Trechos de Vira e Mexe, Nacionalismo, de Leyla Perrone-Moisés Paradoxos do nacionalismo literário "vira mexe Nacionalismo" Mário de Andrade, anotação manuscrita num exemplar de Europe no 31, agosto de 1925, IEB-USP Apresentação Quando este livro for catalogado, poderá ter como palavras-chave: "cultura", "identidade", "alteridade", "nacionalismo", "colonialismo"... Palavras todas elas minadas, por diferentes motivos. "Cultura" é, hoje, um vocábulo ao mesmo tempo valorizado e corriqueiro. Depois de ter motivado, ao longo do século xx, uma enorme e respeitável bibliografia, transformou-se, nas últimas duas décadas, num termo banal, usado a torto e a direito em sentidos cada vez mais restritos e mais pobres.1 Os discursos universitários de áreas literárias impregnaram-se de um culturalismo generalizado, que ignora, no mais das vezes, as complexas discussões que o conceito de cultura produziu no passado. De modo que, atualmente, a palavra-chave "cultura" não caracteriza, por si só, nada de preciso. "Identidade" e sua correlata "alteridade" são outras palavras igualmente gastas até o osso nos discursos universitários atuais. Complexas em seus usos filosóficos, éticos e políticos, parecem ter voltado, atualmente, a suas raízes idealistas e essencialistas, admitindo-se em geral que ter identidade é uma boa coisa, e tolerar a identidade do Outro, um atestado de boa conduta. Ora, o conceito de identidade vem sofrendo profundos abalos desde o século xix, na filosofia, na sociologia, na psicanálise, assim como na prática moderna dos deslocamentos humanos.2 O outro par, "nacionalismo" e "colonialismo", também é pau para toda obra. Nascido no romantismo, ao mesmo tempo que se consolidavam os Estados-nações, o nacionalismo é justificado quando se trata de defender um território e os direitos de seus cidadãos, mas perigoso quando leva à xenofobia, a guerras e massacres, o que, afinal e infelizmente, é apenas o ponto extremo de sua lógica. Já o colonialismo, liquidado historicamente como prática geopolítica, tem sido com freqüência transformado, nos estudos "pós-coloniais", num rótulo extensivo a práticas interculturais de diferentes tipos e épocas, referentes a um indistinto "colonizador" e a um "ex-colonizado" igualmente genérico. Portanto, embora essas palavras-chave possam ser aplicadas a este livro, nenhuma delas define algo de preciso se não explicitarmos o modo como elas são utilizadas, as épocas e os contextos a que se referem, e sobretudo o corpus discursivo que suscita a sua rediscussão. Esse corpus é majoritariamente ficcional ou poético, complementado por reflexões ensaísticas de romancistas e poetas. Por isso, a palavra-chave que melhor definiria este livro seria "literatura", se essa palavra também não fosse problemática e não estivesse, mais do que desgastada, fora de moda. Para evitar, pois, maiores mal-entendidos, devo dizer como nasceu e se desenvolveu este livro, quais são seus objetivos e suas assumidas limitações. Este livro não parte de conceitos ou noções. Não é, nem pretende ser, um tratado sobre a vasta questão do nacionalismo. É o resultado de um convívio de quatro décadas com textos literários, um conjunto de textos críticos que expõem e sugerem determinadas formas de tratar conceitos e noções sugeridos por aquelas palavras-chave que evoquei de início. É uma coletânea de conferências, ensaios, notas de cursos e artigos que só se harmonizam pela recorrência dos temas tratados. Determinada questão, apenas levantada em um texto, é mais desenvolvida em outro. Tendo feito minha carreira universitária como professora de literatura francesa, era inevitável que, em dado momento, eu esbarrasse na questão da relação nacional/estrangeiro, identidade/alteridade. Para elucidar essas relações, criei o Projeto Léry-Assu — Relações da Literatura Brasileira com a Literatura Francesa e, posteriormente, o Núcleo de Pesquisa Brasil-França.3 Paralelamente, fui várias vezes levada