Deve haver alguns entre vocês que ainda se lembram do tempo em que se falava em reformas de base. Era até meio moda intelectual falar-se nas reformas de base. O sujeito nem sabia direito o que eram as reformas de base, mas, nas boas conversas em sociedade, se manifestava, ainda que muitas vezes moderadamente, a favor das reformas de base. 'Claro que, sem as reformas de base, nada poderá ser feito', concluía-se judiciosamente qualquer pensamento sobre a realidade nacional.
Mais tarde, com o fim do governo João Goulart e a instalação do regime militar, as reformas, não sei bem por que, foram deixando de ser de base. Talvez a expressão tenha adquirido má reputação em círculos poderosos e muitos, naqueles tempos delicados, com certeza consideravam melhor para a saúde não falar em reformas de base. Mas as reformas não foram embora e continuaram a parecer necessidades a serem enfrentadas de qualquer jeito, se quiséssemos um país relativamente desenvolvido e decente para com os que o sustentam.
O dr. Fernando Henrique, até hoje me lembro muito bem, só falava em reformas, logo depois que tomou posse da primeira vez. E daí partiu para não reformar nada, muito antes pelo contrário e tudo entremeado de explicações que acabaram não explicando nada. Dois anos com o gogó habitual em nossos governantes e sem reforma nenhuma, ele se obsediou com a única verdadeira reforma que fez: a constitucional, que lhe daria direito a reeleição. O homem só queria saber de reeleição e não foi pouco o que o noticiário da época se ocupou dos acordos que ele fechava para garantir sua permanência no poder.
Depois, é claro, a bandeira reformista ficou com a oposição. A oposição, capitaneada pelo presidente atual, iria fazer todas as reformas. Estava tudo errado e ela, subindo ao poder, ia consertar. Só não se falou em reforma moral e ética, até porque tanto o candidato como o seu partido já representavam o que de mais alto havia nesse departamento. Mas iam reformar tudo de cabo a rabo, a começar por essa indecência de governar através de medidas provisórias, como se isto aqui ainda fosse o Estado Novo. Talvez - quem sabe? - até mostrando o exagero das viagens de dr. Fernando Henrique, toda hora em Paris, Nova York ou não se sabia onde mais, em vez de ficar aqui, encarando a administração do dia-a-dia.
Bem, é preciso ser muito religioso, mas muito religioso mesmo, para achar que houve ou está havendo alguma reforma. As medidas provisórias, por exemplo, estão mais abundantes do que nunca e, quanto a viagens, tenho certeza de que o presidente já convidou o Romário para juntos comemorarem o milésimo vôo no Aero-Lula. Não se fala mais nem em reforma agrária, que tinha status especial entre as reformas de base, chegando mesmo a parecer que, nominalmente, todo mundo era a favor, embora diferindo em pontos que até descaracterizariam uma verdadeira reforma agrária. Mas a favor todo mundo era e ela não saía de pauta.
Contudo, desapareceu, como todas as outras. O gogó funcionou ativamente outra vez, mas não saiu nem reforma agrária, nem reforma política, nem tributária, nem administrativa, nem educacional, não saiu reforma nenhuma e agora cai-me cá a ficha: é que não tem mais essa de reforma, isso é coisa do passado. Claro, a oposição e seu candidato mentiram, quando prometeram reformas e mudanças para melhor. Mas hão que ter mentido para o nosso próprio bem (eles sabem tudo o que é para o nosso bem, inclusive agora, novamente, ao que devemos assistir e, daqui a pouco, ler) e vamos convir que esse negócio de reforma dá despesa, trabalho, briga e muita aporrinhação.
Claro, também é natural que alguns dos que esperavam reformas e mudanças e votaram por elas tenham ficado desapontados com o que aconteceu desde o começo. Mas o desapontamento tem limites e não pode chegar a esse ponto voluntarioso e infantil. Vamos amadurecer e ver a realidade como ela é. Aceitar os fatos, lembremos, é a melhor maneira de nos ajustarmos confortavelmente à realidade. E o fato é que não tem mais essa de reforma, reforma só se for bancária, para dar logo aos bancos título sobre tudo o que possuímos.
A reforma é a ótica do passado. A Era Lula - caiu mesmo a ficha - é a Grande Era do Vá se Acostumando Porque é Assim Mesmo, é a era do status quo. Não mudam os costumes políticos (ele mesmo já tinha dado a dica, na célebre entrevista de Paris), desde os conchavos imorais ou ilegais até o empreguismo desenfreado, com a criação generosa de empregos públicos para quem precisa ser premiado ou mantido nas hostes. Não muda nada e, portanto, não há o de que reclamar.
Quanto a ele, está agora no melhor dos mundos. Governa sem oposição e trafega alegremente em meio à bandidagem que o circunda, viaja, solta uma medida provisória aqui e ali, engana os bestas em reuniões internacionais com poses de socialista e paladino dos trabalhadores. Quanto aos votos, comprou-os também alegremente através dos 'programas sociais' e navega tranqüilo num oceano azul de popularidade. Se houver um plebiscito hoje, para saber se o declaramos presidente perpétuo, não duvido nada que ele ganhasse folgado e, portanto, ainda há um elemento de despeito em quem se acha muito sabido, enquanto o povo gosta é dele.
Pergunto agora eu a vocês: quem é que está certo, ele ou quem discorda? Dizia um professor meu: 'Quem está certo é quem está se dando bem.' Sábia verdade, que os fatos só fazem confirmar. Não reforma nada aí. Quem quiser que também se faça na vida e, enquanto isso, o choro é livre e o relaxogozismo é recomendado.