Historicamente identificada como o farol da sociedade, por seu poder de irradiar opinião, a classe média, pelo menos a brasileira, não brilha mais como no passado. A observação pode até parecer uma contradição em face de análises e projeções que a colocam na liderança das classes sociais em futuro próximo. Em 2010, segundo o Banco Santander, a classe média latino-americana terá 60 milhões de pessoas, tornando-se maioria no continente. Outro banco, o Goldman Sachs, indica que a classe média no Brasil, na Rússia, na Índia e na China, hoje com 200 milhões de pessoas, deverá atingir a casa dos 2 bilhões em 20 anos. Ocorre que, por aqui, este estrato social vive um ciclo de grandes mudanças. Seu espaço começa a ser ocupado por outras referências, oriundas de grupamentos periféricos, que se organizam, ganham força e autonomia.
Peter Drucker, estudioso do impacto da globalização sobre o consumo, fala de uma “nebulosa social” no mundo, fruto do desemprego que atinge setores médios e do acesso de novos atores às tecnologias de aquisição de conhecimento. Entre nós, a crescente afluência das margens se deve, ainda, ao estreitamento das distâncias entre as classes B, C e D, que, revigoradas por programas de redistribuição de renda e sob ambiente de inflação baixa e maior acesso ao crédito, se inserem fortemente no mercado consumidor. Esta é a base sobre a qual o País poderá, amanhã, formar uma gigantesca classe média.
O fato é que estamos presenciando profunda transformação nas relações sociais, cujos efeitos sobre a esfera política já começam a se fazer sentir. Vejamos os movimentos dessa engenharia social. Inicialmente, convém lembrar que a classificação social no Brasil é bastante fluida por sermos um território com grandes diferenças. Ser rico numa região pode equivaler a pertencer à classe média baixa em outra. Escolhamos o critério de renda, o mais usado para definir as divisões. Assim, a classe A teria renda superior mensal a 20 salários mínimos; a classe B, entre 10 e 20 salários; a classe C, entre 4 e 10; a D, entre 2 e 4; e a E, com renda inferior a 2. Por esse critério, os ricos estariam na classe A, a classe média alta ficaria na faixa B, a C formaria a classe média típica e os de baixa renda estariam na classe D, ficando os pobres na E. Mas há algum tempo essa composição se desmancha. Como se sabe, a classe média se robustece no fluxo da expansão da industrialização ao longo de oito décadas no século 20. Supervisores, gerentes, técnicos, profissionais liberais, pequeno empresariado, artesãos e comerciantes emergiam como poderosa força. Mas a crise econômica dos anos 80, caracterizada por carência de recursos, encolhimento da produção e enxugamento do Estado, abriu o ciclo de declínio desta classe, cujas referências eram paradigmáticas.
A globalização das economias e a conseqüente reengenharia na administração empresarial enxugaram postos de trabalho. A partir daí, desenvolve-se um processo de degradação que no Brasil, segundo estudos da Unicamp, fez a classe média perder, nos últimos anos, um terço de sua renda. Em 1980, 64,6% da classe média era composta de assalariados; em 2000, este índice era de 55%. Em 80, a classe entrava com 31,7% na população economicamente ativa (PEA); em 2000, caiu para 27,1%. Ademais, os custos da classe média com saúde, educação, segurança, transporte e habitação, sempre ascendentes, fizeram-na apertar o cinto. Sem tradição de lutas, os núcleos do meio da pirâmide canalizaram a indignação para a política. Daí serem comparados com a pedra que faz marolas no lago social. A formação da opinião pública tinha como parâmetro a expressão da classe média. Ao correr das últimas duas décadas, porém, ela se esgarçou. Perdeu espaço político. Enquanto sua voz definhava, fortalecia-se o grito das margens.
Por essa vertente entram os ingredientes que alimentam a “nova classe”. A começar pelo braço social do Estado e pelo distributivismo das bolsas. Depois, o cartão de crédito que chega ao bolso de uma clientela mais humilde. O varejo se aquece. Em 2006, o comércio da Rua 25 de Março, em São Paulo, registrou R$ 17 bilhões, ou 40% de todos os shopping centers do País, enquanto o mercado de luxo movimenta cerca de R$ 5 bilhões por ano. Parcelas significativas passam a ter acesso a novas fontes de cultura e informação. Inaugura-se um processo de migração entre a classe média típica (C) e a classe média alta (B). Expande-se uma “psicologia global” que respira ares de autonomia e independência, algo que o sociólogo francês Robert Lattes definiria como “autogestão técnica” ou, em outros termos, as massas sabem o que querem e como agir. E o pragmatismo se incorpora a seu sistema decisório. Instala-se um leilão de trocas: quem dá menos, quem dá mais? A micropolítica - o remédio barato, o transporte fácil, a escola pública perto de casa, a rua asfaltada, a segurança no bairro, o lazer pago em pequenas prestações - passa a ser o discurso que provoca interesse.
E assim a pirâmide social ganha novo traçado. O topo continua bem inclinado, a denotar a hipótese de que, no Brasil, os ricos se tornam cada vez mais ricos. O grau de inclinação do meio da pirâmide, porém, é mais largo, na perspectiva de uma classe média alta que se comprimiu e de uma classe média típica que se expande com a incorporação dos estratos de baixo. Este é o novo ambiente social em que se opera a política. A bandeira republicana, com os valores da ética e da dignidade, do respeito ao império do Direito e da Justiça, historicamente desfraldada pelas classes médias, agora cede lugar à bandeira franciscana, cujo lema é: “É dando que se recebe.” Luiz Inácio, animal político de instintos apurados, percebeu que a “nebulosa social” brasileira difere das nebulosas planetárias formadas por estrelas no ciclo final de vida. Aqui, as estrelas são novas e dispõem de muito espaço para expandir a luz.