a tratar pessoalmente dos pressupostos daquele projeto e dos trabalhos desse grupo de pesquisa. Quanto mais enveredei pelo comparatismo literário, a partir de uma ótica intertextual, mais a oposição nacional/estrangeiro me pareceu descabida, pois as fronteiras nacionais, na literatura ocidental, são e sempre foram porosas, nos chamados "centros" tanto quanto nas chamadas "periferias". E, como de costume, foram os textos literários que me levaram à filosofia, à antropologia e à psicanálise, para ver confirmadas, nestas, as admiráveis intuições dos artistas da palavra. A literatura, pelo menos no Ocidente, sempre foi supranacional. Os grandes autores ocidentais nunca se ativeram às fronteiras nacionais na escolha de seus modelos ou temas, desde o romance de cavalaria, passando pelo Corneille de O Cid ou pelo Shakespeare de Romeu e Julieta, até a modernidade, com Baudelaire irmanando-se a Poe, e Pessoa a Walt Whitman, anunciando as vanguardas internacionais do século xx. Isso sem falar da América Latina, que, por sua condição de herdeira lingüística e cultural da Europa, teve suas literaturas sempre entrelaçadas com as do outro lado do Atlântico. Em pleno romantismo, no despontar dos nacionalismos literários, Goethe aspirava a uma Weltliteratur. "A literatura nacional", dizia ele em suas conversas com Eckermann, "não representa mais grande coisa, estamos entrando na era da literatura mundial e compete a cada um de nós acelerar sua evolução." É compreensível que, no momento histórico de Goethe, o "mundial" se baseasse num paradigma europeu ou ocidental. Isso não invalida, entretanto, essa proposta pioneira. Por outro lado, levando em conta as diferenças históricas, não podemos identificar a Weltliteratur proposta por Goethe com a "literatura mundial" decorrente da globalização econômica e informacional, que ora tende a anular as particularidades locais, ora apela para um exotismo superficial, consumido como turismo literário. As aporias da teorização atual de uma "literatura mundial" se devem ao fato de que aquilo que chamamos de literatura é um conceito ocidental moderno. Não é possível chegar a um cânone mundial enquanto se mantêm, na base, valores estéticos ocidentais. E se esses valores são contestados, deve-se abandonar a própria idéia de "literatura" e de "cânone".4 Entretanto, aquilo que ainda chamamos de literatura é uma prática universalizante, que ensina a superar os escolhos dos nacionalismos. Vivendo no regime da ficção, a literatura tende a relativizar a questão da identidade pessoal ou nacional do autor, e, quando esta é prioritária, a obra fica mais próxima do testemunho do que da criação artística. As "integrações" e "assimilações", tão problemáticas na política das nações, sempre foram a regra nos textos literários, que praticam a intertextualidade sem limites históricos e geográficos.5 O romancista tcheco Milan Kundera assim se expressa, em seu último livro de ensaios: Para ficar na história do romance: é a Rabelais que reage Sterne, é Sterne que inspira Diderot, é Cervantes que recorre a Fielding, é com Fielding que se mede Stendhal, é a tradição de Flaubert que se prolonga na obra de Joyce, é em sua reflexão sobre Joyce que Broch desenvolve sua própria poética do romance, é Kafka que faz compreender, a García Márquez, que é possível sair da tradição e escrever "de modo diferente".6 Kundera opõe "o grande contexto" ao "pequeno contexto", observa que a tradicional divisão acadêmica em literaturas nacionais é uma limitação, e que os professores "ostensivamente identificados ao contexto nacional das literaturas que ensinam" são provincianos. Os textos literários ensinam muito sobre identidade, alteridade, nação, cultura etc. Sobre cultura, ensinam que não existem culturas estanques, que cultura supõe sempre processos de contato, que o contato e as relações são inseparáveis do próprio conceito de cultura. O que Lévi-Strauss afirmou, há mais de cinqüenta