Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 06, 2007

Mortos e desaparecidos Miguel Reale Júnior


O governo vem de lançar livro para memória dos fatos objeto de análise da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos. A maior parte dos trabalhos da comissão se deu no governo Fernando Henrique. A comissão, criada pela Lei 9.140/95, foi arquitetada por José Gregori com a colaboração de familiares dos mortos e desaparecidos. Presidi a comissão, constituída por João Grandino Rodas, Nilmário Miranda e Suzana Lisboa, Luís Francisco Carvalho Filho, general Oswaldo Pereira Gomes e Paulo Gonet, durante seis anos. Sem dúvida, o processo de maior destaque foi o do líder do MR-8, Carlos Lamarca. Relembro as circunstâncias que levaram a comissão a reconhecer, neste caso, por 5 a 2, a responsabilidade do Estado.

Cabia à comissão, para análise do abuso por agentes do Estado, fazer abstração das condições pessoais do ativista político, bem como das ações praticadas, para se cingir a examinar as circunstâncias específicas e concretas de sua morte. Esta posição era conseqüência lógica da anistia. Com efeito, se o terrorista tivesse sido preso e processado, impondo-se-lhe uma condenação, estariam, por força da anistia, apagados os atos por ele praticados. Não tinha relevo, em face da anistia, a circunstância de ter sido líder da luta armada.

Destarte, pouco importava ter Lamarca chefiado o MR-8 e desertado do Exército, como, aliás, tantos o fizeram nas Revoluções de 22 e de 24. Cumpria focalizar exclusivamente as circunstâncias de sua morte. Foi fonte primacial o relatório da Operação Pajussara, elaborado pelo comandante da 6ª Região Militar do Exército e encontrado no porão da sede da Polícia Federal de Salvador. Consta desse relato que forças militares cercaram e invadiram a Fazenda Buriti, na Bahia, onde Lamarca estava homiziado com mais quatro pessoas. Três foram mortas, mas Lamarca e Jessé se evadiram, passando a ser perseguidos. O relatório assinala não ter o bando expressão militar, pois composto por duas pessoas em fuga na caatinga inóspita, onde o deslocamento exigia grande esforço físico, sem ter os fugitivos sequer alimentos.

As forças militares dividiram-se em três equipes, Tigre, Leão e Águia. Certo dia, a equipe Águia foi alertada de estarem duas pessoas com sacos dormindo perto de uma árvore. Transcrevo o relatório: Sem ser necessário nenhuma ordem, a pequena equipe, a exemplo de seu chefe engatilhou suas armas e procurou aproximar-se dos dois homens deitados. Cerca de 10 metros dos mesmos, em virtude de dois elementos da equipe terem se lançado através da caatinga, para encurtar caminho, provocando ruído de mato quebrado, um dos terroristas, despertou e exclamou: “Capitão, os homens estão aí.” Toda a equipe, a essa altura, já estava em linha. O elemento que falou começou a correr, iniciando-se então o tiroteio. O segundo levantou-se tentando também correr carregando um saco. Esse foi abatido 15 metros à frente, caindo ao solo, enquanto o que dera o alarme, apesar de ferido, prosseguiu na fuga. O comandante determinou que o cabo auxiliasse na perseguição a Jessé, entregando-lhe sua metralhadora. Pouco adiante, Jessé virou-se para o elemento que o perseguia, atirando-lhe uma pedra, recebendo então a última rajada. Ainda gritou: “Abaixo a ditadura.”

O relatório a seguir descreve o diálogo travado entre Lamarca, alvejado, e o comandante das tropas: “Você é Lamarca?” Nenhuma resposta foi obtida; retirando então do seu bolso o retrato e fazendo comparação, repetiu a pergunta, obtendo a resposta: “Sim, sou Lamarca.” “Como é o nome de sua amante?” “Iara.” “Sabe o que aconteceu com ela?” “Suicidou-se, não é?” “Morreu. Onde está sua família?” “Em Cuba.” “O que você acha disso?” “Sei quando perco.” “Você é um traidor do Exército Brasileiro.”

Não foi obtida resposta. Carlos Lamarca estava morto. Eram 15h40 de 17/9/1971.

Ao descrever a finalidade da operação, o relatório destaca ter sido alcançado seu objetivo, pois fora destruído o “mito terrorista representado por Lamarca”.

A operação foi marcada por descompasso entre a realidade e o mito. Consideráveis forças do Estado, alicerçadas em sofisticado apoio, enfrentaram dois homens depauperados. Só mesmo a necessidade de destruir não Lamarca, mas seu mito, explica não ter sido preso ao pretender fugir, sem ter no momento arma nas mãos. Preferiu-se atirar, pois assim estaria destruído o mito.

No encontro da equipe Águia com os dois guerrilheiros, revela o relatório não ter havido troca de tiros. Apenas acordados, os dois buscaram fugir, sendo Jessé ferido e em seguida metralhado ao jogar uma pedra. Lamarca, puxando um saco na mão, caminhou cinco metros e caiu atingido em movimento por vários disparos, como indica o laudo de exame necroscópico, com tiros na mão, na nádega, na clavícula, nos braços e na região do tórax.

Havia, então, nas circunstâncias, pleno domínio da situação pelas forças do Estado, que poderiam facilmente prender os guerrilheiros, em vez de tê-los abatido a tiros. A execução de Lamarca foi, portanto, um julgamento sumário. Agonizante, no instante em que morria, ouviu do comandante a motivação da sentença de morte que lhe fora imposta: “Você é um traidor do Exército Brasileiro.”

No âmbito de competência da comissão, cumpria examinar objetivamente se na ação militar houvera ou não abuso dos agentes do Estado. E abuso houve: os guerrilheiros, exangues, sem portar armas nas mãos, surpreendidos dormindo, poderiam ter sido presos pelas forças militares, que detinham absoluto domínio da situação. Por essas razões, reconheceu a comissão a responsabilidade do Estado, em obediência ao espírito da Lei 9.140/95, que reputava haver abuso no uso desnecessário da violência. De outra parte, lutou a comissão pela obtenção de dados acerca dos desaparecidos, que timbrei, com base em fatos, existirem, conforme salientado em ofícios enviados ao Ministério da Defesa e em audiências. Agora, tais elementos, por imposição judicial, podem vir à tona. Enfim, os familiares encontrarão os despojos de seus mortos.

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