Artigo |
O Globo |
11/4/2007 |
Eu entendo bem o nervosismo do Romário ao ver adiada a oportunidade de "furar" o seu milésimo e glorioso gol. Meu entendimento tem, entretanto, enorme camada de inveja. Pois o gol 1.000 do Romário me fez imaginar como seria o meu, o gol que fecharia a minha carreira com a inflação de zeros que o Brasil tanto admira. - Mas como um milésimo gol - diz-me uma desagradável voz -, se você não chegou a ser nenhum goleador? Muito pelo contrario, você sempre foi um perna-de-pau, incapaz - apesar do nome - de "matar" qualquer partida! Será? - indago a mim mesmo, enquanto uma outra voz - a que viu muitos filmes de Frank Capra - me reafirma que não existem pessoas sem gols e que todos estão sempre prestes a marcar o seu milésimo gol, tal como o nosso fabuloso Romário. - Somos todos campeões e grandes goleadores! - repete a boa voz. O problema é que não enxergamos os nossos gols. Ou, pior que isso, fazemos muitos gols mas, não os tendo comemorado devidamente, esquecemos de quantos pontos, a despeito de todas as caneladas, fomos capazes de marcar. Sobreviver neste mundo cheio de sofrimento é ser um craque. Enterrar amigos e parentes, ter a coragem de estar com a morte e não acima dela, é ser um grande goleador. Mais admirável ainda é enfrentar tudo isso na pobreza, mas em contato próximo com pessoas ricas que "têm tudo" porque têm muito mais que você. As vozes não paravam e eu - juro, amigos leitores - lutava para voltar à minha trivial, mas segura, "sociologia da sociedade brasileira", escrevendo uma crônica de fundo moral, mas, qual!, o meu lado mediúnico simplesmente não deixava. De repente, manifestou-se uma outra voz. - Garoto - disse, sem o menor respeito pela minha idade e posição profissional -, você fez o seu milésimo gol naquela conferência internacional em Miami, quando argumentou contra a arrogância brilhante do professor Contreras e, ainda, tripudiou em cima do sociólogo francês de narizinho empinado e boquinha redonda, que tentava explicar o futebol pela guerra e foi fulminado com a sua observação: -- Mas então, Jean Claude Patrick, temos que entender a guerra. Você apenas está substituindo uma coisa pela outra. - Vai dizer - arrematou a voz - que aquilo não foi um gol mil? Cala-te, espírito indiscreto! Eu quero simplesmente dizer que ninguém pode jogar só para o gol. Essa é obviamente a fonte da angústia do Romário. Jogar somente pensando no gol é pôr o carro adiante dos bois. No fundo, é um desacato aos processos sociais, uma inversão da lógica dos jogos. O gol decorre da partida, não o contrário. Do mesmo modo, o tal espetáculo do crescimento que representaria o milésimo gol do Brasil não chega com fórmulas políticas feitas, com discursos demagógicos, ou com boas intenções. Vem, isso sim, com ações permeadas de trabalho e coragem. Com muita coragem para pôr a imaginação gerencial para trabalhar, driblando a formidável burocracia administrativa, mental e social; as leis que sustentam privilégios corporativos e de classe, e um estilo de fazer política marcado pela insinceridade - pela concepção segundo a qual, no campo da "política", os fins justificam os meios. Esse gol chega quando se luta contra a rotina dos mais variados nepotismos - dos de família aos ideológicos e partidários que, como mostra conclusivamente este governo, não estão nem oposição e nem em luta, como rezava a velha cartilha que o Brasil tem sempre o prazer de desmanchar... - Seriam essas idéias o seu milésimo gol? - pergunta-me um outro poltergeist dando piparotes numa estante. Enquanto uma entidade situada à esquerda da falange que me assalta diz com voz grave e pausada: - Falar é fácil... pergunte a quem governa. Coloque-se no lugar dos Romários que chegaram lá e sabem que não é fácil marcar mil gols ou mudar um país, sobretudo quando existem tantos goleiros, traves, juízes comprados e defensores dispostos a fazer tudo para atrapalhar. Isso para não falar da bola que, como você bem diz no seu livro mais recente, corre mais que os homens... - Mas com esses argumentos - eu grito, lutando pela minha consciência - não se muda nada! - Ou se muda tudo - replica a voz. - Pois o argumento do outro dentro de você é sempre a voz da sabedoria e da inspiração compassiva; é a fala da compreensão mais profunda que conduz à fraternidade. O futebol é interessante - continua o sinistro -, porque os jogadores sabem exatamente o que se passa no interior uns dos outros. Essa compreensão profunda dos motivos alheios torna o jogo uma atividade transparente e - eis a surpresa para vocês brasileiros - sincera! O mito do juiz ladrão é conhecido; o do jogador desonesto surpreendentemente inexiste num país no qual a esfera pública é atravessada por desonestidade e o jogo político, feito com o crédito falso das mais diversas espertezas. Seria esse o nosso milésimo gol? Esse jogar, sabendo que os adversários não têm um plano B, não confundem fins e meios, atuam emoldurados pelo campo da ética e querem apenas que o vencedor seja mesmo o Brasil? |
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
quarta-feira, abril 11, 2007
O milésimo gol- ROBERTO DaMATTA
Arquivo do blog
-
▼
2007
(5161)
-
▼
abril
(465)
- Colunas
- Opinião
- REINALDO AZEVEDO MST -Não, eles não existem. Mesmo!
