Pensar duas vezes, uma a favor, outra contra, ainda não é pensar.
O comentário pode vir com um gesto de repúdio, 'Ah, que coisa chata', e normalmente vem de alguém que nem sequer teve um pouco de paciência para ler, ouvir ou ver o tal do 'clássico', palavra que para ele vem recoberta de sebo e poeira. O pior dessa atitude não é o desconhecimento, mas a certeza de que aqueles que gostam desse tipo de coisa - livros, pinturas e composições anteriores ao nosso nascimento, tidos como 'alta cultura', mesmo que um dia tenham entretido todas as classes sociais - ou são incapazes de curtir o divertimento moderno ou vivem numa esfera à parte, como uma confraria de privilegiados. Nada disso. Se há um único motivo para consumir as grandes obras do passado, esse motivo se chama prazer.
Acadêmicos e seus porta-vozes acham absurdo que se fale assim dos autores que eles passam a vida estudando, na maioria dos casos sem realmente entender e apreciar. O saber, para eles, é algo grave e pedante; deve ser sempre mediado por eles, os 'doutos', que fazem seus alunos lerem toda a bibliografia secundária em vez de terem uma relação direta e livre com a obra. É um escândalo para eles que se diga, por exemplo, que 'ler Nietzsche me divertiu muito na juventude'. Por sinal, há quem também considere absurdo sugerir a menores de 21 anos que leiam nomes assim - ou Dostoiévski ou Guimarães Rosa - porque adolescentes não teriam capacidade para tanto. Atrás de todo populista há sempre alguém que despreza o ser humano de modo cabal.
O que acho mais engraçado é que essas pessoas transferem sua própria dificuldade com tais obras - ou porque se levam a sério demais, ou porque não se levam nada a sério - ao restante das pessoas, como se todos fossem iguais. Lembro mais uma vez aquela pesquisa feita em Belo Horizonte em que a maioria dos entrevistados dizia que filme de Steven Spielberg não é cultura, que cultura é aquela enorme estante de livros à qual não tem acesso. Conheço pessoas 'cultas' que concordam... São as mesmas que se espantam quando algo de muita qualidade faz sucesso, ou não acreditam quando vêem, digamos, um concerto de música 'erudita' (outra palavra com cheiro de velha) atrair muita gente num parque ou numa favela.
Outra besteira é supor que o estudo da tradição implica uma ideologia, como o conservadorismo ou o elitismo. É claro que existem pessoas que fazem tal confusão, como analisa Edward W. Said em seu livro póstumo, Humanismo e Crítica Democrática (o outro, On Late Style, também é muito interessante). São os que, a exemplo de Harold Bloom , vêem o conjunto dos clássicos como um 'cânone', como uma catedral de obras sagradas, que faz da estética uma religião e dela exclui o que não é eurocêntrico. Mas o verdadeiro humanismo é liberal, ou seja, não conservador, pois se trata da releitura crítica e constante dessa tradição, a qual deve antes ser renovada do que 'respeitada'.
Said lembra como Shakespeare e Dickens foram populares em seu tempo; lê-los hoje, portanto, não pode ser com o 'caráter paroquial' e impositivo dos que só aceitam uma forma de civilização e progresso. Acho apenas que Said menospreza o contexto cultural em que críticos como Bloom e Saul Bellow ('Mostre-me o Proust zulu') saíram em defesa dos clássicos: a voga de demonizá-los como plataformas de uma visão racista, machista e passadista - o que também é unificá-los pelo preconceito. (Do mesmo modo, o 'orientalismo' que Said denunciou tem sua contrapartida: o reducionismo do Oriente a respeito da cultura ocidental.) Mas no ensaio sobre Mimesis, de Eric Auerbach, Said vai ao ponto quando defende seu método independente e sua mistura de gêneros na luta para 'compreender o sentido de algo que desafia a compreensão comum'.
Auerbach, como Ezra Pound (antidemocrata na política, mas abertíssimo na crítica), Octavio Paz (estudioso de culturas como a chinesa e a indiana) ou Kenneth Clark (autor de Civilização, principal influência sobre o trabalho de Robert Hughes) são guias humanistas para a tradição literária, pictórica e musical, e como tais merecem mais o tempo do leitor do que todos os professores universitários brasileiros somados. Como dizia Said, é preciso uma mentalidade amadora e subjetivista, no bom sentido, ao entrar nessas criações que, de tão repetidas e distorcidas, terminam afastando as pessoas. Num país como o Brasil, em que a 'alta cultura' é tão rarefeita (basta ver na seção Antologia Pessoal deste caderno o que artistas e escritores de renome confessam não ter lido, ouvido ou visto), só temos ignorantes ou professorais.
