Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 08, 2007

Pedro S. Malan Descolamentos preocupantes


O saber simular (fazer parecer aquilo que não é) e o saber dissimular (não fazer parecer aquilo que é) há séculos são considerados expressões de sabedoria política.

São três as grandes vantagens da simulação e da dissimulação - escreveu Francis Bacon há 400 anos. “Primeiramente, fingir uma oposição adormecida, e surpreender. Pois se as intenções de um homem são anunciadas, segue-se um toque de alarme, para reunir todos os que a elas se opõem. A segunda é resguardar para a própria pessoa um refúgio satisfatório. Pois se um homem se compromete com alguma declaração, ou bem ele avança ou cai. A terceira é descobrir o que se passa na mente do outro.”

Há também três desvantagens - nota o mesmo autor - “para equilibrar a questão: a primeira, que a simulação e a dissimulação costumam ter um aspecto de receio, que costuma estragar o encaminhamento de qualquer negócio. A segunda, que ambas confundem e desorientam a disposição de muitos, que talvez se dispusessem a cooperar. A terceira, e maior de todas, é que elas privam o homem de um dos principais instrumentos de ação, isto é, confiança e credibilidade”.

Belíssimo parágrafo, mas Bacon era um realista da política ele mesmo, e se revela na frase seguinte: “O melhor feitio e temperamento é ser aberto, em termos de reputação e opinião, saber ser discreto e recorrer à dissimulação na hora certa, e ter capacidade de fingir, se não houver como evitá-lo.”

Na verdade, Bacon sintetizou uma tradição milenar do realismo político, que sempre considerou que ao governante fosse lícito o que Bodin denominou “a mentira útil, como se faz com as crianças e os doentes”.

Ora, como não deixou de notar Bobbio, “a comparação de súditos (ou eleitores) com crianças e doentes fala por si só: as duas imagens mais freqüentes nas quais se reconhece o governante autocrático (ou de instintos e propensões a tal) são as do pai e do médico: os súditos (ou eleitores) não são cidadãos livres, saudáveis e responsáveis. São ou menores de idade que devem ser cuidados e educados ou doentes que devem ser curados e cuidados”.

Este tipo de político pode simular e dissimular, “tanto mais impunemente quanto mais os (eleitores) não têm à sua disposição os meios necessários para controlar a veracidade daquilo que lhes foi dito” (Bobbio).

Mas a “impunidade” ora ocupando amplo espaço no debate público no Brasil, e com toda a razão, é aquela que tanto preocupava Cesare Beccaria em seu pequeno clássico Dos Delitos e das Penas. Diz Beccaria: “Eu não encontro exceção alguma ao axioma geral de que todo cidadão deve saber quando é culpado ou inocente.” Mas há simulações e dissimulações e há delitos para os quais sociedades organizadas prevêem penalidades. O fim das penalidades, nota o autor, “não é desfazer um delito já cometido... a finalidade das penas é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo”. Para que cada pena não seja uma violência contra um cidadão privado, observa o autor, esta “deve ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcional aos delitos e ditada pelas leis”. E, em observação crucial para os dia que correm entre nós: “Mostrar aos homens que os delitos podem ser perdoados e que a pena não é sua inevitável conseqüência é fomentar a ilusão de impunidade.”

Mas por que abusei tanto da paciência do eventual leitor com considerações sobre uma seara que não é minha? Porque estamos assistindo, espero que como espectadores engajados, a um progressivo descolamento entre a “apagada e vil tristeza” em que ora está metida parte de nosso mundo político e o otimismo que prevalece em boa parte de nosso mundo econômico-financeiro. O governo atual, aparentemente, parece achar que pouco ou nada tem que ver com o primeiro aspecto. E que, por outro lado, tem tudo que ver com o favorável momento econômico, que se deveria fundamentalmente a seu tirocínio e competência.

Exatamente um ano atrás publiquei neste espaço artigo intitulado Lula, o PT e suas heranças - 2002 a 2006. Discuti ali a herança, por eles construída, com que chegaram às eleições de 2002 e a gradual desconstrução desta herança, processo timidamente iniciado em fins de junho de 2002. E ainda não concluído, porque há sérias divisões e ambigüidades não resolvidas no PT e no próprio governo e nas forças que o apóiam, como mostra a experiência pós-Palocci. Em particular no que diz respeito à forte expansão recente do gasto público corrente e às constantes pressões políticas por sua contínua expansão a taxas muito superiores ao crescimento da economia.

Neste contexto, há limites para a continuidade do atual descolamento entre o mundo da política e o mundo da economia. Afinal, estamos falando do mesmo país. Um país que se beneficia, há cinco anos, de uma situação internacional extraordinariamente favorável (como não se via há décadas); de uma política macroeconômica não-petista e de uma herança não-maldita de mudanças econômicas e institucionais e de programas sociais iniciados por administrações anteriores - um processo que deveria ter continuidade em qualquer governo, como teve.

O ex-ministro Antonio Palocci sempre teve a honestidade intelectual de reconhecer estes fatos. Essa postura parece estar em declínio. O atual presidente do BNDES, por exemplo, declarou em palestra recente que foi “extremamente precário o esforço de consolidação da economia na época do Plano Real. Quase uma falsa estabilização. Apenas a partir de 2005 a economia brasileira alcançou uma estabilização definitiva.” A declaração surpreendeu muitos que o tinham como pessoa sensata, serena, madura e equilibrada, ao se expressar com inusitada arrogância, pretensão e particularmente infeliz escolha de palavras. Há limites para descolamentos, inclusive os deste tipo.


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