anos: "A exclusiva fatalidade, a única tara que pode afligir um grupo humano e impedi-lo de realizar plenamente sua natureza, é a de ficar sozinho".7 Ou, mais recentemente, em outro contexto histórico, Edward Said: "Todas as culturas estão mutuamente imbricadas; nenhuma é pura e única, todas são híbridas, heterogêneas, extremamente diferenciadas, sem qualquer monolitismo".8 Definindo cultura como resultado de uma "história cumulativa", Lévi-Strauss dizia, na conferência supracitada, que toda cultura vive em "regime de coalizão". Prevendo, entretanto, uma uniformização cultural em nível mundial, que apagaria as diferenças, o antropólogo concluía: Não há, não pode haver uma civilização mundial no sentido absoluto que se dá freqüentemente a esse termo, porque a civilização implica a coexistência de culturas que ofereçam, entre elas, o máximo de diversidade, e consiste exatamente nessa coexistência. A civilização mundial não poderia ser outra coisa senão a coalizão, em escala mundial, de culturas que preservassem cada uma sua originalidade.9 Esse seria um desfecho ideal para a mundialização. O que o antropólogo já podia pressentir mas não podia prever, naquele momento, era que a originalidade das culturas seria, por um lado, progressivamente apagada pela cultura de massa ocidental e, por outro, transformada em arma de guerra entre os povos. A nação é uma construção idealizada ora para fins políticos (justos, como formas de organização social e/ou de resistência a ataques exteriores), ora para fins de eliminação de outros (injustos e belicosos). Nação e identidade nacional são "grandes narrativas", e é paradoxal que estudiosos que se dizem pós-modernos usem esses conceitos como positivos, quando aplicados a nações, identidades e culturas "subalternas", sem ver que eles são ilusórios e complexos para qualquer tipo de cultura, hegemônica ou dependente. Voltando a um pensador mais antigo, cito Renan, numa conferência de 1882: A língua não é uma base suficiente para a nação, nem a religião, nem a comunidade de interesses que faz tratados de comércio, nem a geografia [...] A nação é um passado comum e um projeto de futuro comum. [...] As nações não são algo de eterno. Elas começaram, elas acabarão. E, precursor para seu tempo, Renan descartava qualquer fundamentação étnica para o conceito de nação: Enquanto o princípio das nações é justo e legítimo, o princípio do direito primordial das raças é estreito e cheio de perigo para o verdadeiro progresso. [...] Não há raça pura, os mais nobres países, a Inglaterra, a França, a Itália, são aqueles em que o sangue é mais misturado. [...] O fato da raça, capital na origem, vai perdendo sua importância. [...] Para além dos caracteres antropológicos, há a razão, a justiça, o verdadeiro, o belo, que são os mesmos para todos.10 Infelizmente, a história posterior mostrou que o "fato da raça" não estava perdendo importância, como pretendia Renan, e que a universalidade dos valores seria posta à prova. Um século mais tarde, Benedict Anderson define a nação como "comunidade imaginária".11 Outro especialista da questão, Ernest Gellner, lembra que a era dos nacionalismos é relativamente breve, e muito recente: "Na verdade, as nações, como os estados, são uma contingência e não uma necessidade universal".12 Eric Hobsbawm, por sua vez, afirma que "não se encontrou nenhum critério satisfatório que permita decidir quais, dentre as numerosas comunidades humanas, podem ostentar o título de nação".13 O mesmo dizia Mariátegui: "A nação ela mesma é uma abstração, uma alegoria, um mito que não corresponde a uma realidade constante e precisa".14 Todos esses autores põem em evidência o caráter imaginário e flutuante das nações e dos nacionalismos. A questão do nacionalismo liga-se à da "identidade". Ainda hoje, em várias partes do mundo, certos intelectuais continuam defendendo, no campo da cultura, uma "identidade nacional" que só existia, no passado, como