Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 07, 2007

VEJA Entrevista: Sérgio Cabral

"Vou até o fim"

O governador do Rio diz que a guerra aos bandidos
não tem trégua e que, nas três últimas décadas, o
estado foi liquidado por projetos políticos pessoais


Ronaldo França

Oscar Cabrals

"A ordem pública não é
um 'papo careta', um
contraponto aos direitos
humanos. É civilidade"

No segundo turno da campanha que o elegeu governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, 44 anos, viveu momentos de tensão. Quando discursava em uma favela, traficantes atiraram e a segurança teve de entrar em ação para protegê-lo. Ao assumir o governo, iniciou uma operação jamais vista contra o tráfico de drogas e garante que vai até o fim. "Não há nada que me desvie desse caminho", diz. É a mais alta aposta de sua carreira política, até agora. Com o estado sem capacidade de investimento devido às sucessivas administrações caóticas, com uma polícia corrupta e desorganizada, a tarefa é difícil. No momento, ele se vê às voltas com algo bem mais fácil: perder 10 quilos para compensar com folga os 6 que engordou nos primeiros seis meses no cargo. Já iniciou um programa de exercícios físicos e fechou a boca. Para a comida, fique claro. Ao analisar o que levou o Rio à deterioração dos serviços públicos e ao atual patamar de violência, não economiza palavras sobre seus antecessores, Leonel Brizola, Anthony Garotinho e Rosinha: "O Rio esteve a serviço de projetos políticos pessoais de âmbito nacional. Isso é danoso. Liquida o estado".

Veja – As batalhas contra o tráfico, como esta em curso no Complexo do Alemão, desgastam muito. Até onde o senhor está disposto a chegar?
Cabral – Minha orientação é sempre a busca da ação mais eficiente possível e com menos danos à população. A ação do Alemão foi corretíssima do ponto de vista operacional. Mas sei que no futuro poderá haver falhas em algum outro confronto. A troca de tiros já é um dano, um stress. O vital é evitar que vidas inocentes paguem por esses enfrentamentos. Mas eu vou até o fim do meu governo mantendo essas ações. Não há nada que me desvie desse caminho. Posso garantir a você.

Veja – Mas quando a operação for feita na Zona Sul, a região mais rica da cidade, o desgaste pode ser muito maior...
Cabral – O que tem de ser feito será feito. A maioria da população quer isso, apesar do stress que se pode prever. Vale a pena a tensão. Quando se tem uma infecção generalizada, é muito melhor dar um antibiótico que vai resolver o problema, mesmo que tenha efeitos colaterais, do que um remédio apenas para tirar a dor, porque este certamente não vai resolver. Temos grupos de traficantes na Zona Sul que alimentam o crime organizado da mesma maneira que os grupos da Zona Norte. A ação será rigorosamente a mesma. Teremos todas as precauções, mas será exatamente igual. Meu objetivo é ver a polícia circulando na favela tal como circula nas áreas ricas da cidade. Ter os índices em padrões civilizatórios.

Veja – O senhor está dizendo que pretende colocar o Rio em um patamar de Primeiro Mundo na segurança pública?
Cabral – Estou. Primeiro Mundo. Essa é a minha luta. É o meu compromisso até o fim do governo.

Veja – Mas o que dizer aos que temem que a cidade se torne uma praça-de-guerra?
Cabral – O ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair já disse que a segurança é a primeira das liberdades. A esquerda, durante muitos anos, confundiu a gestão de segurança com violência contra o cidadão. A segurança pública, em muitos casos, exige ações enérgicas, que são violentas. Elas têm uma imagem ruim, mas são necessárias para a garantia da ordem pública. A ordem pública não é um papo careta, um contraponto aos direitos humanos. Pelo contrário, é a garantia de civilidade. A manutenção da ordem é fundamental para o direito de vir, para o exercício da cidadania. Se houver abusos, arbitrariedades, vamos investigar. Compreendo que as ONGs que se contrapõem aos enfrentamentos estejam fazendo o trabalho delas. Isso é do jogo democrático. Me mostrem os abusos e vou punir. Mas a violência no Rio chegou a um nível tal de permissividade, de intervenção no cotidiano das pessoas, tornou-se tão bélica que leva a isso. Uma situação como o ataque do PCC em São Paulo foi completamente diferenciada dos padrões de violência da cidade. Aqui, as pessoas se habituaram a ver bandidos dando tiros nas ruas. Temos de descontaminar o Rio. Não é normal e nós não podemos nos acostumar com isso.

Veja – O senhor não identifica, em algumas dessas ONGs, um discurso ideológico que será sempre contra o uso da força em favelas?
Cabral – Elas não me comovem.

