Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 21, 2007

DANIEL PISA

d.A.

sinopse

Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br


Sobre Paulo Autran, que morreu aos 85 anos na sexta retrasada, senti falta nos obituários de uma ênfase maior na perspectiva histórica; afinal, pelo que se lê em autores como Décio de Almeida Prado, a história do teatro e do "acting" brasileiro pode ser dividida em antes de Autran e depois de Autran. Até os anos 50, quando ele despontou para o prestígio, o estilo de atuar era outro, mais empolado e artificial, do qual o grande nome foi Procópio Ferreira. Autran veio com uma dicção mais natural e um gestual mais econômico, aliando a eles um conhecimento e uma aplicação insuspeitados. Pelo restante da carreira ficou nessa fronteira entre o clássico e o moderno, alerta, vigilante, sempre zelando tanto pela emissão verbal quanto pela emoção direta.

Não por acaso, as primeiras críticas a ele, ainda no final dos anos 40, se queixavam de estar "natural demais" - tampouco por acaso, em referência ao seu papel em À Margem da Vida, de Tennessee Williams, dramaturgo americano cujas peças estavam sendo usadas por atores como Marlon Brando para transformar a arte da interpretação. Não que Autran tenha chegado aos extremos do estilo Actor?s Studio, mas, como escreveu Prado sobre sua atuação em Antígone, em 1952, ele não precisava mais "erguer a voz para sugerir força e autoridade". Quatro anos depois, seu desempenho em Otelo, ao lado de Cacilda Becker, arrancaria de Prado a qualificação de "perfeito" e de Glauber Rocha "genial". A partir dali, de Walmor Chagas a Wagner Moura, se tornou o mais influente dos atores brasileiros, um modelo de como merecer a fama.

Autran fez de tudo, da comédia ao drama, antigos e novos, brasileiros e estrangeiros, graves e frívolos; fez ainda cinema (Terra em Transe, de Glauber Rocha, que lhe pedia "mais, mais!" e ele cedia, mas não muito...) e TV (o pastelão mais classudo da história, em parceria com Fernanda Montenegro em Guerra dos Sexos). Não raro, os críticos apontaram seu "domínio cênico". Se havia ressalvas, era a respeito da maneira como não parecia se integrar plenamente ao papel, mas o ponto era esse: Autran era contido, concentrado, consciente - não esse tipo de ator que leva tiques e trejeitos de cada personagem que faz para o seguinte, como uma camada de maquiagem. Tinha presença, mas não se bastava em ser ele mesmo no palco.

Comecei a acompanhá-lo com Solness, no ótimo grupo Tapa, e, se não gostei tanto de seu Rei Lear, que não chegou a transmitir aquele acúmulo de decepções que nos dá uma mescla de compaixão e desassossego, jamais me senti decepcionado, pois a culpa não era apenas dele. Sua carreira, ousada mesmo no crepúsculo, ganhou o anoitecer que merecia com Avarento, em que estava engraçadíssimo de ceroulas, tão despojado quanto preciso. Era um homem inteligente e culto, que adorava e sabia ler, tinha opinião e não transigia com o populismo. Passou um ano enfrentando o câncer, aceitando a iminência da morte, com bom humor. Queria ter sido velado no Municipal. Não foi possível, mas é ali que sempre haverá uma vela acesa por ele.

CADERNOS DO CINEMA

O último papel de Autran no cinema foi em O Passado, de Hector Babenco, em que faz uma ponta como um professor de francês um tanto patético, com uma técnica de humor muito apurada.

O que impressiona no filme, que está na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é a maneira como se sustenta no limite do melodrama e do suspense. A história de um intérprete argentino, feito por Gael García Bernal, que se separa da mulher, Rimini, e ela não consegue esquecê-lo - em vez de superar o problema com o tempo, só piora - seria outra coisa na mão de outro diretor, digamos Almodóvar, Fellini ou Hitchcock. Com Babenco, assume graduações cinzentas, tensas, intermitentes como as chuvas que caem ao longo do filme. Há certa lentidão, talvez pela vontade de embutir outros temas (a barreira da língua, a passagem pelo Brasil). Mas sempre sentimos que algo terrível vai acontecer, que Rimini ultrapassará algum limite, e que ele - talvez mais passivo do que seria outro homem na mesma situação - não conseguirá sair do cerco da loba, mesmo que encontre outra que o complemente como nunca. E nos pomos a pensar não apenas sobre essas pessoas, mas sobre como não se possui o passado, embora ele nos possua.

