Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 14, 2007

O mundo ideal do Second Life

Internet
A vida como ela não é

Barato e acessível, o Second Life permite
que as pessoas convivam num mundo tal qual gostariam que fosse. Pena que só dure até
o próximo log off


Bel Moherdaui e Laura Ming

Ito Cornelsen
IMERSÃO TOTAL
Tatiana e o marido, Victor: nos fins de semana, em casa, cada um com seu computador, passam até doze horas juntos e felizes – dentro da tela, na pele virtual da curvilínea Tatjana e do esguio Viktor



No mundo ideal, todo mundo é magro. Mais especificamente, as mulheres são magras, altas, jovens, têm seios salientes e cintura fina, silhueta ideal para caber com perfeição em roupas apertadas e curtas. Os homens são magros, altos, fortes, jovens e não têm sinal de calvície, pneus ou barriga, o que faz com que vivam eternamente de camisetas bem agarradinhas. Têm carro, mas nem precisava, sendo o teletransporte o meio mais comum de locomoção. Não são muito ricos, mas também não precisa, pois com jeitinho tudo se consegue. Têm nomes estranhos e falam inglês, principalmente. Estamos no Second Life (ao pé da letra, segunda vida), um mundo virtual oferecido pela internet. Para quem está umas quatro gerações atrás, é mais ou menos como se você pudesse criar e estrelar sua própria história em quadrinhos – ou, avançando um pouco mais no tempo, seu desenho animado ou seu videogame. Quem nunca ouviu falar nessa coisa provavelmente vai acabar ouvindo, pois o crescimento populacional nesse mundo paralelo é explosivo: mais de 5,4 milhões de habitantes já passaram por lá, plugados a computadores em vários países. A maior migração é de americanos, seguidos de europeus vários e, claro, de brasileiros, hoje a sétima maior população (cerca de 216 000). Criado em 2002 pelo engenheiro americano Philip Rosedale, mas desperto de prolongada hibernação só em 2005, o Second Life, SL para os íntimos, é um misto de jogo (só que sem objetivo algum) e site de relacionamento (só que com figuras, gestos e interatividade grupal) em que circulam bonequinhos, os avatares, que são, como indica o nome saído da tradição hinduísta, a encarnação virtual dos usuários do site construída à sua muito melhorada imagem e semelhança. Não custa nada entrar, custa pouco se instalar a contento e há oportunidades de negócios, bastante exploradas por sinal, dentro de uma cada vez mais intrincada economia local, movida por uma moeda própria, o linden dólar (cotação da semana passada: 1 dólar valia 267 linden dólares). Mas o que move a maioria das pessoas a se dar ao trabalho (e dá trabalho) de montar no computador uma vida novinha em folha não é nem dinheiro, nem curiosidade, nem desencanto com o mundo real, nem proficiência digital. É a oportunidade de viver uma versão idílica da própria vida, o que geralmente significa boa forma, casa perfeita, carrão e, sim, uma boa dose de sexo também.

A bancária Tatiana Lacerda, 27 anos, passa em média sete horas diárias, antes e depois do trabalho, fazendo de tudo, sexo inclusive, na pele virtual da avatar Tatjana Yamdev. "Como sou carioca e moro em Curitiba, quase não tenho amigos aqui. Minha vida social é no SL", diz. "Vou a festas, encontro amigos na praia, gasto dinheiro nas lojas comprando roupas e acessórios", conta ela, que já tem 25.000 itens em seu "armário" virtual, entre eles mais de 200 penteados para seu avatar. "Todo dia troco de roupa. Demoro no mínimo vinte minutos para me arrumar", confessa. A dedicação de Tatiana é tal que seu marido, Victor Salles, 22 anos, atendente de help desk, acabou criando seu avatar também (a título de esclarecimento: é com ele, Viktor Creeley, que Tatjana faz sexo virtual). No fim de semana, os dois chegam a ficar doze horas sentados a menos de 1 metro de distância, convivendo e conversando dentro da tela. "Até cigarro a gente pede para o outro pelo computador", diz Salles, ele também louco pelas lojinhas. "Meu avatar tem mais roupa do que eu", admite.

