Duas questões fora do foco
A discussão sobre as causas da violência
precisa ir além do varejo do crime
Julia Duailibi
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O filme Tropa de Elite e o episódio do assalto ao apresentador Luciano Huck – com seus sucessivos e acalorados debates – jogaram foco em um aspecto da violência que atinge as grandes cidades, o varejo do crime. Nesse domínio, cabem os traficantes que mandam nas favelas cariocas, os ladrões de relógios Rolex no trânsito paulistano e os policiais, atônitos diante do poder de fogo dos bandidos. Acima desse patamar, há outros personagens e questões aos quais tanto o filme quanto a rasa discussão em torno do assalto a Huck não forneceram respostas. Em Tropa de Elite, fica claro que os morros do Rio de Janeiro são hoje um gigantesco entreposto de todo tipo de droga. A certa altura do filme, um dos traficantes comemora: "Nevou no morro". É a senha que avisa sobre a chegada de mais um carregamento de cocaína. A questão que se coloca é a seguinte: se o Brasil produz pouca maconha e nenhum grama de cocaína, como é possível que quilos e mais quilos de droga cheguem diariamente aos morros cariocas?
Responder a perguntas como essa é uma questão crucial no combate ao crime no Brasil, uma guerra que ceifa 50.000 vidas anualmente. Nenhum país registra um índice tão alto de assassinatos, em números absolutos. Sob a ótica do varejo, a maior parte desses crimes é decorrente do tráfico de drogas. São mortes causadas por disputas entre traficantes pelos pontos-de-venda, confrontos entre policiais e bandidos ou mesmo dívidas não pagas de viciados. Em uma perspectiva mais ampla, percebe-se que na origem de tudo está a imensa permeabilidade dos 16.000 quilômetros de fronteira seca do país. Estima-se que 50% da cocaína que entra no Brasil venha da Colômbia. A outra metade tem como origem o Peru ou a Bolívia. Geralmente a droga vem em carregamentos de 500 quilos a 1 tonelada e ingressa pelo Paraguai ou pela fronteira com os estados amazônicos. Daí para as grandes capitais, que funcionam como centros consumidores e porta de saída para a Europa e para os Estados Unidos – sim, o Brasil virou pólo exportador de drogas –, é um pulo. Calcula-se que anualmente entrem no país de 80 a 100 toneladas de cocaína. Nos primeiros oito meses deste ano, a Polícia Federal apreendeu 9 toneladas, apenas 10% desse montante. A falta de articulação entre os órgãos responsáveis pelo combate ao tráfico nas esferas federal e estadual impede uma ação eficaz. Some-se a isso a corrupção. "Só assim um traficante maltrapilho é capaz de manter um esquema tão eficiente na recepção e distribuição da droga nos morros", diz José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública e um dos maiores estudiosos do fenômeno da criminalidade.
O mesmo raciocínio pode ser usado para entender a lógica que rege o roubo de um Rolex. Nesse caso, a pergunta é a seguinte: o que ocorre com cada relógio de grife arrancado do pulso de cidadãos como Luciano Huck? A pedido de VEJA, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo produziu uma estatística sobre o número de Rolex roubados na capital. Desde 2004, a média anual tem sido de 350 peças, quase uma por dia. Ao contrário do que pensam os "correrias" ideológicos, esses relógios não serão convertidos em distribuição de renda aos mais desfavorecidos. Há uma máfia que chega a ter margens de lucro de 250% com a compra e a revenda de produtos roubados. São Paulo tem hoje vinte grandes receptadores que compram os relógios de quadrilhas especializadas nesse tipo de roubo. Os assaltos costumam acontecer no trânsito, em cima de motos, como no caso de Huck. Um relógio que vale 10.000 reais é repassado aos receptadores por 2.000 reais. Em seguida, o mesmo Rolex será vendido por até 7.000 reais em lojas do centro de São Paulo que têm como fachada o comércio de ouro. No capitalismo, há poucos negócios tão lucrativos. Desbaratar essas redes clandestinas, seja do comércio de drogas, seja do de jóias roubadas, é um passo vital no combate à criminalidade.
Com reportagem de Karin Hueck
Fotos Divulgação, AP |