Um sinal de que Montaigne, Rembrandt ou Beethoven - ou livros sobre Darwin, Newton ou Einstein - são fontes de prazer, antes e depois de tudo, é o fato de que sempre que se volta a eles há uma descoberta, não a saturação; os 'gênios', afinal, são os sujeitos cujas obras transcendem seu tempo. Se não desse prazer, por que reler? Se alguém contar que se delicia com James Joyce até em DVDs no carro (como trechos de Ulisses lidos pelo extraordinário Jim Norton), causa perplexidade ou desconfiança. Meu único pensamento diante disso é: 'Vocês não sabem o que estão perdendo.' Nem toda a caretice modista do mundo atual vai convencer do contrário.
Pedro Herz, o dono da Livraria Cultura - cujo sucesso é outra prova de que as pessoas têm mais vida cultural do que elas mesmas pensam -, contou outro dia que certa vez os funcionários foram perguntados 'o que é cultura?' e uma das vendedoras, Vanessa dos Santos Machado, respondeu: 'Cultura é Picasso e pão com ovo.' Tentei algo parecido num texto chamado 'Civilização é...', listando uma série de coisas que expressariam essa noção, desde 'poder ler Proust, Joyce e Mann no original' ('poder ler', não necessariamente 'ler') até 'não faltar luz'. Mas Vanessa disse melhor. Picasso e pão com ovo. Jane Austen e queijo com goiabada. Bach e bola.
RODAPÉ
Mencionei na semana passada a antologia As Cem Melhores Crônicas Brasileiras (seleção de Joaquim Ferreira dos Santos, editora Objetiva). Há uma impressão de que a crônica é um gênero brasileiro por excelência, mas não é verdade. Há cronistas em várias literaturas, no passado e no presente - gente muita boa como o americano E.B. White, o inglês Jeffrey Bernard, o português Miguel Esteves Cardoso ou o espanhol Arturo Pérez-Reverte. No Brasil, como o volume comprova, há uma grande diferença entre Machado de Assis (de quem faltou a ótima sobre a Abolição, de 19/5/1888), Rubem Braga, Nelson Rodrigues e os demais (incluindo aqui Drummond, João do Rio e outros celebrados). Dos mais recentes, apenas Otto Lara Resende e Verissimo se aproximam daquele trio.
O problema brasileiro, porém, é a presença exagerada da crônica nos outros gêneros: romances, contos e reportagens parecem sempre diluídos por esse tom, leve e 'engraçadinho', que costuma ser atribuído a ela. Talvez tenha a ver com o gosto nacional por causos e anedotas, tão evidente na conversa quase sempre fiada do cotidiano. Assim como um dia a bossa nova licenciou o esquema banquinho & violão para qualquer candidato a João Gilberto ou Nara Leão, o bom passado da crônica brasileira leva muitos autores a se bastar em contar alguma história reles de suas vidinhas. Voltarei ao assunto.
DE LA MUSIQUE
Outro CD interessante é o de Marina de la Riva (Universal), uma filha de brasileira com cubano expatriado que mistura canções dos dois países. Os arranjos de músicas como Taí! e Drume Negrita são bacanas, mais lentos que os originais, e a versão ainda mais lenta de Te amaré y después (Sílvio Rodriguez) é memorável. O melhor é que ela não apela para um 'híbrido', desses que tentam unir dois gêneros e acabam estragando ambos.
POR QUE NÃO ME UFANO
Quando vejo José Serra falando sobre a política econômica, me pergunto como teria sido caso ele tivesse vencido a eleição presidencial. Ele tem razão quando diz que a cotação do dólar não é apenas resultado de um livre jogo das forças de mercado, até porque o Banco Central intervém constantemente para cima ou para baixo e, recentemente, para ampliar até em demasia as reservas na moeda, de olho em obter o 'investment grade' do mercado financeiro mundial. E, sim, os juros poderiam estar mais baixos do que estão, e há algumas benesses fiscais que facilitam o ir-e-vir dos investimentos externos.
Mas o que fazer? A tal 'lei da responsabilidade cambial', que seria uma tentativa de administrar o câmbio dentro de uma faixa cujo valor os sábios da hora determinariam? Ou controlar fluxos de capital, o que até o Chile já não faz? O ponto maior é como induzir maior competitividade na indústria nacional, em vez de ficar soltando uns pacotes setoriais como faz o governo Lula. É abrir a economia com inteligência, e não fechá-la com arrogância.
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