Fabiano Accorsi
MONTANDO BANCA
Blum, ou melhor, Opiceblum Chevalier: escritório no Second Life para tratar dos futuros casos de injúria, calúnia, difamação e o que mais houver

O apuro na aparência virtual tem justificativa, inclusive, científica. "Quando planeja seu personagem, a pessoa tem a ilusão de conquistar o que jamais teria na vida real, a custo muito menor", diz a psicóloga Luciana Ruffo, do Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática da PUC de São Paulo. Compreende-se, pois, que a paulistana Roberta Alvarenga, 26 anos, tenha na porta de sua casa virtual três Porsches, duas Ferraris, um jipe e três helicópteros. "Deixo estacionados para as pessoas verem. São coisas que nunca vou ter na vida real, então exacerbo lá dentro", explica ela, que nas duas vidas tem como companheira a advogada Juliana Sette. O Second Life não faz restrição alguma ao casamento gay, mas cobra pela, por assim dizer, papelada. "Pagamos uma taxa de cartório de 30 lindens", conta Roberta, ou Marina Raul, que já planeja filhos virtuais. Diante do custo, o advogado paulistano Patrick Zabrockis, 25 anos, aliás Nattan Leckrone, preferiu deixar as formalidades de lado ao juntar os trapinhos virtuais com a loira avatar CJ Kasei, que nunca viu no mundo real: "Nós nos conhecemos no SL, eu me interessei e resolvemos casar. Embora ela também seja de São Paulo, nunca nos encontramos". No mundo de verdade, nenhum dos dois está disponível. "Eu estou enrolado; ela, acho que namora", diz Zabrockis, que está procurando emprego e tem tempo para cinco horas diárias de Second Life, boa parte delas no seu sobrado de três andares, decorado com um incrível sofá de estampa selvagem (meio onça, meio zebra). O terreno da casa virtual custou 512 lindens. O grosso do faturamento em dólares de verdade do Linden Lab, empresa que Philip Rosedale criou para controlar o ambiente virtual, vem justamente da venda de terrenos virtuais, além da cobrança de uma espécie de imposto mensal por eles, de uma pequena "taxa" sobre as operações de "câmbio" e da mensalidade paga pelos usuários (residentes, no idioma SL) que quiserem ter alguns privilégios. Todos os valores são irrisórios, mas, em se tratando de mais de 5 milhões de interessados, a renda é boa. "Ainda não fiquei rico. Mas o Linden Lab já é lucrativo", disse Rosedale a VEJA.

Lailson Santos
VIDA GANHA
Zabrockis: solteiro e procurando emprego na vida número 1; casado, artista e dono de mansão na vida número 2, a do avatar Nattan Leckrone


Casas, clubes, empresas, festas, a Nasa, a Torre Eiffel, Dublin, Amsterdã e o bairro dos Jardins, em São Paulo, tudo no Second Life fica em ilhas, a unidade territorial básica de lá, e há ilhas para todos os gostos. Algumas são "livres"; outras, de conteúdo "adulto", com oferta e demanda de todo um cardápio de desejos reais. Na Nasa pode-se voar de foguete até uma estação espacial, conhecer planetas e, claro, comprar badulaques na lojinha. Algumas universidades, como Harvard e a Universidade de Nova York, já instalaram salas de aula no SL. Em Almaden, um das duas dezenas de territórios da IBM, é possível comandar e admirar um pôr-do-sol. A IBM, compreensivelmente, é uma das empresas que mais exploram o mundo paralelo criado pelo Linden Lab. Uma de suas ilhas aloja uma réplica do centro de computação de alto desempenho que a empresa mantém em Boulder, Colorado. Lá, avatares de funcionários de verdade controlam e interferem, de verdade, no desempenho do ambiente de verdade.

A ilha paulistana tem lojas que se espalham pela Rua Oscar Freire, prédios residenciais na Rua Estados Unidos e até uma sede do PSDB na Avenida Rebouças. Na ilha Berrini, especializada em negócios, montou banca o advogado Renato Opice Blum, 37 anos, na caprichada figura do avatar Opiceblum Chevalier. "Vejo o Second Life como uma extensão do nosso site, com a vantagem de ter interação com pessoas de verdade", diz ele, que enxerga o futuro virtual coalhado de rentáveis processos. "A interação com outros avatares pode gerar casos de injúria, calúnia ou difamação. Também pode acontecer o uso indevido de uma marca. E muitos contratos de prestação de serviço são firmados lá dentro", anima-se Blum. Enquanto a São Paulo virtual é toda certinha, na Amsterdã do Second Life circula uma numerosa população de prostitutas e traficantes. No Hotel Amsterdam, um quarto custa de 20 a 40 lindens e o programa, 300 lindens. É possível também requebrar o avatar no Virtual Festival, uma espécie de rave na praia, comandada por DJs.