imaginário útil ao Estado-nação. No mundo atual, globalizado pela economia e pela informação, ocorre ao mesmo tempo um enfraquecimento do Estado-nação e um recrudescimento dos nacionalismos. Quanto mais o capital e a informação desconhecem fronteiras, mais estas são reforçadas para e contra os indivíduos. Esquecendo o regozijo suscitado pela queda do muro de Berlim, os governos instalam a cada dia novos muros de concreto e barreiras eletrônicas, em várias partes do mundo. Como reação, as reivindicações de identidades étnicas, religiosas e culturais se acirram em numerosos conflitos e guerras, nos quais as motivações econômicas se misturam, de modo quase inextricável, com as motivações culturais. Enquanto isso, as migrações humanas se multiplicam e, para numerosos migrantes do mundo atual, a obrigatoriedade de uma identidade una é vivida como uma limitação, e mesmo uma prisão. Quando esses migrantes têm condições de tomar a palavra, eles o fazem de modo incisivo. O escritor libanês Amin Maalouf, por exemplo, trata desse assunto num livro cujo título fala por si: Identidades assassinas.15 O ensaísta Edward W. Said, palestino de nascimento e cidadão norte-americano, também escreveu longamente sobre sua identidade "fora do lugar". Salman Rushdie, romancista indiano de expressão inglesa, prefere definir-se como "um daqueles que não pertencem a lugar nenhum".16 Como vários outros intelectuais migrantes, esses escritores se rebelam contra a imposição de uma identidade, de uma cultura e de uma língua únicas. A identidade forte pode ser causadora de genocídios, como temos visto desde o nazismo até os mais recentes acontecimentos da Europa do Leste, da África e do Oriente Médio. A identidade pode ser também, em casos menos graves, um fator de imobilização de um povo, como ocorreu durante séculos com Portugal, iludido sobre si mesmo entre um passado glorioso e um futuro utópico.17 Por todas essas razões, diz Terry Eagleton: O paradoxo da política de identidade, em resumo, é que se precisa de uma identidade a fim de se sentir livre para desfazer-se dela. A única coisa pior do que ter uma identidade é não ter uma. Despender muita energia afirmando sua própria identidade é preferível a sentir que não se tem absolutamente nenhuma, mas ainda mais desejável é não estar em nenhuma das situações.18 Em suma, a boa identidade é algo que se tem quando ela não constitui um problema. Quando decorre de uma "política de identidade", ditada pelo Estado ou por grupos particularistas, ela é sempre perigosa. No Brasil, o nacionalismo tem tomado várias formas através do tempo. Num ensaio breve e iluminador, Antonio Candido analisou as transformações do nacionalismo brasileiro ao longo do século xx, e concluiu: Recapitulando: na história brasileira deste século, têm sido ou podem ser considerados formas de nacionalismo o ufanismo patrioteiro, o pessimismo realista, o arianismo aristocrático, a reivindicação da mestiçagem, a xenofobia, a assimilação dos modelos europeus, a rejeição desses modelos, a valorização da cultura popular, o conservantismo político, as posições de esquerda, a defesa do patrimônio econômico, a procura de originalidade etc. etc. Tais matizes se sucedem ou se combinam, de modo que por vezes é harmonioso, por vezes incoerente. E esta flutuação, esta variedade mostram que se trata de uma palavra arraigada na própria pulsação da nossa sociedade e da nossa vida cultural.19 Entre nós, volta e meia reaparecem o nacionalismo e seu corolário, a recusa do "colonialismo cultural".20 No terreno da cultura e das artes, a busca da identidade nacional brasileira teve dois grandes momentos: no século xix, com o romantismo, e no século xx, com o modernismo. Entre os modernistas, um se destacou por ter criado a obra máxima dedicada a essa questão, e por não ter cedido às ilusões da identidade. Falo de Mário de Andrade, a cuja lucidez devemos a expressão "entidade nacional dos brasileiros".21 Usando