Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 14, 2007

Daniel Piza

O fundo da questão


Quanto mais polarizado e passional o debate, mais escapa do fundo da questão. É o que está acontecendo (se me permite o gerúndio) com o filme Tropa de Elite agora. Tanto os que o atacam quanto os que o defendem fazem a mesma confusão entre realidade e cinema. Não, o filme de José Padilha não é fascista; quem se aproxima muito da mentalidade fascista é o Bope, o batalhão especial retratado por ele. E não, o filme não é uma apresentação isenta do modo de pensar do Bope, encarnado pelo capitão Nascimento que Wagner Moura faz tão bem; há uma série de escolhas de roteiro, edição e música que causam um resultado insatisfatório para uma obra de arte que se pretende realista.

O filme é intenso, revela um microcosmo pouco conhecido e tem muitas qualidades além das atuações (a de Milhem Cortaz com menção especial), portanto vale a pena ser visto. Mas acho melhor na primeira metade, em que vemos a dinâmica poderosa do ''''sistema'''' - o esquema de propinas e favores entre policiais e criminosos que se espalha de tal modo que se torna uma cultura interna, difícil de erradicar justamente por parecer normal. Nesse contexto, o Bope se diz incorruptível e só vê como solução a ''''guerra'''', a truculência nas favelas. Nascimento, porém, não agüenta mais sua rotina e promete à mulher grávida que vai deixar a tropa de elite, tão logo escolha o sucessor ideal entre um aspirante que tem coração e outro que tem cabeça.

Aqui começam os problemas. A defesa do filme diz que Nascimento é mostrado em crise, com síndrome de pânico, e não como um herói, um boina verde ou integrante da SWAT pronto a fazer o serviço que os outros não fazem por falta de caráter e estratégia. Mas qual a natureza de sua crise? É muito mais o estresse de viver num conflito permanente do que uma autocrítica, do que a revisão íntima de seus valores. A essa altura do filme, vemos o narrador e protagonista submetendo os candidatos do Bope a uma série de humilhações detestáveis. A ''''lógica'''' é que só mediante tais sacrifícios físicos é que um ser humano pode se tornar incorruptível, pode resistir às tentações do sistema. Nascimento não expõe uma palavra de dúvida sobre tal tese.

Não à toa, ele termina o filme satisfeito com o que fez e decidiu, com a conciliação de contrários que obteve com tal método. A pergunta então passa a ser: o filme perderia a força que tem - justamente por partir de um ponto de vista único - se trouxesse aqui e ali uma cena ou um diálogo que fosse um contraponto razoável ao pensamento do capitão? Além disso, o ritmo acelerado, como aconteceu antes em Cidade de Deus (e foi reconhecido por Fernando Meirelles), tira o drama de algumas cenas que deveriam ilustrar o aspecto terrível daquele personagem; a ação se sobrepõe, ao som de rock, e com ela o espectador é induzido a torcer para que Nascimento espalhe a Morte.

Na sessão a que fui, jovens abonados vibravam até mesmo com as cenas de tortura, agora imitadas em vídeos do You Tube. Padilha não pode ser culpado por essa demonstração de pulsões agressivas, de instintos vingativos que ditadores gostam tanto de manipular. Um artista precisa estar ciente de como seus signos podem vir a ser interpretados (não ser como o arquiteto que faz formas de frutas e depois reclama dos apelidos dados aos prédios), mas não é responsável pela insensibilidade dos intérpretes. Isso não significa, porém, que seu filme seja perfeito simplesmente porque aborda o tema por um ângulo só. Arte não é moral nem imoral, mas lida com moralidade.

A repercussão emotiva a respeito do filme, afinal, não tem a ver apenas com ele. Tem a ver com um momento histórico em que a lenta melhora do Brasil é insuficiente para reduzir de modo expressivo o estoque da dívida social, da imensa carência de renda e justiça, de problemas como a violência urbana. Basta ver a polêmica criada em torno do artigo de Luciano Huck na Folha. O texto, um tanto ingênuo ou demagógico em seu tom ''''Faço o que posso pelo Brasil, mas roubaram meu Rolex'''', teve réplicas como a de um leitor que disse que ele tem mesmo de abrir mão do relógio para que haja um país melhor; e a do escritor, rapper e dono de grife Ferrez, que disse que ele deve agradecer por não ter sido morto. Vamos confiscar os Rolex e chegar ao Primeiro Mundo?

O debate sobre segurança nesta democracia continua, enfim, opondo a turma do ''''bandido bom é bandido morto'''' à do ''''seja marginal, seja herói''''. Enquanto isso, os políticos de todos os partidos não param de sugerir que uma propina justifica a outra, tal como os personagens de Tropa de Elite. No mundo de Renan Calheiros, os extremos afundam juntos.

