O Estado de S. Paulo |
20/7/2007 |
Duzentas pessoas estão mortas, duzentas famílias choram suas perdas, a maior cidade brasileira convive com os escombros à margem de uma de suas avenidas mais movimentadas, o País está aturdido com a tragédia de dramaticidade acentuada por ter sido anunciada e o cidadão que, embalado pelos números de pesquisas, se pretende a síntese do Brasil tira o corpo fora. Ontem, 48 horas depois do segundo sinistro aéreo gravíssimo em 10 meses de exposição do colapso do setor aéreo, o presidente Luiz Inácio da Silva ainda examinava a conveniência de se dirigir à Nação hoje, quatro dias depois. Em ocasiões de comoção, autoridades com um mínimo de consideração para com seus compatriotas costumam aparecer de pronto em público, sem pesar nem medir se isso lhe renderá benefícios ou malefícios políticos. Esse gesto mínimo o presidente da República ontem ainda devia ao País, a São Paulo, às famílias, aos mortos. Seja para uma explicação a respeito do ocorrido, seja para uma palavra além da nota formal de consternação, seja para demonstrar interesse em algo além do culto à própria personalidade, seja para preencher o silêncio indolente e covarde da instância do poder público responsável pelo tráfego aéreo, seja para corrigir o rumo das estultices ditas por quem falou. No dia seguinte ao desastre, o presidente da República de objetivo só fez livrar-se do desconforto de um terçol no olho direito, após o que descansou. Até o início da tarde de ontem, a única voz palaciana a se pronunciar havia sido a do ministro das Relações Institucionais, Walfrido Mares Guia, para pedir prudência para com “julgamentos apressados”. Ato contínuo, julgou: “Não é culpa do presidente nem de ninguém, a não ser de quem estava pilotando, se o desastre tiver ocorrido por falha humana.” Do presidente a quem se confere o atributo de fenômeno andante - mas sobretudo falante - nem um reles telefonema de solidariedade ou oferta de auxílio aos governadores José Serra, de São Paulo, onde não conseguiu aterrissar o avião , e Yeda Crusius, do Rio Grande do Sul, origem de vôo e de boa parte das vítimas. Quando em campanha eleitoral, no ano passado, o presidente da República não perdia uma única oportunidade de fazer publicidade em torno de suas reiteradas ofertas de “tropas” para auxiliar no combate à violência nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Agora mesmo, quando 20 pessoas foram mortas no complexo do Morro do Alemão, no Rio, Lula de pronto manifestou-se ao governador Sérgio Cabral. Lá, durante a campanha, pretendia mostrar-se como contraponto de eficiência diante de dois governos adversários: o de Geraldo Alckmin, ocupado por Cláudio Lembo, e o de Rosângela Matheus, do clã dos Garotinho. Aqui, teria tido alguma influência em seu silêncio - indolente não denotasse pusilanimidade pura e simples - o fato de os governadores Serra e Crusius pertencerem a um partido de oposição? Tudo indica que sim, se acrescentarmos ao silêncio sinais de que o governo federal busca jogar o problema no colo das autoridades paulistas quando, de forma sub-reptícia, divulga a existência de um laudo inexistente de instituto ligado à Universidade de São Paulo atestando as condições perfeitas de uso da pista principal do Aeroporto de Congonhas, onde o piloto do Airbus da TAM não conseguiu aterrissar. Que o presidente da República tem predileção por situações favoráveis e horror físico às desfavoráveis, diversos episódios ao longo dos últimos cinco anos já demonstraram sobejamente. No último, recusou-se a declarar abertos os Jogos Pan-Americanos por contrariedade com as vaias no Maracanã. O que não se sabia, porém, é que o homem que preside o Brasil se deixaria tomar pelos mesmos sentimentos de mesquinhez auto-referida em situação de tragédia nacional. Omitiu-se ao longo dos primeiros meses da crise, bravateou no restante deles e, quando sobreveio o desastre, escondeu-se. Preocupado apenas - isso transpareceu em todos os movimentos originários do Palácio do Planalto - com a repercussão política do fato sobre sua popularidade. Sua imagem era o centro da aflição. Tanto que a reunião de ontem de manhã foi com a coordenação política, para avaliar como contornar os obstáculos e reduzir o risco de danos nas próximas pesquisas. Estas sim o termômetro das ações do Palácio do Planalto, que trata como cidadãos de segunda pessoas que supõe sejam de primeira classe porque viajam de avião, lêem jornais, compram ingressos para ir ao Maracanã, vivem do trabalho, não estão entre o público alvo das esmolas oficiais, não vêem os governantes como benfeitores a quem se deve reverência e gratidão e acham que nunca antes neste país um governo desdenhou de tantos durante tão longo tempo com tal grandiosa desfaçatez. A frase original é de Millôr Fernandes e trata da fronteira da ignorância, mas pode ser adaptada à circunstância: na crise, o governo chegara ao limite de sua capacidade de omissão. E, no entanto, prosseguiu. |
Entrevista:O Estado inteligente
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