara Alta. Se o Legislativo afunda, o Executivo vai à luta para aprovar a CPMF e garantir mais R$ 40 bilhões aos cofres públicos. Pano de fundo: a dinheirama dessa Contribuição não consegue evitar a epidemia de dengue que assola regiões do País. No passado, o PT atribuía a dengue ao desleixo do governo. E agora? Lorotas abundam. O vice-presidente da República, José Alencar, defende uma Constituinte exclusiva para a reforma tributária. É sempre assim. Na falta de vontade, o governo arruma desculpa mirabolante. Já o presidente continua a deslizar na insensatez. Produz máximas sem nexo. A última foi uma ode ao samba do crioulo doido. No mesmo dia em que o governo promoveu o maior leilão de privatização de estradas federais, Lula atacou a privatização de ferrovias feita pelo antecessor. Já dissera que choque de gestão é contratar pessoas, quando o inchamento da estrutura administrativa é sintoma de congestão, turbulência gerada por acumulação excessiva no corpo. Na África, elogia a democracia de um ditador que, há 20 anos, conduz com mão-de-ferro um país miserável, com 10 milhões de analfabetos.

A ausência de lógica se espalha na esteira de licenciosidade aberrante. O mercado de compra e venda nos balcões do Congresso está abarrotado de matéria-prima. Escassas são apenas as reservas morais, que ainda se vêem nas altas Cortes de Justiça. Nas religiões e credos, novos surtos de engajamento sinalizam o refúgio que fiéis desejam na mística da purificação. Forma de escapar da derrocada geral. Mesmo assim, igrejas há que usam a fé como chave da botija. As Forças Armadas, antigo depósito de autoridade, refluem sob o desamparo que lhes confere o governo. Aparatos policiais, como o da Polícia Federal, fazem operações espetaculosas. A taxa de moralidade se esvai ante o pedestal do marketing. Até o clima entra na zona de rebaixamento geral, haja vista a flagrante devastação das reservas florestais. E os valores do passado, onde estão? Esmaecidos na névoa do tempo. Para despertar o gigante adormecido do porre moral, só mesmo a indignação, a mobilização dos cidadãos ativos, a pressão das ruas.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, é consultor político

Arquivo do blog