Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, abril 11, 2007

O milésimo gol- ROBERTO DaMATTA



Artigo
O Globo
11/4/2007

Eu entendo bem o nervosismo do Romário ao ver adiada a oportunidade de "furar" o seu milésimo e glorioso gol.

Meu entendimento tem, entretanto, enorme camada de inveja. Pois o gol 1.000 do Romário me fez imaginar como seria o meu, o gol que fecharia a minha carreira com a inflação de zeros que o Brasil tanto admira.

- Mas como um milésimo gol - diz-me uma desagradável voz -, se você não chegou a ser nenhum goleador? Muito pelo contrario, você sempre foi um perna-de-pau, incapaz - apesar do nome - de "matar" qualquer partida!

Será? - indago a mim mesmo, enquanto uma outra voz - a que viu muitos filmes de Frank Capra - me reafirma que não existem pessoas sem gols e que todos estão sempre prestes a marcar o seu milésimo gol, tal como o nosso fabuloso Romário.

- Somos todos campeões e grandes goleadores! - repete a boa voz. O problema é que não enxergamos os nossos gols. Ou, pior que isso, fazemos muitos gols mas, não os tendo comemorado devidamente, esquecemos de quantos pontos, a despeito de todas as caneladas, fomos capazes de marcar. Sobreviver neste mundo cheio de sofrimento é ser um craque. Enterrar amigos e parentes, ter a coragem de estar com a morte e não acima dela, é ser um grande goleador. Mais admirável ainda é enfrentar tudo isso na pobreza, mas em contato próximo com pessoas ricas que "têm tudo" porque têm muito mais que você.

As vozes não paravam e eu - juro, amigos leitores - lutava para voltar à minha trivial, mas segura, "sociologia da sociedade brasileira", escrevendo uma crônica de fundo moral, mas, qual!, o meu lado mediúnico simplesmente não deixava.

De repente, manifestou-se uma outra voz.

- Garoto - disse, sem o menor respeito pela minha idade e posição profissional -, você fez o seu milésimo gol naquela conferência internacional em Miami, quando argumentou contra a arrogância brilhante do professor Contreras e, ainda, tripudiou em cima do sociólogo francês de narizinho empinado e boquinha redonda, que tentava explicar o futebol pela guerra e foi fulminado com a sua observação: -- Mas então, Jean Claude Patrick, temos que entender a guerra. Você apenas está substituindo uma coisa pela outra. - Vai dizer - arrematou a voz - que aquilo não foi um gol mil?

Cala-te, espírito indiscreto! Eu quero simplesmente dizer que ninguém pode jogar só para o gol. Essa é obviamente a fonte da angústia do Romário. Jogar somente pensando no gol é pôr o carro adiante dos bois. No fundo, é um desacato aos processos sociais, uma inversão da lógica dos jogos. O gol decorre da partida, não o contrário. Do mesmo modo, o tal espetáculo do crescimento que representaria o milésimo gol do Brasil não chega com fórmulas políticas feitas, com discursos demagógicos, ou com boas intenções. Vem, isso sim, com ações permeadas de trabalho e coragem. Com muita coragem para pôr a imaginação gerencial para trabalhar, driblando a formidável burocracia administrativa, mental e social; as leis que sustentam privilégios corporativos e de classe, e um estilo de fazer política marcado pela insinceridade - pela concepção segundo a qual, no campo da "política", os fins justificam os meios. Esse gol chega quando se luta contra a rotina dos mais variados nepotismos - dos de família aos ideológicos e partidários que, como mostra conclusivamente este governo, não estão nem oposição e nem em luta, como rezava a velha cartilha que o Brasil tem sempre o prazer de desmanchar...

- Seriam essas idéias o seu milésimo gol? - pergunta-me um outro poltergeist dando piparotes numa estante. Enquanto uma entidade situada à esquerda da falange que me assalta diz com voz grave e pausada:

- Falar é fácil... pergunte a quem governa. Coloque-se no lugar dos Romários que chegaram lá e sabem que não é fácil marcar mil gols ou mudar um país, sobretudo quando existem tantos goleiros, traves, juízes comprados e defensores dispostos a fazer tudo para atrapalhar. Isso para não falar da bola que, como você bem diz no seu livro mais recente, corre mais que os homens...

- Mas com esses argumentos - eu grito, lutando pela minha consciência - não se muda nada!

- Ou se muda tudo - replica a voz. - Pois o argumento do outro dentro de você é sempre a voz da sabedoria e da inspiração compassiva; é a fala da compreensão mais profunda que conduz à fraternidade. O futebol é interessante - continua o sinistro -, porque os jogadores sabem exatamente o que se passa no interior uns dos outros. Essa compreensão profunda dos motivos alheios torna o jogo uma atividade transparente e - eis a surpresa para vocês brasileiros - sincera! O mito do juiz ladrão é conhecido; o do jogador desonesto surpreendentemente inexiste num país no qual a esfera pública é atravessada por desonestidade e o jogo político, feito com o crédito falso das mais diversas espertezas.

Seria esse o nosso milésimo gol? Esse jogar, sabendo que os adversários não têm um plano B, não confundem fins e meios, atuam emoldurados pelo campo da ética e querem apenas que o vencedor seja mesmo o Brasil?

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

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