Em O Passado, de Hector Babenco, um protagonista
que vive à mercê do que decidem suas mulheres
Isabela Boscov
Divulgação |
Moro e Gael: um vazio que só as figuras femininas podem preencher |
Depois de doze anos de um casamento iniciado ainda na adolescência, Rimini e Sofia (Gael García Bernal e Analía Couceyro) se separam. Civilizados, conversam como amigos íntimos na volta da festa em que anunciaram o divórcio a uma amiga; um insiste com o outro para que fique com a escrivaninha, ou com os livros; e Sofia, solícita, ainda sai à cata de um novo apartamento para o ex-marido. Só há duas notas dissonantes nessa equanimidade. Primeiro, a obstinação com que Sofia insta Rimini a ajudá-la a separar as fotos de família – é peso demais ficar sozinha com tantos mortos, diz ela, repetidas vezes. Segundo, a reticência com que Rimini passa a agir tão logo deixa a casa que dividiu com a mulher, fingindo que não recebe seus recados ou escondendo-se quando ela vem visitá-lo. Estão desenhadas aí as linhas mestras de O Passado (El Pasado, Brasil/Argentina, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país: Rimini é o protagonista passivo por excelência, um homem que reage por meio da inação. Contudo, ainda que seu afastamento da ex-mulher aparente ser covarde, há algo de certeiro no seu instinto. Sofia, como se verá no decorrer do filme, é a mulher que traga e sorve. Seu problema não é conviver com os mortos; é que Rimini não esteja entre eles.
Dirigido por Hector Babenco com base no romance homônimo do argentino Alan Pauls (lançado no Brasil pela editora Cosac&Naif), O Passado tem algo de híbrido na sua natureza. É, nos movimentos do enredo, um melodrama, já que seu personagem está à mercê dos acontecimentos e das pessoas em sua vida. Rimini se submete primeiro à cocaína, que costuma espalhar sobre o vidro de um retrato de Sofia. Depois, cede a Vera (Moro Anghileri), uma modelo com quem não tem nada em comum além do sexo, e que o aborrece com cenas de ciúme. A única escapatória que encontra da segunda mulher é arrumar uma terceira, Carmen (Ana Celentano). Em todas essas etapas, Sofia aparece para exercer seu poder destrutivo. Beija o ex-marido à força e assim provoca a morte de Vera, trauma que faz o tradutor Rimini esquecer o francês e o inglês. Anos mais tarde, seqüestra o bebê que ele tem com Carmen, levando Rimini a viver como um mendigo – mergulho do qual ele sairá apenas quando um amigo o resgata e o converte ao esporte. A diferença é que, num melodrama clássico, o protagonista é vitimado por eventos que não poderia controlar, enquanto Rimini simplesmente abdica de qualquer controle e o entrega a figuras femininas (inclusa aí a cocaína), maternais não apenas na maneira como o amparam e preenchem mas também no poder de que dispõem para castrá-lo.
Pode-se creditar em boa parte à atuação de García Bernal o fato de um personagem assim inerte sustentar quase que todo o tempo a atenção da platéia. (Em um elogio algo desastrado, Babenco declarou à revista Set que, nessa faixa de idade, "não tem nenhum ator brasileiro à altura de Gael", o que, além de não ser propriamente elegante, se pode desmentir citando, para começar, Wagner Moura, Lázaro Ramos e Selton Mello.) Conta pontos também o retrato cáustico das relações de poder entre homens e mulheres – o deles é abandonar, e o delas, ao contrário, é enredar. Ou ganha um ou ganha outro. E, em qualquer caso, a possibilidade de meio-termo é remota. A fraqueza de O Passado, porém, termina por estar no que deveria ser seu forte: a opção não pelo envolvimento do drama, mas sim pelo olhar clínico e sem juízo do conto moral. A alturas tantas, quando se percebe a extensão da passividade de Rimini, parece fútil continuar a se atribular com seu destino. Ele próprio, afinal, é o primeiro a perder o interesse na matéria.