CADERNOS DO CINEMA

O filme Piaf, de Olivier Dahan, foi criticado por alguns franceses por ser um ''''docudrama'''' ou ''''biopic'''' convencional, americanizado, etc. Mas às vezes, com um personagem desses, o bom mesmo é deixá-lo viver. E o que faz a atriz, Marion Cotillard, é assombrosamente vivaz. A intensidade dessa mulher, sua infância complicada, sua personalidade forte e ao mesmo tempo carente, a maneira como absorvia os que trabalhavam com ela - tudo é mostrado de forma que não desprende a atenção. Não é o filme que atribui a grandeza da cantora ao temperamento da mulher, mas ela é que, como Callas ou Elis, levou para sua enorme técnica de interpretação a paixão com que viveu a vida.

RODAPÉ (1)

Doris Lessing, outra mulher de muita personalidade, tem uma obra irregular, na qual não gosto especialmente da ficção científica. E eu preferia que Philip Roth tivesse ganhado. Mas que a mesma mulher tenha escrito O Carnê Dourado em 1962 e O Sonho mais Doce em 2001 é uma prova de grandeza. O primeiro livro é um marco feminino e literário, por sua forma e conteúdo ousados. O segundo é uma sátira da contracultura, à qual sempre se associou o primeiro. Em comum, ambos os livros, como os demais, têm o estilo elegante e agudo. Eu a vi ler um trecho de romance certa vez e não foi nada especial. Mas sua voz escrita é única.

RODAPÉ (2)

Arte feita do drama autobiográfico foi também a da americana Sylvia Plath, cujo melhor livro de poemas, Ariel, acaba de ganhar ótima tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo (Verus Editora). O original em inglês é estampado em fac-símile dos manuscritos originais, digitados em máquina de escrever, e isso resulta num efeito interessante. Ler sua poesia é realmente como flagrar uns papéis na gaveta de uma mulher, como um diário íntimo elevado à condição de arte pela força de suas imagens (''''Nada a fazer com este lindo vazio a não ser poli-lo'''', ''''Eu me reviro em minha bainha de impossibilidades'''') e um tom que, por mais deprimido, por mais cansativo de tão lúgubre, sempre soa como um pedido de salvamento.

DE LA MUSIQUE

Se as três mulheres acima lhe deram uma canseira, pegue o CD de Roberto Fonseca, Zamazu (Biscoito Fino), e relaxe. Lembro dele brilhando ao piano na banda de Ibrahim Ferrer, com quem tem um duo no CD que é encantador, El Niejo. É claro que há tristeza em todas essas canções, ou Triste Alegria como diz o título de uma delas, ou como na voz dessa extraordinária Omara Portuondo em Mil Congojas. Mas o saldo do disco é uma sensação de leveza.

POR QUE NÃO ME UFANO (1)

A respeito de alguns textos que tenho lido sobre Che Guevara, sobre quem saiu o livro Relatório da CIA (Ediouro) agora, 40 anos depois de sua morte: ninguém sabia que guerrilheiros revolucionários gostam de atirar e matar e posar de salvadores da humanidade?

POR QUE NÃO ME UFANO (2)

Eu gostaria de entender uma coisa: se o governo Lula diz que o Estado brasileiro é raquítico, por que privatizar as rodovias federais? Por que não usa o dinheiro público, como fez na operação tapa-buracos? Pense bem, seria mais uma chance de colocar membros do PT em cargos estatais. Afinal, os dez maiores doadores do partido não são os diretores de ''''brases''''?

POR QUE NÃO ME UFANO (3)

Da excelente coletânea A República Inacabada, de Raymundo Faoro (Globo), que acaba de chegar às livrarias: ''''Na prática brasileira, o liberal, além da distorção sofrida pelo tipo de Estado, perdia-se em máscaras de muitos feitios e cores. (...) Longe do modelo anglo-saxão, respirando o bolor bragantino, o liberal se propõe educar, corrigir, tutelar o ''''inorganismo'''' (o povo), mas atento às suas travessuras e rebeldias. (...) A tolerância é um dos instrumentos da atividade liberal, mas com ela não se confunde. (...) A essência do liberalismo estará em outro rumo: no controle e na limitação do poder por obra da lei e da constituição, não nominais, mas efetivamente operantes.''''

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

Ninguém sabia que guerrilheiros gostam de atirar e matar e

posar de salvadores

da humanidade?--

A crise do capitão Nascimento é muito mais do estresse do

conflito do que uma

revisão de valores--

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