No retrato de uma China em fluxo, a angústia
dos que tentam achar seu lugar nessa nova ordem
Isabela Boscov
Da cor que presumivelmente lhe valeu o apelido de "Rio Azul", o Yangtzé hoje não guarda nem vestígio. Suas águas lentas e suas encostas barrentas são, portanto, o pano de fundo perfeito para Em Busca da Vida (Still Life, China/Hong Kong, 2006), em que a pujança chinesa produz riqueza na mesma medida em que produz esquecimento e feiúra. O filme do diretor Jia Zhang-Ke, que estréia nesta sexta-feira no país, foi rodado na cidade de Fengjie no momento em que esta vinha sendo quase que inteiramente posta abaixo, para acomodar mais uma etapa na inundação provocada pela usina hidrelétrica de Três Gargantas – um projeto monumental, acalentado desde os primeiros tempos da ditadura maoísta, que entrou em vigor nos anos 90, a despeito de grande polêmica ambiental. Ao que sobrou de Fengjie chegam o mineiro de carvão Han, que procura pela filha que nunca viu e pela mulher que o abandonou dezesseis anos antes, e a enfermeira Shen, cujo marido, um engenheiro, há dois anos não lhe manda notícias. Como, porém, encontrar alguém num lugar no qual nada está mais onde estava antes?
Jia Zhang-Ke, um dos diretores mais apreciados – merecidamente – da nova geração chinesa, junta-se assim aos seus pares no retrato de um país em fluxo. A enfermeira e o operário têm de achar caminho entre os escombros, nos quais são onipresentes as marcas do nível a que a água deverá chegar. E têm também de aprender a se mover ao sabor da corrente humana que se formou ali. Todos os que viviam na milenar Fengjie (hoje inteiramente submersa) falam em ir para outros cantos, e em especial para a província de Guangdong, que cresce a taxas exorbitantes. Ao mesmo tempo, Fengjie atrai toda uma nova classe de gente, que enxerga ali chances antes inexistentes. Em vista da explosão econômica atual da China, parece óbvio que seus diretores tratem de tais temas. O que torna essa nova leva de filmes tão instigante – e oportuna –, porém, é que ela olha esse fenômeno de um prisma pessoal, de dentro para fora. E, do que se apreende, a sensação de deslocamento e insegurança é a que prevalece nessa substituição da imobilidade pela transformação. Em todo momento, em Em Busca da Vida, há gente brigando nos comitês de realojamento para saber o que será feito de si ou para garantir que um vizinho ou um burocrata qualquer não levem vantagem. Fala-se o tempo todo também de dinheiro – de quanto custa a corrida de mototáxi ou a diária na pensão, de quanto se pode ganhar aqui ou ali. Trata-se verdadeiramente de uma nova ordem, na qual o velho amparo (para o bem e para o mal) do partido vai sumindo e na qual ninguém ainda sabe ao certo onde se colocar. Nem, e essa parece ser a grande angústia, se haverá nela um lugar para todos.
A água é a imagem que está por toda parte em Em Busca da Vida. Ela aparece no Yangtzé, na queda de Três Gargantas e em sua represa colossal, no chão sempre úmido da cidade e em copos, xícaras e garrafas. Enquanto se expande, a China pressiona perigosamente suas reservas d'água, e o fato de que Fengjie disponha dela em tamanha abundância, mas também em estado tão precário, ajuda a traduzir o sentimento do filme e o dos seus personagens – o de que o novo já começou a cobrar seu preço, e ninguém sabe direito em quanto vai ficar a conta.