JOÃO UBALDO RIBEIRO
O feriado me obrigou a escrever com mais antecipação e não sei se, nos dias decorridos até hoje, o ministro Gil se manifestou sobre o problema. E, se se manifestou, não o fez através daqueles arabescos verbais abstratos e sonorosos em que adeja sua mente de artista, às vezes bonitos de ouvir, mas de árdua decifração, pelo menos para as limitações de meu entendimento. Se falou o que pelo menos eu esperava que ele falasse, tal como o resto da baianada, alvíssaras, mas, mesmo assim, o que vai dito abaixo precisa ser dito.
Lembrei de Glauber, uma vez, na casa dele, em Sintra, Portugal. Entrei e ele estava furioso com alguma coisa, nunca vou saber o quê. Me encarou carrancudo e esbravejou:
- Vou telefonar para o ministro da Cultura! Ele é ministro da Cultura, eu sou cultura e ele tem que me ministeriar!
Nada mais lógica e claramente expresso. E agora Gil tinha que estar ministeriando Jorge Amado, mas, que eu saiba, não está. E com isso se arrisca a entrar para a História como o ministro da Cultura em cuja gestão o insubstituível acervo de Jorge Amado foi tirado da Bahia e entregue à Universidade de Harvard. Ou seja, o Brasil não queria manter o acervo de um de seus filhos mais ilustres, um dos escritores mais importantes do mundo (sei que há quem discorda, mas para mim quem discorda é burro e, se quiser, pode dizer que o burro sou eu) e um dos vultos mais importantes de nossa História. Ele gostava muito da gente, os ''''meninos'''' de então. Não esqueço do olhar dele, todo ancho, um sorrisão que quase lhe tomava a cara inteira, nos mirando como um patriarca orgulhoso. Não houve um de nós que ele não incentivasse, de quem não exigisse trabalho, sempre dando um jeito de botar o nome da gente em tudo quanto era entrevista que dava, sempre dando um conselho sábio. Gil deve ter muitas lembranças disso, até da casa do Rio Vermelho, hoje quase uma tapera - e foi lá, no chão de seu quintal, que Jorge quis que lhe derramassem as cinzas, como quis que seu tesouro ficasse sempre com seu povo e sua terra.
E Gil sabe também que, pouco depois de ele e eu nascermos, Jorge Amado era constituinte e, embora ateu como sempre foi, fez inserir na Constituição um dispositivo que garantia a liberdade de culto. Antes disso, a vastíssima população de origem africana da Bahia era obrigada à humilhação de ter que tirar licença na polícia para praticar suas religiões e, ainda assim, terreiros e casas de culto eram invadidos pela polícia, com destruição de casas e de objetos sagrados. Jorge não só alterou a Constituição como foi à luta. Não foi à luta somente criando heróis e protagonistas negros, antes quase inteiramente ignorados, mas militando, com amigos também negros, pela efetiva concretização da liberdade de culto e a restauração da dignidade das religiões de origem africana. Não foi demagogia nem vontade de aparecer que fez com que o honrassem com títulos elevados no mundo do candomblé. Foi por amizade e gratidão a um permanente companheiro de luta.
Gil sabe que a principal razão por que muita gente, aqui e no exterior, quer conhecer a Bahia não é praia. Quem quiser praia, só não tem praia em Minas. Em compensação tem muito barroco e quem quer ver barroco pode se fartar em Minas. Quem quiser igreja idem. O que distingue a Bahia é sua identidade, sua fala, o jeito de seu povo, sua mística, sua sensualidade espontânea, sua mitologia. Dirá um dos sabidos que por aí abundam: se Jorge não desse esse e outros passos, outro daria. Talvez, mas acontece que foi Jorge quem deu. E foi ele também, Gil se lembra, que, junto com Érico Veríssimo, brecou a decisão do governo militar de impor censura prévia aos livros. Se fizerem isso, disseram os dois grandes homens, não escrevemos mais uma linha.
Não sei se a cegueira e a surdez seletiva do chefe de Gil são contagiosas, mas parece que ele não sabe nem viu nada. E esqueceu que, sem baianos como Jorge Amado e Dorival Caymmi, a Bahia podia perfeitamente ser mais uma cidade portuária e de negócios, com a população majoritária ressentida ou francamente revoltada e racista. De novo pode vir o blablablá de que, se não fossem eles, seriam outros. Mas, de novo, acontece que foram eles.
Ou seja, sem Jorge talvez a Bahia fosse muito diferente do que é hoje. Talvez a arte não fosse a mesma, talvez Gil não tivesse régua e compasso (que podem estar precisando de manutenção, isso acontece), talvez seu talento não pudesse desabrochar, nem tivesse os ombros mais antigos em que todo talento novo se apóia. Era capaz até de surgir um sociólogo levantando a hipótese de que, se aquela sociedade não houvesse se tornado tão materialista, mercantilista e dividida, poderiam ter surgido artistas com o perfil de Gil. Foi isso que eu quis dizer, quando afirmei que Gil (não faça isso, Gil, não seja o ministro da Cultura sob cuja gestão o Brasil efetuou uma bela troca com Harvard, ela com os 250 mil itens do acervo de Jorge e nós com Mangabeira Unger) podia hoje não passar de uma hipótese. E eu também, claro. Aliás, no meu caso, nem mesmo chegar a hipótese, praticante que sou do mesmo ofício que Jorge. Mas não somos hipóteses, somos quem somos, Gil, é claro, muito mais belo e brilhoso. Só tenho a meu favor estar cumprindo minha obrigação e ele não.