Há um padrão comum a todos esses momentos em que um fato grave acontece no Brasil e as responsabilidades precisam ser estabelecidas. Dá-se uma confusão geral a respeito das informações mais básicas e as autoridades se apressam em transferir a culpa ou para uma série de fatores, de tal modo que ninguém termina realmente responsabilizado, ou para o azar, esse velho companheiro do fatalismo nacional. O resultado é que o tempo passa, apenas medidas paliativas são tomadas, os laudos pouco acrescentam ou são ignorados e não se vai ao fulcro do problema. Até que novo desastre cai sobre as cabeças.
Foi assim na implosão da cratera do metrô Pinheiros, que logo se tratou de atribuir à chuva. Se especialistas apontaram para provável erro na monitoração de solo, os autores alegaram ter feito várias outras obras em condições semelhantes - como se semelhança fosse o mesmo que segurança - e os governantes adiaram as dúvidas até o parecer técnico, à espera do qual continuamos. Já pensou se fosse necessário esperar seis meses para noticiar qualquer análise ou dúvida sobre o acontecido? Não é o que se faz em parte alguma do mundo; muito menos se deveria fazer no Brasil, onde o histórico de impunidade e incompetência tem a dimensão conhecida.
Assim que aconteceu o acidente do vôo 3054 da TAM, o sindicato dos aeroviários levantou a hipótese da imperfeição da pista, reaberta sem as ranhuras que escoam chuva e ampliam atrito (“grooving”) - e também sem alvará e por pressão das companhias aéreas, como se apurou. Mais tarde, com o exame da trajetória do avião, que acelerou depois de tocar o solo, se apontaram falhas na mecânica e na manobra. Que o “grooving” era necessário (tanto que passou a ser feito na mesma madrugada) e a pista estava escorregadia (como alertou o controlador para o piloto e como provaram outras derrapagens), não resta dúvida. Mas talvez não tenha sido o principal fator a pesar na tragédia.
No entanto, há uma associação clara, ainda que não pontual, entre o acidente e a crise do sistema aéreo brasileiro - uma relação que só muita polianice ou partidarismo pode negar. O aeroporto de Congonhas é o ponto mais visível da montanha de erros cometidos no setor. Trata-se de um sistema antigo e sobrecarregado, tocado por muitas pessoas sem qualificação técnica ou a devida carga horária e, antes de mais nada, com infra-estrutura precária. Há muito Congonhas é tido como local de operação crítica, de pouca margem de segurança, inadequado (assim como o Santos Dumont) para aeronaves de grande porte e vulnerável demais às condições climáticas. Tudo isso, mais a tensão da crise, se verifica na tragédia. Há um consenso entre especialistas de que a manutenção e a reforma não foram, para dizer o mínimo, competentes.
Infraero, Anac e Aeronáutica - órgãos do governo federal, que lhes cortou as verbas - são os responsáveis por esse estado de coisas. Já deveriam ter proibido aviões desse porte e/ou ampliado a pista e seu escape. De pouco adianta dizer que foi culpa do piloto ou vontade divina ou dizer como o Conselheiro Acácio que “todo acidente tem diversas causas”. Também não ajuda transformar o debate em Fla-Flu partidário, até porque o PSDB não tem crédito nenhum na área. Mas que o governo federal tem responsabilidade e grande, tem. Se não, para que governa? Cabe a ele cuidar da malha aeroviária, de regular e fiscalizar o setor, e ele não tem feito isso - assim como de suas rodovias, que matam muito mais gente por ano do que os acidentes aéreos. Cabe ao governo Lula, justamente por estar mergulhado nessa crise, oferecer um modelo que resolva a médio e longo prazo as carências. Desmilitarizar, privatizar, unificar gestão, construir - algum verbo precisa ser conjugado.
No acidente da Gol no ano passado, o mesmo descaso com um sistema tão importante para a economia e o imaginário se viu quando as autoridades tentaram debitar tudo na irresponsabilidade dos pilotos americanos do Legacy. Ainda que esses tenham sido culpados por desligar o “transponder”, tinham a orientação das torres para manter a altitude que era a mesma do vôo da Gol, orientação que se sobrepõe ao plano de vôo. Mas essa informação não foi obtida e divulgada pelo governo. Como disse o piloto do jatinho, o problema é o “mais ou menos”, os parâmetros frouxos, a falta de rigor com as normas internacionais, a complacência diante de sinais de alto risco, a conivência com os interesses particulares. É o “toma cuidado aí, tá escorregadia”, é o “deixe estar para ver como é que fica”. É a falta de espírito público e ação metódica, como já dizia Aldous Huxley há 40 anos.