Lailson Santos
PACOTE COMPLETO
Roberta (ou Marina Raul) com Juliana, companheira nos dois mundos: aqui, a união é informal; lá, foi registrada em cartório, mediante pagamento de taxa, e agora planejam ter filhos

As lojas pipocam por todo lado, com a vantagem de não terem fila na entrada nem vendedoras insistentes – é comum ser o único cliente à vista, e, para comprar, bastam alguns cliques do mouse. Qualquer um com habilidade mínima pode construir os próprios objetos e vender. O designer paulistano Rodolfo Alves, 23 anos, mantém seu avatar, Rodolfo Parker, ocupadíssimo. "Na minha loja, tenho uma linha de produtos brasileiros, shapes (formatos de corpo) para avatar, tatuagem, olhos, chinelo, chapéu temático, brinco, camiseta. Faturo uns 10 000 lindens por mês", enumera. "Tem gente que leva na brincadeira. Hoje, trabalho com isso das 8 às 18 horas", diz Rodolfo. Seco Vella, avatar do assistente técnico Alex Comerlato, 21 anos, também comercia, mas na informalidade: é camelô de jóias, que compra e depois replica. "Quero ficar rico", avisa.

No afã de aproveitar a pujante economia, mesmo sem saber ao certo como, empresas de verdade fincam seu logo em terras virtuais. "O Second Life é mais um dos nossos pontos de contato com o consumidor, mas ainda é muito embrionário. Os próprios usuários ainda não conhecem direito as ferramentas", analisa Clarice Tavares, gerente de planejamento da agência Neogama/BBH. Assim, cada um explora o novo ambiente a seu modo. A Adidas vende tênis para avatares (50 linden dólares cada), a Volkswagen, carros (são quatro modelos na concessionária virtual, que custam de 100 a 150 linden dólares), o Bradesco anuncia em relógios de rua, o Credicard Citi tem um posto de atendimento e a Petrobras promoveu uma palestra lá. "O Second Life é ótimo para divulgação. Por um custo baixíssimo, é possível atingir 2.000 pessoas que se relacionam, via entretenimento, com a sua marca", diz Alexandre Cardoso, diretor de marketing do portal Terra, que promoveu simultaneamente um luau em praia brasileira real e virtual em janeiro. A construtora Rossi está lançando no SL um prédio espelhado em um de seus lançamentos em São Paulo. Ao comprar o imóvel de verdade, que só ficará pronto em 2010, o cliente ganha um apartamento virtual, onde seu avatar pode visitar as opções de planta, brincar de mobiliar a casa e – para o bem ou para o mal – interagir com futuros vizinhos.

Fotos Lailson Santos e Fabiano Accorsi
O EMPRESÁRIO
Toledo, especialista em montar o aparato tecnológico para festas patrocinadas no Second Life: dos três funcionários que contratou, só conhece um em pessoa

Por ser incipiente em quase tudo, pouquíssima gente ganha dinheiro de verdade no Second Life. A notória exceção, que já foi até capa da revista Business Week, é a chinesa radicada na Alemanha Ailin Graef, avatar Anshe Chung, que em dois anos e meio amealhou 1 milhão de dólares de verdade construindo e vendendo imóveis que só existem de mentirinha. Muito mais modestamente, o programador Roberto Toledo, de São Paulo, também ganha a vida com o Second Life: já produziu (tradução: montou o aparato tecnológico) diversas festas patrocinadas por empresas, pelas quais recebe em reais.

Plenamente ciente da paixão dos brasileiros pelas possibilidades de comunicação pela rede, Maurílio Shintati, executivo-chefe da Kaizen Games, empresa de jogos de computador, está criando um Second Life brasileiro, voltado para o público local – onde haverá, inclusive, uma redação e uma edição virtuais da revista Vip, da Editora Abril. "Abordamos os funcionários da Linden Lab dentro do Second Life. Como eles não tinham interesse no mercado brasileiro, conseguimos autorização para lançar o projeto", conta Shintati. Além de "falar" português, os usuários poderão fazer pagamentos com cartão de crédito nacional e até boleto bancário. "Esperamos chegar a 2 milhões de usuários em um ano", torce Shintati, preparando-se para o milagre da multiplicação dos avatares.




Fotos divulgação

Arquivo do blog