Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 15, 2007

Dom Pedro II Celso Lafer



A recém-publicada biografia de dom Pedro II (1825-1891) escrita por José Murilo de Carvalho vem tendo merecida repercussão. É um livro de qualidade, fruto da sábia convergência com que soube lidar com a contribuição da narrativa biográfica para o entendimento da História, ao traçar o perfil público e privado de um chefe de Estado que marcou profundamente a trajetória do nosso país nos quase 50 anos do seu governo.

A distinção e, ao mesmo tempo, a complementaridade entre o explicar e o compreender é importante para o entendimento da História, como realçado por Dilthey. O explicar histórico está ligado à pesquisa das causas e das forças que moldam os eventos. O compreender busca as conexões do sentido que têm como lastro os elementos hauridos no explicar. Por esta razão Dilthey sublinha a importância da biografia para a compreensão da História, na medida em que a narrativa de uma existência insere o seu significado mais amplo no quadro geral do mundo histórico dentro do qual o biografado viveu.

Registro que José Murilo tinha todas as condições para elaborar uma vida de dom Pedro II, mesclando o explicar e o compreender. Tem aprofundado conhecimento do jogo de forças que caracterizaram o período em que ela transcorreu, pois em estudos anteriores pesquisou o papel da elite política imperial e analisou o processo histórico, iniciado com a Independência, do longo caminho de afirmação da cidadania no Brasil. Por isso o seu livro é não apenas uma bem-sucedida narrativa biográfica. É também, na sua finura analítica, uma obra que amplia o entendimento do período pela análise do personagem que exerceu, durante tão largo período, o Poder Moderador.

O Poder Moderador, como um quarto Poder, distinto do Poder Executivo, é uma das singularidades da Constituição Política do Império (artigo 98). Foi concebido como “a chave de toda a organização política” e voltado para velar “sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. Pimenta Bueno, o grande constitucionalista do Império e o principal conselheiro jurídico de dom Pedro II, definia-o como “a suprema inspecção da nação”. Esta inspecção se caracterizou, no reinado de dom Pedro II, como um poder ativo que impulsionou a monarquia constitucional e a prática parlamentar e foi exercido pelo monarca, em função de sua personalidade, não como um ator solitário, mas preponderantemente como um árbitro dotado de autoridade.

Os chefes de Estado têm menos o temperamento da sua estratégia e mais a estratégia de temperamento da sua personalidade. Por isso um dos grandes méritos do livro de José Murilo é o de desvendar uma compreensão da personalidade de dom Pedro II e, deste modo, esclarecer o significado do como, na moldura institucional do Império, exerceu o Poder Moderador, a ele conferindo a respeitabilidade interna e internacional que contribuiu para a construção do País.

A estratégia hermenêutica do livro se baseia no modo como se distinguem e, ao mesmo tempo, se fundem numa trajetória de vida a figura pública de dom Pedro II, imperador do Brasil, e o ser humano e cidadão Pedro d’Alcântara. O primeiro foi um servidor público exemplar, escrupuloso e zeloso no exercício do poder que o destino lhe confiou. Daí, como documenta o A., o seu interesse pela coisa pública, a qualidade dos homens públicos de que escolheu cercar-se, a austeridade nos gastos da Coroa, a importância que, como democrata e governante, atribuiu à liberdade de opinião e de imprensa, acompanhada da tolerância liberal com a qual, para estar bem informado, aceitou críticas. O segundo foi um ser humano com suas contradições e fraquezas, um amante das artes, das letras e das ciências, um leitor voraz e de grande memória, um erudito que dominava várias línguas e gostaria de ter sido professor. O que conferiu uma unidade de significado a este ser humano, dando-lhe condições únicas para exercer o Poder Moderador, foi, como comprova José Murilo, a paixão pelo Brasil.

Joaquim Nabuco afirmou em Balmaceda que o critério para julgar o valor dos chefes de Estado da América do Sul era o de comparar a situação em que receberam o país e a situação em que o deixaram. O Brasil estava à beira da fragmentação no início do reinado de dom Pedro II e em 1889 estava unificado. O tráfico, antes, e a escravidão, depois, foram abolidos num processo demasiado lento, mas o imperador e os abolicionistas tiveram de enfrentar, até o fim, a resistência dos proprietários e de muitos atores políticos. A instabilidade política foi substituída pela consolidação do sistema representativo e pela hegemonia do governo civil.

Em matéria de política externa, o Brasil soube definir linhas de orientação, preservar seus interesses na região platina e adquirir respeitabilidade diante dos países da América do Sul, dos EUA e da Europa. Para isso muito contribuiu a aura que dom Pedro d’Alcântara, nas suas viagens à Europa e aos EUA, conferiu a dom Pedro II. Foi considerado o neto de Marco Aurélio por Victor Hugo, o responsável por uma “democracia coroada”, como disse Mittre, que mereceu o respeito de Darwin e a admiração de Gladstone.

É claro que muito ficou por fazer. O próprio dom Pedro II notou que tudo andava devagar demais no Brasil. Entretanto, ainda que lentamente, estavam lançadas as bases para a construção do País de maneira única em relação a toda a América Latina do século 19.

A História, observa Aron, exprime o diálogo entre o passado e o presente. Neste diálogo o presente retém a sua iniciativa. Neste momento da vida política brasileira, de tantas decepções sobre condutas públicas, é um ingrediente de esperança saber que um chefe de Estado, durante quase 50 anos, conduziu com integridade, virtudes republicanas e sincera e zelosa paixão pelo Brasil os destinos nacionais.


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