UMA LÁGRIMA

Da geração de Paulo Autran e Marlon Brando, Deborah Kerr também morreu, aos 86 anos, na quinta passada. Nunca foi minha predileta como atriz ou como beleza, mas ela conjugou as duas qualidades e fez uma excelente carreira, trabalhando com grandes diretores nos papéis mais distintos, especialmente naqueles que contêm desejos reprimidos que vemos brotar. Fez, assim, cenas que seriam emblemas da arte e da época, como a do beijo na praia que literalmente a pôs com Burt Lancaster a um passo da eternidade, onde descansa agora.

RODAPÉ (1)

"Não há eufemismos, raras metáforas desviam a fantasia, os períodos são pouco trabalhados. Na construção de suas frases, o sentido causal, final, consecutivo ou concessivo das partes é manifestado muitas vezes não pelas conjunções, mas pela entonação; com toda razão ele se compara a Tácito. O sentido cria as conexões muito mais que os conectivos sintáticos criam o sentido. É certo que há frases longas, mas não um burilamento consciente dos períodos. E as palavras são correntes e despojadas, ou pelo menos prescindem de qualquer seleção com base em critérios estéticos (...). Não busca nada senão a expressão que faz justiça ao objeto: o resultado é a mais perfeita nudez das coisas. (...) Sua transparência é radiante." Erich Auerbach sobre Montaigne, em Ensaios de Literatura Ocidental (editora 34).

RODAPÉ (2)

Não deu outra. Assim que os prêmios literários brasileiros passaram a incluir livros em português em geral, imaginei que os escritores locais passassem a ver naus. Nesta semana, Gonçalo Tavares ganhou o prêmio Portugal Telecom com seu Jerusalém. E olhe que entre os concorrentes estava o romance do angolano Mia Couto, O Outro Pé da Sereia, em minha opinião superior ao do português.

POR QUE NÃO ME UFANO (1)

Ainda fazendo confusão entre cinema e realidade, muita gente elogiou Tropa de Elite por ter tratado "bandido como bandido" e por ter "denunciado" a juventude universitária e ongueira que usa drogas e financia o crime organizado, como se fosse o primeiro livro ou filme a fazer isso e como se todos os jovens e ONGs fossem iguais. É um fato, obviamente, que são eles os consumidores e co-responsáveis. Mas resolver o problema da segurança envolve bem mais. Primeiro, porque não há campanha que vá extinguir o uso de drogas, que acompanha a humanidade desde que surgiu. Segundo, porque alternativas como a legalização de todas elas é também utópica, já que a produção e a distribuição continuariam com os criminosos e não dá para conceber um sujeito cheirando pó em público em frente de crianças.

Ação repressiva é importante, mas sem atingir tantos inocentes, sem recorrer a tortura e execução sumária e sem fazer o que se fez nesta semana na Favela da Coréia, com fuzilamento do alto de helicópteros. E que seja combinada a uma série de outras ações, como política comunitária, limpeza da polícia, fim da impunidade, vigília das fronteiras, etc. Transformar o Bope em paladino da ordem e da moral é, para dizer o mínimo, aposta perigosa.

POR QUE NÃO ME UFANO (2)

A extensão da fidelidade partidária a cargos majoritários foi uma boa notícia, desde que assim prossiga e que seja praticada. Só evitar o troca-troca fácil de partidos, a debandada da oposição para a situação em função de verbas e conveniências, já é algo. Mas é preciso muito mais para que os partidos brasileiros sejam partidos reais. Reduzir o número deles (cadê a cláusula de barreiras?), puni-los por práticas como o caixa 2 e a compra de eleitores, cobrá-los pelos programas (daí a importância do fim do voto secreto), diminuir seu poder de barganhar emendas ou votos, corrigir a representatividade (talvez pelo voto distrital misto) - há muitas medidas para que o sistema político atenda minimamente a suas funções. Cadê o debate?

Duas dessas medidas dizem respeito diretamente ao princípio constitucional da autonomia entre os poderes: restringir o número de medidas provisórias, com as quais o Executivo sufoca o Legislativo; e acabar com a impunidade, como a armação corrente para que Renan Calheiros não seja cassado em troca da aprovação da CPMF, o que limita o funcionamento do Judiciário. O Brasil ainda precisa decretar o Iluminismo em seu território.

''''Autran não era esse tipo de ator que leva tiques e trejeitos de cada personagem para o seguinte''''

''''Com Babenco, o melodrama assume graduações cinzentas, tensas, intermitentes como as chuvas''''


Aforismos sem juízo
Chamar de carência o que é desejo é fugir da responsabilidade de ser livre.

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