Foi difícil ler jornal a bordo ontem. A dor dilacerante das famílias, as fotos da tragédia não eram um bom antídoto ao medo sentido no silêncio dos passageiros. Os jornais não foram distribuídos e, no meu solitário exemplar, fiz uma escolha na decolagem: ler o texto de Dorrit Harazim sobre Rebeca Gusmão; duas campeãs. O texto, exato como as braçadas de Rebeca, ajudou-me a decolar.
Escrevo a bordo, em mais um vôo por este país, que, como avisa a tatuagem no braço da nadadora, é gigante pela própria natureza. Nele, voar é indispensável. O tema não é um bom companheiro de vôo, mas é assunto inevitável: a crise que já produziu as duas piores tragédias da aviação brasileira.
O vôo entrou numa área de turbulência. Rotina. O serviço foi suspenso. Normal. Os silenciosos passageiros devem estar pensando nos bons votos que ouviram no embarque, dos que ficaram: — Vai com Deus.
— Vai dar tudo certo, fica tranqüilo.
— Liga quando chegar.
Assim se voa no Brasil atualmente, como um ato de coragem. Ficou mais inseguro voar. Os tripulantes devem estar mais tensos, os pilotos com visão mais aguda sobre os limites das aeronaves.
Outro dia, num vôo, encontrei o piloto do lado de fora da cabine.
— Prefiro te ver lá dentro, comandante — disse eu.
— O avião não precisa mais de mim, faz tudo sozinho — respondeu o piloto.
Os computadores são absolutos até que o relativo acontece. Mas a reflexão relevante a fazer diante da Tragédia II não é o erro específico, que demorará a ser descoberto, mas, sim, o panorama geral.
A crise está instalada há 10 meses e, até agora, o governo não tinha pensado em trocar ninguém. Até a segunda tragédia, manteve toda a equipe, confirmou indicados políticos em cargos técnicos, insistiu no quadro mostrado ontem pelo GLOBO: vários anéis burocráticos retalham o comando do tráfego aéreo e ninguém sabe quem manda.
A cada evento importante, escolhe-se um culpado. Agora prepara-se a crucificação de Congonhas. O aeroporto é fundamental, mas quando virou um dos dois únicos hubs do Brasil — junto com Brasília — ficou sobrecarregado.
O sistema hub spoke elege pontos que recebem os vôos e os redistribuem como uma roda de bicicleta com seu centro e aros. O aumento do tráfego fez o mais importante pivô da aviação ficar estrangulado.
O sistema é interligado; um atraso num ponto provoca atrasos em todo o país. Esse sistema é eficiente, mas operá-lo é complexo, e ele exige hoje mais de Congonhas do que o aeroporto pode dar. Em vez de condenar Congonhas, melhor cuidar do sistema de hubs.
É urgente despolitizar as agências que comandam o setor. A Anac não pode ser o amigo da ministra Dilma Rousseff, a amiga do ex-ministro José Dirceu e o exdeputado Leur Lomanto.
Estamos numa emergência que já provocou muito desgaste e duas tragédias. Hora de apurar a precisão técnica dos órgãos que lidam com o problema.
Meu avião passa por nova área de instabilidade e a tripulação pede para todos continuarem de cintos atados.
O apagão de energia foi provocado pela imprevidência do governo Fernando Henrique. A diferença foi pela reação rápida à crise sob a gerência de Pedro Parente. Ele se cercou das pessoas certas, do sentido de urgência e deu várias más notícias à população: aumento de preços, consumo limitado. Resultado: produziu uma sobra enorme no sistema energético.
O vôo seguia tranqüilo, os passageiros voltaram a conversar; olhei para fora, o sol iluminava o recorte do litoral brasileiro. A turbulência parou.
Começamos a relaxar.
Mas a tripulação avisou, pela terceira vez, que todos deviam continuar sentados e com cintos atados. Minutos depois, novas sacudidas.
Manter-se alerta e precaverse nos momentos em que o céu parece de brigadeiro.
Faltou isso nesta crise aérea.
Sempre que ela melhorou, o governo anunciou a volta à normalidade. Devia ter trabalhado para aperfeiçoar o sistema, encontrar as falhas, corrigi-las, prevenir futuros problemas. Tratou cada evento como se ele fosse isolado do panorama geral.
A crise afeta a economia, como disse ontem. Aborta investimentos, arremete investidores, queima produtividade, aumenta o custo logístico.
A carga aérea é pequena em volume, mas de produtos de maior valor, delicados e perecíveis. Celulares mandados de navios encurtam 30 dias sua já curta vida útil e podem perder mercado para o competidor nas lojas. O Brasil passará a ter carga mais cara; não será apenas fornecedor de minério de ferro e soja. O upgrade nos produtos exportados exigirá mais do transporte aéreo. O aumento da renda aumentará o fluxo de passageiros. Tudo leva a mais, e não a menos, pressão sobre o sistema. Na crise energética, o incentivo ao controle do consumo fez os brasileiros devolverem ao sistema de energia o equivalente às duas hidrelétricas do Rio Madeira. Na crise aérea, é mais difícil.
O país precisa de investimentos pesados em sistemas eletrônicos de controle de vôo, planejamento eficiente da logística aérea, atuação técnica das agências do setor, investimento na infra-estrutura, mais controladores de vôo e confiança dos usuários do sistema. Do contrário, cada vôo, em vez de rotina, será visto como risco, um ato de bravura de cada passageiro.
Vamos pousar, torço pelas ranhuras da pista.
Entrevista:O Estado inteligente
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