A acochambração, o “jeitinho”, só serve para encobrir a necessidade de enfrentar um problemão, complexo, que exige responsáveis que assumam seu papel. É hora de aumentar o nível de exigência, e não de largar o manche.
RODAPÉ
A República Consentida, de Maria Tereza Chaves de Mello (FGV/ Edur), é um livro muito interessante neste momento em que dom Pedro II sofre releitura cada vez mais positiva. Ela investiga a vitória antes de mais nada simbólica da república sobre a monarquia no final do século 19. Mostra como os republicanos conseguiram vender o discurso do progresso, da modernidade, em oposição a uma monarquia que se perdia em indecisões, a mais crucial delas sobre a abolição da escravatura - assinada tarde demais pela princesa Isabel. República passou a simbolizar ciência e democracia, duas palavras em alta no cenário mundial da época; monarquia, inércia e privilégio.
Por mais que a república brasileira não tenha conseguido realizar esse projeto, caindo no mesmo troca-troca de oligarquias atrasadas, o brasileiro já era republicano - ou pelo menos desejava ser.
MEA-CULPA
Duas correções atrasadas. Não foi Alan Pauls quem disse que Cortázar é “muito ruim”, mas outro escritor argentino, César Aira. E de David Halberstam, jornalista americano morto recentemente, existe sim um livro traduzido no Brasil, a biografia de Michael Jordan (editora 34).
CADERNOS DO CINEMA
É preciso tentar entender por que uma série como Harry Potter, de J.K. Rowling, faz tanto sucesso, como um dia fizeram Jules Verne ou Monteiro Lobato. No filme Harry Potter e a Ordem da Fênix, os motivos parecem claros: a narrativa é cheia de fantasia, a construção de um imaginário que vai de detalhes como a carta falante a personagens como monstros e bichos, mas é também realista, por sua ambientação numa escola com os tipos diversos que compõem qualquer outra em qualquer país; o visual gótico e o ritmo de ação fazem de modo convincente a costura de referências a mitos gregos e lendas medievais; e mesmo a velha disputa entre bem e mal parece renovada por uma noção de que eles são mais parecidos do que inicialmente desconfiam.
Acho que a crítica deveria tentar entender esse fenômeno entre adolescentes e pré-adolescentes, em vez de olhar tudo de seu próprio ponto de vista etário e do preconceito contra o sucesso comercial.
DE LA MUSIQUE
Fiz no blog uma enquete sobre as melhores canções brasileiras. Pela ordem, deu Construção (1971), de Chico Buarque, Aquarela do Brasil (1939), As Rosas não Falam (1978), de Cartola, Águas de Março (1972), de Tom Jobim, e Rosa (1917, letra de Otávio de Souza em 1937), de Pixinguinha. Nada mal, ainda que eu prefira Caymmi a Ary. Muitos outros compositores foram citados. Mas canções dos anos 80 para cá foram escassas, para dizer o mínimo.
POR QUE NÃO ME UFANO
Lula foi vaiado na bonita festa de abertura do Pan. Isso significa que perdeu popularidade? Claro que não. Mas ficou tão deprimido que passou recibo. Para ele, não basta ser popular; é preciso ser unânime. Qualquer crítica a seu governo é obra de quem torce pelo fracasso do Brasil, pensamento que só comprova seu continuísmo de FHC. E a turma chapa-branca na imprensa real e virtual foi correndo inventar uma razão, a de que as vaias teriam sido orquestradas por César Maia - que com isso se candidataria ao lugar de Roberto Minczuk como maestro mais talentoso da nação.
A dificuldade de conviver com opiniões contrárias, as quais são logo rotuladas no mesmo frasco, é um traço cultural do brasileiro. Veja o comportamento de Dunga, técnico da seleção. Seu time jogou mal em quatro dos seis jogos de que participou, mas, como venceu a Argentina na final, os erros nem sequer existiram... Mesmo que nessa final tenha tido a sorte e a inédita competência de justamente contar com apenas dois volantes, em vez dos três que atuaram até então, porque Gilberto Silva estava suspenso. Foram os improvisados Júlio Baptista e Daniel Alves que fizeram a diferença. Quem viu, viu.
E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br. Site: www.danielpiza.com.br