a palavra "entidade", Mário de Andrade evitou o idealismo da "identidade", conceito que supõe essência, origem e fixidez. Ele usava a palavra "entidade" acreditando ser ela a que convinha ao brasileiro, por se tratar de um sujeito cultural ainda indefinido, em formação, em devir. Mas, na verdade, todos os sujeitos culturais estão sempre em formação e em devir. Veja-se apenas como exemplo a França, tida até meados do século xx como um país de identidade cultural forte e mesmo exemplar: "mãe das letras e das artes", "farol do mundo civilizado" etc. A identidade cultural francesa, caracterizada como racionalista, iluminista e revolucionária, foi criada nos séculos xvii e xviii. Devido ao enorme afluxo da imigração, a França é hoje uma nação multicultural, com todas as riquezas e os problemas que isso implica. E os problemas nem sempre são enfrentados com os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade que, desde a Revolução, eram postulados básicos da identidade francesa. Ninguém é capaz de dizer o que será a cultura francesa, ou qualquer outra, no final do século xxi. Atualmente, a Europa só se unifica, de fato, como bloco econômico. As obras literárias esclarecem, tanto ou mais do que os discursos políticos, como são construídos os conceitos de nação e de identidade nacional. Não por acaso, alguns dos maiores teóricos atuais dessas questões trabalham-nas a partir de um corpus literário: Said estudando Dickens, Conrad ou Genet; Eagleton citando Shakespeare ou Goethe; Lourenço exemplificando com Pessoa. Said vê os grandes escritores modernos como salutares "dissolventes da identidade".22 Eagleton observa que os críticos literários, "formados em uma ciência da subjetividade", estão bem armados para pensar os problemas culturais. "No apogeu da burguesia européia — diz ele —, a literatura tinha um papel chave na formação dessa subjetividade social."23 Atualmente, o cinema e a televisão têm um papel mais relevante, nesse sentido, do que a literatura. Mas as obras literárias atuais, por serem menos dependentes dos interesses do Estado e do mercado, se prestarão talvez mais do que os outros meios para elucidar, no futuro, as questões de hoje. Os trabalhos reunidos neste livro são ora de cunho geral (os que tratam de modo histórico os intercâmbios culturais), ora monográficos (os que examinam esses intercâmbios a partir de obras particulares). A questão do nacionalismo na literatura brasileira, ligada historicamente à acolhida ou à recusa da influência francesa, levou-me ao estudo de alguns escritores e ensaístas nacionais, mas não nacionalistas. Como período estudado, a maior parte deles remete aos séculos xix e xx, séculos em que se criaram e se consolidaram as "nações" e nos quais se levantaram e se desenvolveram as questões de cultura ou de literatura nacional. Embora historicamente datadas, essas questões estão longe de ser superadas, e o passado do escrito pode ser atualizado pelo presente da leitura ou da releitura. Voltar ao passado ajuda a ver como as coisas ocorreram e a evitar os mesmos enganos no futuro. Não é mais do que esta minha intenção ao reunir estes trabalhos. Os textos aqui apresentados são ou inéditos em português, ou modificados, ampliados e atualizados com relação à sua primeira publicação. L. P.-M. Maio de 2007 1. A cultura latino-americana, entre a globalização e o folclore* A união política, econômica e cultural dos países latino-americanos é uma velha meta que as novas relações internacionais agora favorecem. Entretanto, quando se trata de cultura, alguns equívocos devem ser evitados. As semelhanças entre nossos problemas políticos e econômicos não devem levar a um projeto de união cultural que esqueça as grandes diferenças entre as diversas culturas do continente, ou a um fechamento com relação às culturas dos países hegemônicos. Na ânsia por uma "identidade latino-americana", o discurso da latino-americanidade pode levar a enganos