Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 14, 2007

MILLÔR

Palhares
era realmente canalha?

Há alguns anos recebi esta carta comovida, procurando desfazer "equívoco" sobre conhecido personagem de Nelson Rodrigues: "Palhares, o cunhado canalha" (como se todos não fossem). Não publiquei a carta achando que podia ser apócrifa. Mas hoje, quando a internet consagrou a apocrifidade (Houaiss), botando nosso nome em artigos alheios e textos alheios com nosso nome, aqui vai a carta.

Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1999. Caríssimo amigo,

Ao vê-lo, participando de almoço com José Lino Grünewald e Pedro do Couto, vieram lembranças de meu passado, quando ia com minha mãe ao seu estúdio. E voltou a culpa, por fato ignorado por todos, não fosse a versão feita pela pena mágica de Nelson Rodrigues.

A repercussão dessa versão causou o martírio de um inocente, admirável criatura que, devido a ocorrência da qual participei, foi lançada à execração pública, pecha da qual, por cavalheirismo, jamais se defendeu.

Agora pretendo revelar o que ocorreu na tarde fatídica, a partir da qual um homem de caráter sem jaça virou paradigma da abjeção, canalha que não respeitava nem as cunhadas.

Se não lembra: sou Nanete, filha de Isaura Nogueira Sande, que o conheceu quando era rapaz, mas já conhecido jornalista. Eu era uma figura juvenil, tipo "mignon", corpo de curvas tentadoras, o que atraía o olhar de gula dos homens.

"Bem-feita", para os respeitosos, "gostosa", quando passava na rua. Clara, alourada, era em meu olhar que as pessoas identificavam minha sensualidade.

Minha mãe percebeu logo meu poder de atração e me mantinha reclusa, me escondendo em vestidos enormes, que escondiam meu corpo. Roupa justa, nem pensar. Mas foram esses cuidados que ativaram em mim a arte da sedução que passei a exercitar sempre, excitando o interesse masculino, onde quer que estivesse. E eu estava no auge quando Ofélia, minha irmã, e Palhares se casaram.

Do meu cunhado recordo sempre o carinho fraternal mas também o distanciamento respeitoso. Sempre se esquivava de beijos e abraços. Era desligado de tudo que não fosse sua devoção a Ofélia. Isso, claro, excitava minha vaidade.

Depois os dois foram morar em nossa casa, no quarto antes de meus pais, ao fundo do corredor do andar superior. Os quartos tinham porta de comunicação, mantida fechada, mas com bandeiras, com vidros nunca colocados. Em conseqüência, toda noite os sons da faina amorosa emprenhavam meus ouvidos. Minha imaginação tirava Ofélia dos braços de Palhares e punha-me, sôfrega, em seu lugar.

Então cruzamos no estreito corredor que dava acesso aos quartos. O espaço de passagem estreitava, no meio, por uma velha arca. Se duas pessoas saíssem das extremidades do corredor, uma devia esperar a outra ultrapassar a arca. Interagiram então a distração dele e o meu oportunismo.

Logo escorregávamos um sobre o outro. O rápido contato ateou em mim o incêndio. Palhares, no entanto, sem mostrar emoção, só pedia desculpas por me atrapalhar. Inocente Palhares!

Passei a forçar o encontro. Na passagem, eu forçava a lentidão. Em Palhares havia, de início, apenas espanto. Mas logo ligeiro rubor coloria a morenice de seu rosto. Até aparecer a cumplicidade do pijama que se avolumava e escorregava por minhas coxas, e semipenetrava minhas costas, que lhe oferecia, sentindo-o percorrer as duas metades da topografia de minhas carnes implorando pela continuidade da ação.

Tudo sem diálogo. Apenas a respiração se apressava. A audição, entretanto, desaparecia. O que só percebemos na tarde sinistra. Não ouvimos os passos de Ofélia subindo a escada. E ela surgiu no corredor no exato instante em que, impulsionada pelo desejo incoercível, enlacei Palhares e pespeguei o beijo arquitetado na loucura da longa espera.

Mas o que Ofélia viu, naturalmente, foi a fúria do Palhares, estuprando a irmãzinha indefesa. Seus gritos mobilizaram toda a casa. Acorreram minha mãe, dois primos em visita e as duas empregadas, todos testemunhas da ação infame do cunhado canalha.

Mas Palhares permaneceu calado, não esboçou nenhuma defesa, o que fez dele, aos olhos de toda a família, um sátiro homérico (coisa do Nelson). Apenas minha mãe via a cena com outros olhos. Enquanto Palhares era escorraçado pela porta da rua, ela fixava em mim olhar inequivocamente reprovador. Mas nada disse. Ofegava como em suas piores crises. Meses depois morria.

Daí vivi o tormento de lidar com minha culpa. Minha mãe morta, sem ter-me dado perdão, Palhares, o inocente, enxovalhado, e eu, causa de toda a tragédia, protegida pela piedade de todos. Tanto se falou na família, na rua, no bairro, da abjeção de Palhares que a coisa chegou aos ouvidos de Nelson, que logo o consagrou como "Palhares, o canalha que não respeita nem as cunhadas".

Hoje, prezado amigo, já fenecidos meus encantos, restrinjo minha vida ao lar e à família. Já sou avó, mas não encontro alívio para o peso em minha consciência. Por você suplico a todos que façam justiça, com a divulgação desta minha confissão.

Espero, caro, contar com a sua compreensão por esta minha ousadia. Antecipo minha gratidão pela recuperação do caráter e, quem sabe, da alma do Palhares. Que morreu em junho do ano passado. Fui ao enterro, disfarçada pela idade.

Nanete Nogueira Sand

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