Veja – O uso das Forças Armadas resolveria?
Cabral – Lamento muito que elas não tenham vindo. O presidente Lula se entusiasmou com a idéia. O ministro da Justiça aprovou, o secretário nacional de Segurança Pública aprovou e eles remeteram ao Ministério da Defesa. Ali, o projeto adormeceu. Não sei se o ministro não soube conduzir. Não vou fazer juízo de valor. O fato é que a ajuda não veio. O que eu não entendo é que o contribuinte que paga o salário da PM e da Polícia Civil é o mesmo que paga o salário da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Esse contribuinte não consegue entender, sobretudo o do Rio, por que eles não podem estar nesse processo de auxílio na segurança pública. Eu vi na Colômbia como isso foi decisivo. Em Medellín, metade da cidade é favelada. As Forças Armadas estão dentro das favelas, combinadas com uma ação de infra-estrutura urbana, de acessibilidade. Sem acessibilidade não entram a polícia, o bombeiro, os Correios, as concessionárias de energia, e por aí vai.

Veja – Mas, nas favelas já urbanizadas pela prefeitura, os traficantes voltaram com força. Por quê?
Cabral – Aquele projeto não fez a lição de casa como deveria. Instalou equipamentos públicos mais modernos, mas respeitou a morfologia atual das favelas. Não teve a preocupação da acessibilidade, de abrir avenidas em algumas delas. Se a segurança pública não pode transitar na comunidade, não adianta nada. As favelas, como estão, são verdadeiras fortalezas para os bandidos. São cidades medievais.

Veja – No primeiro mês de seu governo, o senhor se declarou a favor da liberação das drogas. Depois dos enfrentamentos, mudou de opinião?
Cabral – Não mudei. Tenho filhos e não quero que nenhum use drogas. Mas o álcool também faz mal. Os Estados Unidos proibiram o álcool, o que levou o país a um altíssimo nível de corrupção e a um grau de degradação moral sem precedentes. Franklin Roosevelt, um grande estadista, acabou com a Lei Seca porque percebeu o mal que estava em curso. O que a gente tem de avaliar é a relação custo-benefício da proibição. Quantas pessoas estão morrendo direta ou indiretamente por força do comércio ilegal das drogas? Será que não é mais fácil legalizar e criar políticas públicas na área da saúde, para a conscientização, para o controle?

Veja – Seus antecessores culpavam os usuários de drogas pela violência. A tese era que o usuário ajuda a financiar os traficantes. O senhor concorda?
Cabral – Essa é uma visão completamente distorcida. É evidente que, se não houvesse usuário, não existiria a luta fratricida dos traficantes. Mas eu vou culpar o usuário? Quem sou eu para questionar a decisão pessoal dos outros? Esse tema navega hoje em um campo quase mítico e muito hipócrita. As grandes nações não discutem o assunto. O máximo que ocorre em alguns centros civilizados, de Primeiro Mundo, é uma flexibilidade para o usuário. Quantas gangues existem na periferia de Nova York, Washington, Paris ou Berlim, onde há morte, há briga pela venda de drogas... E quantos assaltos às casas, aos carros, aos pedestres ocorrem em função da luta pela droga ou pela primazia nos pontos-de-venda...

Veja – Os especialistas dizem que a polícia do Rio está entre as mais desorganizadas do Brasil. A capital, com 37% das ocorrências, tem apenas 16% do efetivo policial, por exemplo.
Cabral – Estamos resolvendo isso. Primeiro acabei com a prática de políticos indicarem os delegados e comandantes de batalhão. Há outra frente. Um grupo de empresários, dos mais qualificados, se reuniu e está repetindo no Rio o que fez em Minas Gerais, São Paulo e Porto Alegre e está financiando um profundo estudo do professor Vicente Falconi e sua equipe. Além de cuidarem do aumento da receita do estado, de revisarem o processo de gestão do servidor público, Falconi e sua equipe vão fazer algo inédito: a gestão da segurança pública. Estão utilizando o conceito Toyota de gestão. Avaliam o processo como um todo. O objetivo é não ter estoque de decisões criminais pendentes. Analisam todo o processo, que engloba a investigação policial, a qualificação dos profissionais, o criminoso, o crime cometido, a decisão judicial, os presídios... Enfim, a eficiência da segurança pública.

Veja – O que já foi possível constatar?
Cabral – Vou lhe dar um exemplo. Hoje, a frota de automóveis da polícia é gerida por ela mesma. Não tem cabimento para a polícia gastar tempo, energia e homens com isso. Vamos fazer um pregão para terceirizar essa gestão. O Rio tem 3 600 viaturas, e 41% delas estão imprestáveis. Os outros 59% rodam precariamente nas ruas. Os estudos mostram que 1 500 automóveis em perfeito estado são suficientes para todo o estado.

