A cada ciclo político, no Brasil, renascem as esperanças. “Desta vez, a coisa vai” é a expressão geral. Na linha do horizonte, uma cordilheira de reformas, avanços, mudanças. Passamos pelos ciclos do pau-brasil, açúcar, ouro, diamante, borracha, algodão, laranja, café. Na ditadura getulista abrimos as frestas do desenvolvimento, mas fechamos as portas da liberdade. Com Juscelino o País plantou a semente industrial no Sudeste. A ditadura de 1964 fez o “milagre econômico”, mas desfez o ideário da liberdade. Sarney reinaugurou tempos de liberdade. Collor acenou com a modernidade, mas caiu de podre. Itamar/FHC fincaram as bases da moeda forte, mas a política patinou na mesmice. E aí aparece o redentor da Nação, Luiz Inácio, vindo lá de baixo, promessa das promessas, esteio de esperanças renovadas. E o que acontece? Festejamos a fartura do petróleo, da soja e do agronegócio e estamos inaugurando a era do etanol. Tudo como no passado. Saltos e quedas, idas e vindas, economia forte, política fraca e vice-versa. Ufanismo, riquezas mal aproveitadas, velhos costumes, política anacrônica.
Qual a razão da introdução? Dizer que o Brasil é o país do eterno retorno. Lula, um dos mais poderosos presidentes da República, afunda-se, a cada dia, no buraco do status quo. Com cacife de sobra, molda o País para perpetuar o poder. Não admira que pesquisa encomendada pelos tucanos aponte: 58% dos entrevistados apóiam um terceiro mandato para ele. A idéia é rejeitada por ele. Por enquanto. Sabem quem ganha mais com a crise? Ele. Se o País exibe pujança econômica, é porque está sob o piloto automático. A lama moral que a cada dia enche as páginas do noticiário com levas de trânsfugas arrasta para o fundo do poço a estrutura institucional da Nação. Luiz Inácio, porém, disso se beneficia. Vejamos. O trem do presidencialismo de coalizão, lotado de vagões desde o ciclo FHC, alcança, hoje, o tamanho máximo. O Executivo legisla, executa e distribui recursos e cargos a partidos débeis. Agora, o paradoxo: porta-voz das mudanças e ícone da liberdade, Lula, com seu jeito de ser, reforça o autoritarismo herdado de 64.
Quem tem dúvidas que examine o figurino da administração, dividida em cinco áreas: a econômica, intocável, com um bem-sucedido programa liberal no vácuo da boa situação internacional; a social, sob a responsabilidade principal do PT, alimentador da base da pirâmide com o programa Bolsa-Família, que acaba de receber aumento de 18,25%; a de serviços e infra-estrutura, repartida entre siglas aliadas e fatias do petismo e matriz das benesses; a dos controles e investigação, onde estão os aparatos da Polícia Federal com operações espetaculosas e ações da Controladoria-Geral da União, voltadas para a imagem do Estado protetor e da ética; e a de representação do Estado e comunicação com as massas, à qual ele mesmo se dedica com afinco, produzindo o mais gordo acervo de autolouvações da República. Por gostar mais desta última e deixar as outras sob alguns comandos, difunde-se o dito: Lula reina, mas não governa. Como lembrete, a exigência às autoridades para encontrarem a solução para o apagão aéreo. Isso foi há nove meses.
O desenvolvimento social, não há dúvidas, deu frutos. Contingentes de assalariados ascendem social e economicamente. Multiplicam-se os canais e núcleos de intermediação com a proliferação dos movimentos sociais. A população de baixa renda se torna a maior clientela do Estado, sustentada por bolsas que beneficiam 45 milhões de pessoas. Com esse trunfo Lula reforça o arsenal para deitar e rolar. Vitamina núcleos de movimentação social com substantivos recursos, criando forças centrípetas de defesa. E passa a preencher os espaços dos políticos. O trem parlamentar, no despenhadeiro, impulsiona sua locomotiva. Vale lembrar que o corpo de representantes, nos últimos tempos, ganhou mais perfis do meio e da base da pirâmide social, quebrando a hierarquia do topo, o que também beneficia o presidente. No Congresso nascem e renascem as crises, entre elas a do Senado, a mais aguda da contemporaneidade. Não se pense que a renúncia de Joaquim Roriz ou o eventual afastamento de Renan Calheiros da presidência da Casa darão tintura nova à cúpula rachada. A Câmara dos Deputados, de onde se esperava a ansiada reforma política, encomenda seu velório. Quanta decepção. Ali a política anda como caranguejo, para trás e para os lados. Para fechar o circo dos horrores, parte do corpo está sob suspeita: 63 parlamentares eleitos respondem a processos na Justiça.
E o Judiciário? Recebe a sobra das denúncias de compra de pareceres e cooptação de juízes. Membros da Corte Eleitoral foram acusados de ter recebido propina de Roriz. O STF não deu andamento à denúncia dos 40 envolvidos no esquema do mensalão. Passa a imagem de paquiderme em estado febril. O que fazer? Ora, cumprir rigorosamente o dever. Luiz Inácio, todo-poderoso, não consegue fazer cumprir as ordens. Os aviões continuam trombando em terra. O comandante do Congresso Nacional, Renan Calheiros, flagrado em impedimento, resiste a sair da arena de lutas, mesmo sob os apupos gerais. Jogo parado, Parlamento inerte.
Os governos, ensina Karl Deutsch, são justos ou injustos, legítimos ou ilegítimos, não apenas pela forma como galgaram o poder, mas pela forma como atuam. E, se ações e omissões dos três Poderes violam os valores básicos que os inspiram, sujeitam-se ao imperativo de Santo Agostinho: “Um governo sem justiça é um grande roubo.” A política, no século 19, foi definida como a arte do possível. Ao político cabia saber o que podia ser feito em qualquer tempo e lugar, que leis e comportamentos as pessoas iriam aceitar e que atos legítimos e hábitos poderiam ser desenvolvidos para receberem o apoio da sociedade. O articulista desta página Fernando Henrique, avançando no conceito, defende que a política deve ser a arte de fazer possível o necessário. Ora, no Brasil, não se faz nem o possível nem o necessário.