Como nosso país se encaixa nessa leitura? A inserção é total. Chegamos ao estágio terminal no campo da ética e da moral. De onde se pinça a indagação: qual tem sido o elemento central gerador para explicar o avançado grau de deterioração de costumes políticos e práticas sociais? A resposta abriga variáveis de natureza histórica e cultural, entre elas a superposição dos interesses pessoais sobre a força das idéias, porém a má qualidade da gestão política constitui, seguramente, um dos principais vetores do caos moral em que se afunda o País. O descalabro aponta para a incapacidade dos Poderes, com ênfase no Executivo e no Legislativo, para cumprir a missão a que se dedicam. Traços deste panorama: trânsfugas são pintados como heróis; a banalização da violência amortece a sensibilidade social; o desprezo pelas leis (um dos maiores cipoais legislativos do mundo) expande a anomia e, conseqüentemente, a impunidade. O sábio Sólon dizia que dera aos atenienses "as melhores leis que podiam tolerar". Os brasileiros ganham dos nossos legisladores as melhores leis que podem esquecer.
Não é de surpreender, portanto, que o espírito geral da Nação esteja de ponta cabeça. Cenas do cotidiano mostram a curva da inversão dos nossos valores. Em Maringá (PR), o desempregado Jorge Luiz Melo, 19 anos, foi preso, dia desses, após praticar furto e roubo. Roubado por outros ladrões que lhe tomaram os objetos surrupiados, passou a ser a voz da consciência coletiva. Na cadeia, reclamou: "Maringá precisa de mais polícia nas ruas." A distinção que esse ladrão faz entre o roubo que praticou e o de que foi vítima se insere numa lógica de conveniências, a mesma que os atores políticos adotam. O cabeludo senador Wellington Salgado, acusado de sonegar milhões em impostos quando dirigia uma Universidade de sua família, diz-se tão ético quanto os colegas. Pego com a mão na botija, promete abandonar a política. Um rap de nome Ferréz retrucou em artigo um apresentador de TV, que, em texto no mesmo jornal, denunciara o assalto em que perdeu um Rolex, ridicularizando este por "pendurar o equivalente a várias casas populares no pulso". Recebeu aplausos de admiradores. Virou moda achar que roubar relógio de rico é fazer a justiça dos pobres.
A estapafúrdia tese se encaixa na moldura da perversão nacional. O caso que envolve o presidente do Senado, Renan Calheiros, é um exemplo da iniqüidade. Tornou-se ele o epicentro da crise moral que arrebenta a instituição política. Denúncias acumulam-se. Agora, é uma empresa sem sede, de um amigo de Calheiros, que amealha R$ 1 milhão dos cofres públicos. Mesmo assim é possível que o carcomido senador seja salvo pelo gongo de um acordo pelo qual renunciará ao comando da Câmara Alta. Se o Legislativo afunda, o Executivo vai à luta para aprovar a CPMF e garantir mais R$ 40 bilhões aos cofres públicos. Pano de fundo: a dinheirama dessa Contribuição não consegue evitar a epidemia de dengue que assola regiões do País. No passado, o PT atribuía a dengue ao desleixo do governo. E agora? Lorotas abundam. O vice-presidente da República, José Alencar, defende uma Constituinte exclusiva para a reforma tributária. É sempre assim. Na falta de vontade, o governo arruma desculpa mirabolante. Já o presidente continua a deslizar na insensatez. Produz máximas sem nexo. A última foi uma ode ao samba do crioulo doido. No mesmo dia em que o governo promoveu o maior leilão de privatização de estradas federais, Lula atacou a privatização de ferrovias feita pelo antecessor. Já dissera que choque de gestão é contratar pessoas, quando o inchamento da estrutura administrativa é sintoma de congestão, turbulência gerada por acumulação excessiva no corpo. Na África, elogia a democracia de um ditador que, há 20 anos, conduz com mão-de-ferro um país miserável, com 10 milhões de analfabetos.
A ausência de lógica se espalha na esteira de licenciosidade aberrante. O mercado de compra e venda nos balcões do Congresso está abarrotado de matéria-prima. Escassas são apenas as reservas morais, que ainda se vêem nas altas Cortes de Justiça. Nas religiões e credos, novos surtos de engajamento sinalizam o refúgio que fiéis desejam na mística da purificação. Forma de escapar da derrocada geral. Mesmo assim, igrejas há que usam a fé como chave da botija. As Forças Armadas, antigo depósito de autoridade, refluem sob o desamparo que lhes confere o governo. Aparatos policiais, como o da Polícia Federal, fazem operações espetaculosas. A taxa de moralidade se esvai ante o pedestal do marketing. Até o clima entra na zona de rebaixamento geral, haja vista a flagrante devastação das reservas florestais. E os valores do passado, onde estão? Esmaecidos na névoa do tempo. Para despertar o gigante adormecido do porre moral, só mesmo a indignação, a mobilização dos cidadãos ativos, a pressão das ruas.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, é consultor político