Não, não foi uma “infelicidade” da qual “nenhum de nós está livre”, como disse o vice-presidente da República, José Alencar.
A explicação mais fiel para os gestos de obsceno regozijo dos assessores Marco Aurélio Garcia e Bruno Gaspar diante da hipótese de falha técnica no Airbus A-320 quem deu foi o próprio Garcia: foi o ímpeto de extravasar o sentimento de vingança contra todos os que - baseados nos fatos - levantaram a suspeita de a tragédia ter sido resultado do descaso do governo para com o colapso do sistema de tráfego aéreo brasileiro.
Tanto a atitude, espontânea, quanto o teor da nota de alegadas e bem pensadas desculpas onde demonstra tudo, menos arrependimento, traduzem com perfeição a lógica da disputa política e a noção do exercício do poder que pautam ações e reações do governo e do presidente Luiz Inácio da Silva, nisto um petista de quatro costados.
Diz Garcia: “O sentimento que extravasei, em privado, foi e é de repúdio àqueles que trataram sordidamente de aproveitar a comoção que o País vive para insistir na postura partidária de oposição sistemática a um governo duas vezes eleito pela imensa maioria do povo brasileiro.”
Se “extravasou”, não foi vítima de fortuito acaso, mas agente da consciência plena de seu ato. Alega tê-lo feito “em privado”, apropriando-se das dependências do Palácio do Planalto como ambiente de intimidade pessoal.
O sentimento foi, e segundo ele “é” (reincidente, portanto) de “repúdio” à generalizada dúvida sobre se o desastre foi coincidência ou conseqüência do desgoverno.
Raciocínio típico de combatente de guerra política, a quem só a vitória e a conquista de posições importam.
Açodado, não levou em conta que o governo corroborou a desconfiança ao convocar uma reunião de ministros logo após o acidente, cogitar demissões e anunciar medidas para administrar a crise aérea, em função do acidente.
Por fim, Marco Aurélio Garcia considera crime de lesa-pátria a oposição ao governo porque foi “eleito duas vezes pela imensa maioria do povo brasileiro”.
E os antecessores de Lula, aos quais o PT emprestou oposição sistemática sem ser por isso tido como criminoso, não o foram também?
Em seu festim de diabólico e vulgaríssimo sapateado sobre os mortos, a dor, a perplexidade, a revolta, a impotência, não deste ou daquele partido, mas de todo o País, os dois assessores protagonizaram uma exibição-síntese sobre os fins governamentais a serem sistematicamente justificados por quaisquer meios.
ACM
Antonio Carlos Magalhães não terá herdeiro na política. Nem seu filho morto em 1998, Luís Eduardo Magalhães, caberia no conceito da substituição. Eram políticos inteiramente diferentes, de concepções diversas. Duro como o pai, mas conciliador como ACM nunca quis ser, se vivo fosse, Luís Eduardo levaria hoje os analistas ao equívoco de enxergar nele a continuidade.
Sua atuação política indicava o oposto, a descontinuidade e a evidência: Antonio Carlos, quando chegasse ao fim, levaria consigo sua história.
ACM cumpriu seu próprio vaticínio de que só sairia da política com a morte. Acompanhou de perto todos os acontecimentos do País até quase literalmente o último suspiro. Dez dias antes, quando ainda falava e falava bem, firme, com aquele jeito de quem tudo enfrenta e tudo supera, falava sobre a resistência de Renan Calheiros em ocupar a presidência do Senado apesar da crise: “Renunciar, ele não renuncia.”
Polêmico, impôs sofrimentos, mas espalhou também contentamento. Capaz das piores maldades, ao mesmo tempo de gestos afáveis, de injustiças e de atos pautados por acentuado senso de justiça, só não foi ameno nem um conciliador nato.
Seu norte era a mão de ferro, para o bem e para o mal. Com ela, imprimiu eficácia à administração da Bahia, forjou uma geração de bons gestores, atuou em momentos decisivos, como quando confrontou a ditadura militar que apoiara e sustentara politicamente na resposta ao brigadeiro Délio Jardim de Mattos, em 1984, então ministro da Aeronáutica, que chamara de “traidores” os aliados da candidatura Tancredo Neves à Presidência da República.
“Traidor é ele que apóia um corrupto”, respondeu Antonio Carlos, contribuindo para fragilizar o regime, partidário da candidatura Paulo Maluf, e que, naquele episódio, mostrou que já não tinha mais força para reagir à confrontação de sua evidente fragilidade.
Os erros, equívocos, manifestações de autoritarismo, arrogância, intolerância, mandonismo e, por vezes, de pura crueldade foram inúmeros na vida de Antonio Carlos. No momento de sua morte, porém, não cabe remoê-los. Há uma família, seus eleitores na Bahia e muita gente que o amava, a serem respeitados. De julgamentos, diz bem o lugar comum, a história nunca deixa de se encarregar.
Ainda mais quando se trata de figura singular e de influência tão longeva na vida política brasileira quanto Antonio Carlos Peixoto de Magalhães.
E-mail: dora.kramer@grupoestado.com.br