prejudiciais à cultura propriamente dita. Refiro-me a enganos como o nacionalismo exacerbado, o populismo e o espontaneísmo. O nacionalismo exacerbado, herança de nossas guerras de independência, e resultado da permanente ameaça de dependência que pesa sobre nossas economias, consiste, no terreno da cultura, em buscar o "autenticamente nosso", rechaçando patrioticamente tudo o que vem de fora, por medo do "colonialismo cultural". Esse nacionalismo ressentido e desconfiado pode se transformar num supranacionalismo, com as mesmas características, quando se trata de latino-americanidade. A razão principal pela qual o nacionalismo (e o supranacionalismo) latino-americano corre o risco de se tornar nocivo ao desenvolvimento cultural de nossos países é que ele repousa sobre uma concepção inaceitável de cultura. Nenhuma cultura é auto-suficiente e estanque. Toda cultura é o resultado de intercâmbios e mesclas bem-sucedidas. Nenhuma das grandes culturas reconhecidas como tal se desenvolveu fechada ao estrangeiro: a cultura de Roma fortaleceu-se ao assimilar a Grécia, a inconfundível cultura japonesa foi criada a partir da chinesa etc. Nossas culturas latino-americanas, constituídas por mesclas mais evidentes, e mais ou menos recentes, não têm por que pretender uma especificidade autóctone, mítica e regressiva. As recentes teorias pós-coloniais praticadas nos países anglófonos só nos convêm em parte. Para compreender em que as culturas latino-americanas se distinguem de outras culturas pós-coloniais, certos fatores devem ser considerados. Nossa condição pós-colonial já tem quase dois séculos. A identidade cultural original dos países latino-americanos, que já era múltipla, foi, em muitos casos, apagada pela colonização e, em outros, transformada pela mestiçagem. Nos países em que se mantiveram traços das culturas autóctones, aos quais se acrescentaram mais tarde as marcas das culturas africanas e dos países de imigrantes, são as misturas efetuadas que constituem nossa originalidade com relação aos países colonizadores. Nos discursos universitários dos países hegemônicos, fala-se muito em "multiculturalismo". O multiculturalismo teorizado e praticado nesses países não corresponde, felizmente, à nossa vivência multicultural. Para eles, trata-se de tolerar a coexistência de várias culturas, porque o trabalho dos imigrantes é necessário às suas economias, e essa simples tolerância implica a formação de guetos. A recente desconfiança com relação aos estrangeiros, nos Estados Unidos, evidencia a fragilidade e a hipocrisia de seu propalado multiculturalismo. Nos países latino-americanos não há multiculturalismo, nesse sentido; há mestiçagem, recriação cultural permanente, transculturação.1 A transculturação se efetuou e se efetua em todos os países latino-americanos, mas em cada um deles ela produziu resultados originais. Essa originalidade precisa ser reconhecida, quando se fala de cultura latino-americana. O Brasil, por exemplo, é sem dúvida latino-americano, mas não é culturalmente uniforme nem mesmo em seu enorme território. E sua relação com os países de língua espanhola só recentemente tem sido levada em conta pelos pensadores hispano-americanos. O imperialismo lingüístico do espanhol é tal que, quando se fala em cultura ou literatura latino-americana nas universidades não brasileiras, quase sempre o Brasil é marginalizado. Existe, entretanto, uma identidade latino-americana em sentido amplo, em virtude da semelhança de nossas histórias políticas e sociais. Culturalmente, a identidade latino-americana se constitui como a afirmação de uma diferença no seio de uma identidade: uma relação filial, edipiana, com a Europa. Por mais rancores que cultivemos, por mais violento que tenha sido nosso desejo de independência, temos uma ligação indissolúvel com as culturas metropolitanas, a começar pelas línguas que falamos. Como disse numerosas vezes Octavio Paz (que ninguém pode acusar de menosprezar suas raízes mexicanas), a cultura européia já é parte de nossa tradição, e renunciar a ela seria renunciar a uma parte de nós mesmos. 