Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 22, 2007

João Ubaldo Ribeiro

O mercado está difícil


Não lembro bem quem lançou a idéia primeiro, mas ela já devia estar flutuando há algum tempo em torno de minha mesa de boteco, esperando somente que alguém a verbalizasse, pois se formou imediato consenso. Claro, tínhamos até agora sido uns bestalhões de classe média, obrigados a sentir culpa por pertencermos a uma classe que todo mundo acha bonito esculhambar, pagando impostos cada vez mais altos, com medo de tudo e, no geral, fazendo papel de palhaço. Nenhum dos membros da mesa, por exemplo, esteve na abertura do Pan e muito menos tomou parte nas vaias que recebeu o presidente Lula, mas pelo menos um já foi xingado de “classe média descarado” por um lulista exaltado, que acha que foi tudo coisa da classe média - o que pode até ter sido e não tenho elementos para avaliar, mas, concordando ou não com as vaias, por que a classe média não pode se manifestar?

Mandava a sincera autocrítica que concluíssemos que, além de levarmos fama sem proveito, estávamos persistindo em atitudes não condizentes com os tempos que atravessam o Brasil, ou seja, vivendo no passado. E foi brilhantemente decidido que, claro, precisávamos nos juntar ao clima empreendedor reinante e entrar no mercado com decisão e eficiência, dentro das condições atuais. Precisávamos, por conseguinte, formar uma quadrilha. Talvez fôssemos o último grupo no Brasil que ainda não formara uma quadrilha e isso era ridículo, essa negligência nos tirava qualquer direito a nos queixarmos.

A animação que se seguiu à descoberta foi enorme. Ouso dizer que houve até um certo rejuvenescimento entre os mais coroas. Aposentados e acomodados, agora viam diante deles perspectivas de aventuras só vividas na imaginação da juventude. Formar quadrilha, hem, que beleza! Senhas, códigos, varreduras telefônicas e, principalmente, dinheiro, bastante dinheiro, o suficiente para pelo menos passarmos para a zelite. Na zelite o sujeito é xingado, mas aproveita, além de não pagar impostos, não entrar em filas e não se submeter às indignidades a que a classe média está sujeita.

O indicado para orientar nossos primeiros passos foi, naturalmente, Carlinhos Judeu, alvo do respeito geral por seu tirocínio financeiro e homem de negócios respeitado aqui e além-mar. Justiça seja feita, Carlinhos não se revelou um entusiasta da idéia e somente concordou em realizar algumas investigações para não desagradar os companheiros de mesa. Na semana seguinte, garantiu, daria seu parecer sobre a viabilidade do empreendimento.

Grande assanhamento no dia do parecer. Apenas eu, que sou amigo de Carlinhos há muitos anos, notei que o ar dele não era dos mais animadores, o que foi rapidamente confirmado pelas palavras que ele dirigiu ao plenário. Tentou fazer um preâmbulo consolador, mas não demorou muito e foi direto ao ponto. O negócio era o seguinte: tínhamos chegado tarde demais, já não havia vaga para quadrilha em área nenhuma de atividade no Brasil, absolutamente nenhuma, tudo tomado.

- Certos setores - disse Carlinhos - já estão com superávit de quadrilhas há muito tempo. Por exemplo, um amigo meu me garantiu que uns 50% dos encostados no INSS não têm nenhum problema de saúde. A Previdência, que antigamente era refúgio seguro para uma quadrilhazinha, agora está superlotada. Também não há trambiques novos para bolar, já foi tudo concebido, está tudo na mão de profissionais, não dá para a gente encarar essas feras.

Em suma, não havia mais vaga para nada. De início, a mesa, apesar de abalada pela avaliação implacável de Carlinhos, não quis resignar-se. Não era possível que a gente não pudesse criar pelo menos uma quadrilha de bairro, todo mundo podia, por que não a gente? Mas, aos poucos, a cruel verdade se impôs, a saturação do mercado era óbvia. E, de fato, os exemplos abundavam. Por exemplo, agora mesmo não tinham descoberto que certas lojas de franquia dos correios põem ventiladores de teto em cima das balanças de precisão, onde um gramazinho pode significar uma boa diferença de preço, para a carta “pesar” mais e eles faturarem uns trocados extras? Pode haver criatividade maior que essa? E, por outro lado, pode haver sinal mais claro de saturação do mercado?

- Não há vaga mesmo - arrematou Carlinhos, dirigindo-se especialmente a mim. - Até lá na sua terra eu andei fazendo umas sondagens. Tenho indícios sérios de que, em Nazaré das Farinhas, está sendo armada uma quadrilha para extorquir dinheiro dos proprietários de jegue. Teve jegue, é obrigado a pagar aos caras, senão eles engrossam. Me falaram num negócio de dar rapadura ao jegue do dono que não pagou. Não sei como é isso, mas não deve ser fácil para o jegue.

De fato, não é, é uma tremenda malvadeza dar rapadura a jegue. O pobre do animal adora rapadura, se torna até viciado, mas o açúcar lhe traz cáries e ele fica com dor de dente. Já vi diversos nessa situação e é de partir o coração, o bicho lá, de cabeça derreada e olhar comprido, babando de dor de dente sem que ninguém possa fazer nada. Esses quadrilheiros são capazes de qualquer coisa.

Fim de papo, portanto. Esquecemos nossa quadrilha, permanecemos excluídos. Mas a mesa não perdeu o humor e encerramos a discussão com uma homenagem ao camarada que deu aquele golpe do kit de primeiros socorros para motoristas, com certeza um Grão-Mestre da maracutaia, a quem devia ser dedicada a estátua do Trambiqueiro Desconhecido. Ou não, será que tem um maior que ele, maior que qualquer outro? A mesa debate.

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