Feito para crianças, Surfista Prateado mostra uma
cena de tortura como se não fosse nada de mais
Isabela Boscov
Divulgação |
O Surfista em ação contra o Homem-Tocha: se ele não é humano, tudo bem causar-lhe dor |
Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado (Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer, Estados Unidos, 2007), em cartaz no país, é um filme talhado para a censura quase livre (aqui, ele foi classificado para maiores de 10 anos): os diálogos são limpos de palavrões, as curvas vertiginosas de Jessica Alba, a Mulher Invisível, nunca são reveladas além dos limites do decoro, e seu personagem-título, o surfista cromado que é capaz de embaralhar toda a energia do universo com sua prancha, segue o modelo Ken-e-Barbie de supressão de contornos íntimos: não tem genitais nem mamilos e seu bem-trabalhado derrière é visto, no máximo, de um pudico meio-perfil. Fraquinho que dói, o filme foi planejado como uma diversão inocente – para quem conseguir se divertir com ele. Como explicar, então, que Surfista Prateado contenha uma cena de tortura, nos moldes daquela que se denuncia ocorrer na base de Guantánamo? E, mais desafiador ainda, como explicar que a presença dessa cena, ainda que ela seja velada, não tenha dado margem a nenhum comentário nas resenhas publicadas na grande imprensa mundial, exceto por uma ou outra menção passageira?
O Surfista, segundo o enredo baseado nos quadrinhos da Marvel, não é um mau sujeito. Mas está a serviço de uma entidade destruidora de mundos – uma espécie de Bin Laden em escala cósmica –, e sua vinda à Terra é uma preparação para que o planeta seja aniquilado. Os militares americanos aprisionam o Surfista e o submetem a um interrogatório que, alerta o general responsável, envolverá a violação de direitos humanos. "Felizmente", completa o general, "você não é humano". Como provavelmente não o eram os iraquianos torturados em Abu Ghraib, na acepção de seus torturadores. Essa latitude moral ensejada pelo combate ao terror na era Bush não é, como se sabe, uma novidade no universo do entretenimento. Ela é um dado constante, por exemplo, na série 24 Horas, em que o agente federal interpretado por Kiefer Sutherland freqüentemente se vale de métodos condenáveis para – na perspectiva do roteiro – evitar catástrofes que atingiriam inocentes. Até aqui, porém, o tema se mantivera restrito aos programas para adultos. Surfista Prateado é um filme voltado às crianças. Que pareça normal, à maioria dos críticos, que ele se utilize da tortura como artifício narrativo diz mais sobre o estado da nação – ou das nações – do que todos os ensaios publicados sobre o assunto nos últimos anos.