Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 14, 2007

Lya Luft


Errata de pé de página

"Por todas as vezes em que desviamos o olhar
lúcido ou recolhemos
o dedo denunciador,
pagaremos um alto preço, durante um tempo
incalculavelmente longo. E não haverá erratas"

A vida deveria nos oferecer um lugarzinho no rodapé da nossa história pessoal para eventuais erratas, como em tese de doutorado (as que não são plágio). Pelas vezes em que na infância e adolescência a gente foi bobo, foi ingênuo, foi indesculpavelmente romântico, cego e teimoso, devia haver uma errata possível. Como quando a gente acreditou que se fosse bonzinho ganharia aquela bicicleta; que todos os professores eram sábios e justos e todas as autoridades decentes; e quando a gente acreditou que pai e mãe eram imortais ou perfeitos. E que aquele namorado não estava saindo com a outra menina, e a melhor amiga não contaria nossos segredos.

Devia haver erratas que anulassem bobagens adultas: botei fora aquela oportunidade, não cuidei da minha grana, fui onipotente, perdi quem era tão precioso para mim, escolhi a gostosona em lugar da parceira alegre e terna; fiquei com aquele cara porque com ele seria mais divertido, mas no fundo eu não o queria como meu amigo e pai de meus filhos. Ofendi aquela pessoa que me faria bem e corri atrás de quem logo adiante ia me passar uma rasteira. Profissionalmente não me preparei, não me preveni, não refleti, não entendi nada, tomei as piores decisões. Ah, que bom seria se essas trapalhadas pudessem ser anuladas com uma boa errata. Em geral, não podem.

Devia haver uma errata para quando, com mais de 60 anos, tendo visto, lido e vivido bastante coisa neste mundo, a gente ainda banca o bobão, achando que agora, sim, alguém tomou as rédeas nas mãos, até o presidente exigiu, imagina se não vão dar bola pra ele, como escrevi no artigo passado, achando que a vergonheira nos nossos aeroportos estava acabando. Ainda bem que deixei aquele espaçozinho para o "sabe-se lá o que vai acontecer no breve intervalo entre escrever esta coluna e ela ser publicada". Porque exatamente nesse intervalo amigos meus ficaram sete horas fechados num avião, na pista, e depois foram obrigados a desembarcar. A polícia foi chamada, não para prender os responsáveis, mas para tirar de lá os maltratados passageiros. Um conhecido meu dormiu no chão de um aeroporto com a mulher e duas filhinhas, e lá passou 24 horas. As autoridades continuam sem autoridade, todos parecem baratas tontas, e não dá para saber se é por incompetência mesmo ou se por trás de tudo existe algum jogo sinistro que é melhor nem conhecer.

E os ditos responsáveis, que nem se sabe quem são, não fazem nada. Muitas reuniões, palavras, mentiras e desmentidos, e nada. Não entendo nossa passividade, eu que sou uma pacífica e amo a paz. "Por que todo mundo não sai por aí quebrando tudo?", me perguntou outro dia um menino de 18 anos. "Quebrar tudo não é o jeito", respondi, mas fiquei desconfortável.

Minha esperança (tenho uma boa reserva delas) é que pessoas começam a reagir também fora do grotesco drama dos aeroportos. No Senado, a dança dos escândalos vai-se tornando tediosa e nas ruas tarados filhinhos de papai agridem mulheres sozinhas de noite, mas estão presos, espero que por muito tempo. Começam a aparecer corajosas testemunhas, quase sempre pessoas modestas. Para compensar o pai de um agressor pedindo que não se prendam "essas crianças que estão na faculdade", o pai de uma das vítimas, homem simples mas honrado, diz que os pais desses jovens não sabem o que acontece fora da porta da casa e não dão limites. Outros meninões, aliás globetes, fazem farra em grupos, espantam-se de ter incluído travestis, maltratam todo mundo e, no fim, jogam uma pobre moça (e daí se é prostituta? Muita menina enturmada que não cobra pela sacanagem se porta de modo bem pior) do carro. Mas havia de novo uma testemunha, que confirmou a história.

Então, alguém começa a fazer alguma coisa. Alguém, muito aos pouquinhos, se sente responsável e fala. Alguém mostra que não podemos aceitar o que acontece nas ruas, nas casas, nos transportes aéreos, nos ministérios e no Senado, na vida em geral – e que só reclamar não adianta. É preciso denunciar, testemunhar, expor-se, mesmo correndo perigo de sentir-se isolado.

Ainda que o clima geral seja de euforia imediatista, há situações gravíssimas, claras ou ocultas, nos mais diversos territórios da nossa vida, que merecem mais do que breve pensamento e falam de um evidente apagão moral. Por todas as vezes em que desviamos o olhar lúcido ou recolhemos o dedo denunciador, pagaremos – talvez num futuro não muito distante – um alto preço, durante um tempo incalculavelmente longo. E não haverá erratas. Ou será que eu estou apenas precisando de umas feriasinhas em Pasárgada, para achar graça de tudo e parar de me preocupar?

Lya Luft é escritora

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