Veja – A economia do Rio de Janeiro é tão dependente do dinheiro que vem do petróleo que, nesse sentido, até parece um país árabe. A petrodependência é ruim?
Cabral – O estado tem excelente perspectiva também na siderurgia. Em breve, teremos seis grandes siderúrgicas. Também estamos crescendo na indústria naval, no setor portuário, na produção de etanol e nos preparando para uma presença muito forte no biodiesel. Estamos trazendo a maior empresa do setor, a Brasil Ecodiesel, para investir no estado. Audiovisual, moda e turismo complementam atividades importantes na área de serviços. Dos 92 municípios, cinqüenta têm vocação turística. O Rio vai sobreviver muito bem ao fim do petróleo.

Veja – Nas últimas três décadas e meia, o Rio passou pelo processo de empobrecimento, de deterioração dos serviços públicos e de aumento da insegurança. Qual é a sua avaliação desse processo?
Cabral – No momento em que você coloca o estado a serviço de um projeto político, você liquida com o estado. Isso foi feito várias vezes no Rio. Alguém pensou: "Vou colocar o estado à disposição das demandas políticas que me chegam e de um projeto pessoal meu, de ambição nacional". Essa combinação danosa levou a outro equívoco de brigar com o governo federal. Além de uma incapacidade, isso foi um ato de intolerância. Aconteceu também entre o governador e o prefeito da capital. Desde o meu primeiro dia procurei restituir as relações federativas.

Veja – O senhor tem exemplos concretos das conseqüências disso na máquina pública?
Cabral – Havia duas importantes frentes de receita que estavam prejudicadas por muita influência política. Fizemos uma intervenção profunda. Eram o Departamento de Trânsito (Detran) e a companhia de abastecimento de água, a Cedae. Introduzimos o pregão eletrônico, que fez cair em um terço o valor da compra de cloro. Nos hospitais, estamos comprando medicamentos por um quinto do valor. Meu esforço agora é o de pagar em dia. Acredito que temos de buscar a eficiência do estado, que foi deteriorada nas últimas décadas.

Veja – Se o senhor não tivesse sido eleito, estaria às voltas com o caso de seu colega de partido, o senador Renan Calheiros. O senhor não acha que ele já deveria ter deixado o Senado?
Cabral – Ele deveria apresentar os documentos que comprovam os pagamentos. Ele foi legitimamente eleito pelos senadores e deve explicações a eles. Tenho um carinho enorme pelo Renan, que me acolheu muito bem no Senado e sempre respeitou minhas posições. Mas acho realmente que ele precisa se explicar melhor. Não entro no mérito sobre se deve ou não se afastar da presidência, porque eu estaria me intrometendo em uma decisão que cabe ao Senado. Mas acho, sim, que ele deve apresentar documentos mais consistentes. Estou na situação de um homem público que está da arquibancada vendo o jogo.

Veja – Então, voltando ao seu campo. Qual é seu futuro político?
Cabral – Você pode não acreditar, e tem todo o direito, mas eu não penso no dia 31 de dezembro de 2010. Não penso na minha reeleição. O presidente Lula brinca comigo. Diz: "Pára com essa conversa, Cabral". Mas eu não penso. Sou, com freqüência, pressionado por amigos, por parceiros, a incluir a lógica política eleitoral na lógica da gestão pública. Mas não dá. É evidente que, quando se aproximarem as eleições, eu poderei disputar. Mas o que quero dizer é que não estou pensando nisso ao administrar o estado.

Veja – O senhor não teme que o caixa da campanha esteja vazio quando chegar a hora?
Cabral – Não posso permitir que eu ou qualquer colaborador misture a gestão da máquina pública com visão eleitoral. Ao contrário, quando fui presidente da Assembléia Legislativa, em 1995, participei do programa estadual de desestatização. Não consigo imaginar, com toda a precariedade fiscal que eu tenho, o que seria se ainda tivesse de administrar essa bagunça. Nossa capacidade de investimento hoje é de menos de 5% do Orçamento. O ideal é que tenhamos pelo menos 10% a 15%. Não poderemos nem sonhar com isso se continuarmos com o estado pesado que temos agora. Qual o sentido de o estado administrar o Maracanã, por exemplo? Lembro-me sempre do que o ex-governador Marcello Alencar me dizia: "Meu filho, ter o poder neste estado não é nomear secretários. O poder está no portão 18 do Maracanã, meu filho". É por onde entram a imprensa e os convidados. Não dá para eu ficar administrando os ingressos do portão 18.

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