Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 22, 2007

Tragédia da cidadania José Paulo Kupfer


É fácil saber se haverá outras tragédias como a do Airbus da TAM ou do Boeing da Gol. Basta observar se a discussão sobre a causa dessa última ficará concentrada no avião, no piloto e na pista. Se ficar nisso, preparem-se para o pior – se é que isso é possível.

O avião da TAM pode ter tido um problema mecânico, o piloto pode ter errado a manobra de pouso, a pista de Congonhas, liberada para uso inacabada, pode ter sido a avenida do horror. Mas o desastre mesmo é a desregulação selvagem do setor aéreo, levada a cabo sob os olhares complacentes das autoridades.

Por suas características e inserção na mancha urbana, Congonhas não poderia ser transformado, como foi, num aeroporto de conexão, num “hub” aeroportuário. E muito menos no maior da América Latina. É óbvio que, pelo tamanho da pista e pela ocupação anárquica de sua vizinhança, não deveria receber mais do que vôos do tipo origem-destino, operados por aviões de menor porte.

Nas últimas duas décadas, Congonhas foi tomado de assalto pelas companhias aéreas. Não, não é um exagero, a expressão é essa mesma. Dos vôos da Ponte Aérea Rio-São Paulo e da aviação realmente regional, o aeroporto foi sendo engolfado por uma malha absurda de longo percurso, convergência de conexões e operação de aeronaves de grande porte.

A história da tragédia de Congonhas é a da barra forçada das companhias aéreas, com a aquiescência das autoridades em geral. Ninguém, nos últimos 20 anos, ousou barrar a ganância, que vislumbrou num aeroporto de fácil e rápido acesso, a possibilidade de estimular – e lucrar – com o deslocamento de executivos por rotas congestionadas, em viagens relativamente curtas – e, portanto, menos onerosas para o chamado mundo corporativo.

Quando se fala “ninguém”, está-se falando tanto do poder federal, quanto do estadual e do municipal – aí incluída, claro, a agência dita reguladora, que, como outras, atua mais como um sindicato auxiliar das empresas do setor, em vez de equilibrar a concorrência e assegurar o cumprimento dos contratos de consumo e os direitos dos cidadãos.

Todos e cada um, mesmo em separado, dispunham - e dispõem – de instrumentos legais para barrar a ocupação predatória da malha aérea e de aeroportos como o de Congonhas, pelas companhias aéreas. Mas nada realmente sério fizeram ou fazem. Detalhe: a desídia generalizada aponta culpados para todos os gostos partidários. A escolha de um em detrimento de outros, portanto, apenas revela falha de diagnóstico ou, muito pior, um abjeto oportunismo político.

Por falta de planejamento na construção de acessos aos aeroportos e de fiscalização na ocupação das áreas próximas a eles, hoje em dia é preciso pegar um avião para chegar a tempo em Cumbica, no Tom Jobim ou em Cofins. As viagens rotineiras a negócio, coração do negócio das empresas aéreas, ficam inviáveis quando o tempo total de deslocamento pelo menos triplica em relação ao tempo de vôo.

Eis aí o que levou ao congestionamento dos aeroportos urbanos, fenômeno do qual Congonhas é o ícone. Depois da instalação do problema, a força do lobby empresarial e a fraqueza das autoridades e do sistema de regulação levaram à opção preferencial pelo embelezamento das estações de passageiros de aeroportos urbanos, em lugar do cuidado com as condições de operação em segurança ou, simplesmente, da melhoria de acesso aos aeroportos afastados do centro das cidades.

Não é verdade que o problema de atrasos e cancelamentos nos vôos tenha eclodido depois da tragédia anterior, a do Boeing da Gol. Eles já existiam. A diferença é que, depois da quebra da Varig, a ocupação gananciosa e tecnicamente condenável das rotas aéreas pelas demais companhias “jogou a malha para o espaço”, como disse o brigadeiro José Carlos Pereira, presidente da Infraero. Mais uma vez, as autoridades, que deveriam fiscalizar e impedir o assalto, falharam.

Nos cursos de economia, aprende-se, nas aulas sobre mercados, que o setor aéreo tem uma característica peculiar: o aumento da oferta de assentos induz o aumento da demanda. As forças de mercado fizeram o que sempre fazem – como a natureza, elas simplesmente atuam, não medem conseqüências e não têm preocupações sociais ou morais. O caos em que se transformou o sistema aéreo brasileiro não é, portanto, culpa do mercado. A culpa é da ausência de controle competente e eficaz sobre ele.

O que está ocorrendo aqui, no fundo, é a tragédia da cidadania.

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José Paulo Kupfer 9/07/07 12:16 PM

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