- CELIO BORJA Surto de intolerância
- DANUZA LEÃO Viva o futuro
- JANIO DE FREITAS Rios de dinheiro
- Miriam Leitão O ponto central
- DANIEL PIZA
- Escorregadas de Mantega
- Estados devem ser parte do alívio fiscal?
- O multilateralismo está superado?
- O êxito da agricultura brasileira
- Névoa moral sobre o Judiciário
- FERREIRA GULLAR
- ELIANE CANTANHÊDE
- CLÓVIS ROSSI
- JOÃO UBALDO RIBEIRO Um ministério para Carlinhos
- DORA KRAMER Defender o indefensável
- AUGUSTO NUNES Sete Dias
- REINALDO AZEVEDO Autorias 1 – Quem escreveu o quê
- Miriam Leitão À moda da casa
- FERNANDO GABEIRA Um bagre no colo
- RUY CASTRO Emoções assassinas
- FERNANDO RODRIGUES Antiéticos
- CLÓVIS ROSSI O euro e os oráculos
- DORA KRAMER Ajoelhou, tem que rezar
- Descontrole e segurança
- Deboche à Nação
- VEJA Carta ao leitor
- VEJA Entrevista: Valentim Gentil Filho
- Claudio de Moura Castro
- MILLÔR
- André Petry
- Roberto Pompeu de Toledo
- Diogo Mainardi
- PCC Mesmo preso, Marcola continua mandando
- A complicada situação do juiz Medina
- Por que os tucanos não fazem oposição
- Aécio e seu novo choque de gestão
- O Carrefour compra o Atacadão
- Rússia Morre Boris Ieltsin
- Itália A fusão do partido católico com o socialista
- França Diminui o fosso entre esquerda e direita
- O irmão do planeta Terra
- O pacote de Lula para salvar a educação
- O melhor município do país
- A conceitual cozinha espanhola
- Morales quer legalizar chibatadas
- Comprimido antibarriga liberado no Brasil
- Quimioterapia para idosos
- Educação As dez escolas campeãs do Distrito Federal
- A Toyota é a maior montadora do mundo
- Um cão para chamar de seu
- Um bicho diferente
- Os salários dos atores nas séries americanas
- Polêmica religiosa no seriado A Diarista
- Os problemas de visão dos impressionistas
- O herói que não perde a força
- Livros O lado esquecido de Carlos Lacerda
- Livros Fantasia póstuma
- A "judicialização" da mídia, o patíbulo e o pescoço
- Opinião
- Colunas
- FHC, PSDB, princípios e unidade
- Franklin confessa no Roda Viva
- Opinião
- Colunas
- Bingão legal
- Um governo de adversários
- Mangabeira da Alopra
- Opinião
- Colunas
- LULA É RECORDISTA EM PUBLICIDADE
- AUGUSTO NUNES
- Goebbels em cronologia
- Franklin no Roda Viva
- Opinião
- Colunas
- O imperador do lápis vermelho
- Eu digo "NÃO"
- AUGUSTO DE FRANCO E A LUZ NO FIM DO TÚNEL
- UM ENGOV, POR FAVOR!
- Defesa, sim; impunidade, não
- LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
- RUY CASTROVampiros de almas
- FERNANDO RODRIGUES Judiciário, o Poder mais atrasado
- Um samba para a Justiça
- Serra-Lula: a verdade
- DANUZA LEÃO Nosso pobre Rio de Janeiro
- Caso Mainard -Kenedy Alencar
- A decadentização da língua JOÃO UBALDO RIBEIRO
- Miriam Leitão A segunda chance
- FERREIRA GULLAR Risco de vida
- ELIANE CANTANHÊDE Questão de afinidade
- CLÓVIS ROSSI Conservadores do quê?
- DANIEL PIZA
- China diversifica e olha para o Brasil
- Banco do Sul: uma idéia sem pé nem cabeça por Mail...
- CELSO MING Nova costura
- DORA KRAMER Interlocutores sem causas
-
▼
abril
(465)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA