Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 08, 2007

O corpo vive, a alma vegeta Gaudêncio Torquato



A quebra dos princípios basilares que regem as Forças Armadas em todos os quadrantes mundiais - a disciplina e a hierarquia -, determinada por decisão intempestiva do presidente Luiz Inácio, ao contrariar decisão do ministro da Aeronáutica de mandar prender os sargentos controladores de vôo, que realizaram a primeira greve militar, após os sombrios idos de 64, vem se somar ao “vácuo civilizatório” que se expande no País. O posterior recuo de Lula, ao ordenar ao comando da Aeronáutica o enquadramento dos grevistas, não alivia o sentimento generalizado de que o erro cometido é apenas mais um traço da precária visão que ele conserva a respeito de conceitos como ordenamento jurídico, autoridade e harmonia entre Poderes. A sensação é a de um mandatário profundamente repartido entre o sonho de emergir, de um lado, como um grande construtor da História brasileira, e, de outro, como o artífice exemplar de uma República sindicalista encravada nos trópicos. Não é de admirar que, no Brasil, o desrespeito às instituições, a partir de cima, faça desmoronar a base de valores e estiole a força das normas sociais. Extrai-se daí a percepção de que o País exibe um avantajado corpo econômico, tatuado com uma pequena taxa de risco, mas esconde uma alma em prantos, que tateia entre os intermináveis corredores da impunidade.

Lula abre o segundo mandato com a foto da maior equipe ministerial e com as cenas mais chocantes que já se flagrou nos aeroportos do País, de velhos, jovens e crianças sofrendo longa espera para embarcar. É o retrato apurado da ineficiência do Estado para lidar com serviços essenciais. Não se pense que o descontrole no sistema aéreo é exceção. Causa maior impacto porque a indignação da massa se transforma em comício televisivo contra os atores de uma peça mal ensaiada. Mas há tempos um vácuo de gigantescas proporções se expande no meio da sociedade, decorrente da incapacidade do Estado de suprir as necessidades de diferentes grupamentos. Demandas reprimidas, somadas às promessas não cumpridas, originam uma crise de insegurança, cuja conseqüência se projeta sobre o que a Nação possui de mais nobre, o sistema de crenças. A alavanca da desesperança é, sobretudo, a tibieza dos governantes, por onde escapam a permissividade na aplicação das leis e o uso de meios não republicanos para tecer os fios de tênue governabilidade.

Para sermos justos, a moldura de insegurança é global. Ganha corpo, a taxas geométricas, o paradigma do “puro caos”. Samuel Huntington aponta a montanha de destroços: a quebra da lei e da ordem, Estados fracassados, ondas de criminalidade crescentes, máfias transnacionais, cartéis de drogas, violência étnica e religiosa, debilitação da família e declínio na solidariedade social. Sob esse panorama, fenecem as forças morais. E, quando costumes e leis perdem o valor, a alternativa é a bagunça. Olhemos, agora, para o Brasil. A ruptura no império da ordem assume proporções fantásticas. Alguém pode argumentar que somos bem diferentes do Iraque e dos conflitos do Oriente Médio e estamos bem distantes de tsunamis e terremotos que afligem populações do sudeste asiático. Peca-se por excesso de confiança ou por ausência de informação. Morrem, no Brasil, 56 mil pessoas por ano vítimas de arma de fogo. Uma leva de crianças sucumbe de inanição, desnutrição e doenças tropicais. E os dados mostram mais de 50 milhões de brasileiros vivendo sob um apartheid social. Quando se pensava que a dengue fora sufocada por ações preventivas, eis que ressuscita e pega quase 200 mil brasileiros na presente temporada. As nossas mortes, por serem contabilizadas a conta-gotas, não geram abalos. Governantes e políticos são denunciados e incriminados. Pouca coisa acontece e os eleitores acabam votando neles novamente.

A situação de desorganização conduz à anomia, ou seja, à quebra do contrato social, entendido como o conjunto de normas aceitas e mantidas por meio de sanções impostas. Entre nós, ao contrário de países desenvolvidos em que tudo é permitido, salvo o que é proibido, a regra parece ser esta: tudo é permitido, mesmo o que é proibido. Entramos por inteiro na modernidade. O efeito cascata do consumismo ataca tudo e todos. Nosso sistema de valores perdeu as referências. O irracional abocanha o território da racionalidade. As agências de controle social vivem séria crise. Vejamos. Os traços de união da família se dissolvem na desenfreada luta pela sobrevivência e pela incorporação de novos adereços à ordem cultural herdada de nossos avós. A escola mudou os métodos. A aprendizagem para enfrentar a realidade cotidiana prevalece sobre a educação assentada em valores permanentes para embasar uma vida condigna. A igreja se reparte em miríade de seitas e, por falta de eixos sólidos, fiéis confusos mergulham nas águas místicas e esotéricas, fruindo nos templos rituais e liturgias alucinógenas para alcançar o nirvana. A justiça dos Tribunais se banha não raramente em fontes poluentes do favorecimento. E, de dentro das prisões, bandidos comandam a criminalidade. Só falta mesmo ditarem um código ético. (Será que já não há?)

Volta-se, aqui, ao princípio da ordem. Que adianta um país forte, sob o domínio econômico, mas fraco, sob o império da autoridade? Ele reflete a imagem de vidros partidos. Quando as vidraças das janelas são estilhaçadas, começam os furtos, as agressões, os ilícitos. Vidros quebrados espelham um país sem leis. Os campos dos direitos e deveres se estreitam, quando se rompe a cadeia da disciplina. A incivilidade toma conta do espaço desordenado. A insegurança difusa acolhe o medo coletivo. A Nação perde o conceito de Pátria espiritual, valorativa, sentimental. Rompem-se vínculos com o chão cívico. A força telúrica que liga as pessoas à terra amada se rarefaz. A barbárie toma conta. O corpo econômico do País vive, a alma espiritual da Nação vegeta. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.

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