2 Segundo Jorge Luis Borges, a vocação da América é ser internacional: "Devemos pensar que nosso patrimônio é o universo".3 A América Latina é, ao mesmo tempo, memória e projeto, nostalgia de um passado perdido e prefiguração de um futuro possível. É com esses verbos bifrontes, "ter saudades" e "prefigurar", que Lezama Lima conclui seu ensaio La expresión americana,4 no qual propõe o conceito de América como "protoplasma incorporativo". Num mundo globalizado, essa capacidade de incorporação, e sobretudo de prefiguração, é um modelo que podemos oferecer às outras culturas. Esquecer nossas origens é perder nossa identidade. Manter o que resta das culturas originais e garantir os direitos das populações que as conservam é não apenas uma obrigação ética, mas também uma maneira de cuidar de uma riqueza cultural que nos pertence. Agora, querer reduzir nossa identidade ao que nos restou dos índios ou ao que nos trouxeram os africanos é uma regressão, que pode nos levar a um racismo às avessas. Nos países do hemisfério norte, ou hemisfério rico, a preocupação com o "especificamente nacional" só existe entre os conservadores ou entre os francamente fascistas, com o objetivo de recusar a imigração e a mistura de raças. As tendências xenófobas e belicosas dos nacionalismos têm-se manifestado, mais do que nunca, em nosso tempo de globalização, como uma reação a esta. Evidentemente, a recepção dos aportes estrangeiros deve ser levada a cabo através de uma seleção crítica, efetuando-se uma incorporação transformadora. O que prova a força particular de uma cultura é exatamente essa capacidade de assimilar sem se perder. Um tipo de receptividade crítica e criadora era o que defendia o modernista brasileiro Oswald de Andrade, em sua proposta de antropofagia cultural:5 devorar (metaforicamente) os aportes estrangeiros para nos fortalecermos, como faziam (literalmente) os índios tupinambás com os primeiros colonizadores do Brasil. No mesmo ano de 1928, num registro diferente, José Carlos Mariátegui propunha um americanismo não essencialista mas virtual, um pensamento hispano-americano que devia ser "elaborado", sem rechaçar os elementos europeus constitutivos.6 Outro engano em que já incorreram os discursos culturais latino-americanos, e que se deveria evitar, é conceber a cultura em geral e a arte em particular como meros testemunhos das condições socioeconômicas. Essa ilação, que a história e a antropologia contemporâneas desmentem, tem efeitos lamentáveis sobre a cultura e a arte. Considerar que um país pobre deve ter cultura para pobres, e arte que tenha por única temática a miséria, é defender um tipo de populismo paternalista, politicamente inaceitável. Os intelectuais populistas têm uma concepção muito pejorativa do "povo". Pretendendo oferecer-lhe uma cultura que esteja "ao seu alcance", impedem esse mesmo povo de receber informações mais complexas, mantendo-o numa condição de minoridade intelectual e impedindo-o de vislumbrar caminhos alternativos. Ligado ao nacionalismo populista, vem o culto do folclore. É óbvio que o folclore é uma riqueza cultural que deve ser preservada. Mas querer restringir as culturas latino-americanas a seus aspectos folclóricos significa impedi-las de evoluir, de inovar. Significa também oferecer aos outros — aos países de economia desenvolvida e de cultura sedimentada — exatamente a imagem que eles desejam ter de nós: exóticos, vestidos de poncho e chapéu de palha, pitorescos com nossas danças e nossas crenças, em suma, desafortunados e divertidos ao mesmo tempo. Ora bem: a América Latina não é apenas folclore. Temos grandes metrópoles com acesso à informação e à tecnologia avançada. Temos artistas e intelectuais capazes de dialogar de igual para igual com os dos países ditos desenvolvidos. O que devemos recusar da Europa e dos Estados Unidos não são suas culturas, mas a imagem que eles querem ter da nossa: aquela imagem folclórica, o espetáculo de uma pobreza pitoresca para ser visitada por turistas, ou de um "real maravilhoso" que só é maravilhoso para quem não vive sempre nele. Infelizmente são freqüentes, na América Latina, manifestações antiintelectuais, em nome de uma "espontaneidade", de uma "alegria", de uma "afetividade" ou de uma "magia" consideradas como nossa preciosa contribuição ao mundo. Em nome dessa espontaneidade, recusa-se todo experimentalismo ou rigor artístico, tarjando-os de "formalismo" e "elitismo" e considerando-os como incompatíveis com nossa "índole" e nossa "realidade". Deprecia-se também o pensamento abstrato, o discurso teórico e argumentativo, a pesquisa universitária, todos qualificados de "intelectualismo estéril". Que os latino-americanos sejam intuitivos, criativos, improvisadores e telúricos, que nossas manifestações artísticas sejam freqüentemente mais vitais do que as manifestações dos europeus, extenuados depois de terem lido todos os livros e terem chegado à conclusão de que a carne é triste — tudo isso é, para nós, uma vantagem. Mas transformar essas qualidades espontâneas ou circunstanciais em elementos suficientes para a consolidação de uma cultura ou de uma arte, é daninho tanto do ponto de vista cultural como do político. A criatividade destituída de uma base de informação vasta e sólida desemboca numa produção sem autocrítica e sem parâmetros, que será recebida pelos compatriotas sem nenhuma elevação do nível cultural e, pelos estrangeiros, como diversão inócua, demonstração tranqüilizadora (para eles) de nossa ingenuidade. Por outro lado, a difusão de uma cultura de massa uniformizadora terá seu objetivo facilitado num meio cultural esquecido de sua tradição intelectual e carente de discurso crítico. O mais lamentável é que a América Latina tem uma longa e respeitável tradição ensaística de reflexão sobre suas culturas, que foi substituída pelos discursos populistas e politicamente estereotipados dos anos 60, para ser em seguida sufocada pelas tolices internacionais difundidas pela mídia, encontrando-se agora ameaçada de esquecimento e substituída pela imitação passiva. O grande destino da América Latina não é encerrar-se em Macondos reais, nem morrer de sede corporal e cultural num Grande Sertão geograficamente circunscrito. Também não deveria ser imitar servilmente as nações hegemônicas. O Velho Mundo, ao olhar o Novo, deveria encontrar não o seu próprio rosto espelhado e degradado, nem um rosto totalmente exótico destinado a diverti-lo ou comovê-lo a distância, mas um rosto que devolvesse o seu olhar e que lhe demonstrasse que há outras maneiras de olhar a si mesmo e ao outro. Nosso objetivo deveria deixar de ser "abafar na Europa", e simplesmente mostrar a ela o que fizemos de diferente com o que ela nos trouxe. Além disso, num mundo atualmente colonizado pelos Estados Unidos, a América Latina pode converter-se numa opção cultural diversa dentro da globalização. Isso não se conseguirá com o isolamento cultural, nem com o cultivo de sua imagem folclorizada, mas com sua entrada efetiva no conjunto de discursos culturais de nosso tempo. Para se impor no discurso internacional, os latino-americanos precisam dispor de informações tão atualizadas, de armas conceituais tão afiadas e de formas artísticas tão apuradas como aquelas de que dispõem as culturas que ainda são hegemônicas. Tratar nosso patrimônio cultural com informações internacionais atualizadas é a melhor maneira de o manter vivo e ativo. Lutar contra a pobreza material e conservar nossa riqueza cultural é o desafio que nós, latino-americanos, deveremos enfrentar no século xxi. *"Las culturas latinoamericanas en el siglo xxi", comunicação apresentada na conferência internacional "En el umbral del milenio — Cultura — Ecologia — Genero — Violencia", Lima, abril de 1998. |