“Nós, os brasileiros, estamos firmemente persuadidos de que sobreviveremos ao fim do mundo que acontecerá um dia. Fundaremos então um reino de justiça, pois somos o único povo da terra que pratica diariamente a lógica do ilógico, como prova nossa política. Esta maneira de pensar é conseqüência da ‘brasilidade’.” A sofrida ironia é do grande Guimarães Rosa. O tema é recorrente entre nós. A obsessão pelo futuro e a fé no que virá nos desculpam pela relativa aversão aos miúdos labores do cotidiano: “Somos notoriamente avessos às atividades morosas e monótonas”, escreveu Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil.
Outro profundo conhecedor da “brasilidade” (Roberto DaMatta) nos brindou na semana passada com excelente artigo sobre o tema: “No vasto, triste e sábio anedotário político nacional, o amanhã tem um lugar todo especial. O resultado é isso que se vê: a incapacidade de gerenciar o mundo diário que vai se deteriorando a olhos vistos. Temos formidáveis promessas de futuro, mas um presente regado a descaso e a abandono. Os governantes, em todos os níveis, preferem governar para o futuro, freqüentemente deles mesmos, do que para o cotidiano dos seus eleitores. O futuro, sempre risonho, aponta para uma felicidade desconectada do presente. Ora, a cobrança da conexão entre presente e futuro se chama responsabilidade - essa palavra feia para quem o poder brasileiro dá, entre outras coisas, o dom da onipotência e o dom de ficar somente na promessa... Assim, enquanto vamos falando da cura pelo futuro, somos derrotados pelas rotinas que recusamos gerenciar... o certo é que temos um viés: substituímos o que é pelo que deveria ser.”
Há algo do Brasil profundo nas observações acima analisados com brilhantismo por José Murilo de Carvalho em ensaio sobre nossos três grandes mitos nacionais, comparando-os com os equivalentes norte-americanos e mostrando que no Brasil os mitos fundadores não parecem ter desempenhado o papel de uma poderosa força organizadora, como nos EUA.
O drama do País, conclui José Murilo, reside neste contraste entre sonho e realidade, aspirações não acompanhadas de ações adequadas para fazê-las realidade. As pessoas não confiam em seus políticos e em suas instituições, mas fazem pouco para tornar os primeiros mais responsáveis e para mudar para melhor as instituições. Toda a energia e a imensa criatividade de que são capazes é dirigida ao domínio privado, seja para se dedicar a seus interesses, seja simplesmente para sobreviver. O social é desconectado do político. Daí o sentimento de frustração, de desapontamento, e a persistência de uma vaga esperança de que um messias possa eventualmente trazer a solução para todos os problemas.
Não é por acaso que pelo menos quatro dos seis presidentes civis eleitos diretamente pelo voto popular desde 1950 possuíam traços messiânicos: Vargas, Quadros, Collor e Lula. Este último, após mais de cinco meses de sua vitória nas urnas, conseguiu, afinal, completar a designação de seus nada menos que 35 ministros e com eles posar para a foto oficial que simboliza o início de seu segundo mandato com cerca de três meses de atraso.
O longo e tortuoso processo de constituição desse Ministério se deveu, fundamentalmente, à preocupação em assegurar uma apropriada “base de sustentação” no Congresso Nacional, o que parece ter sido alcançado - a um custo político e econômico que ainda a ninguém é dado avaliar.
Há, contudo, algumas indicações que parecem ter base em fatos, opiniões e biografias conhecidas. Por exemplo, dos três processos de reforma, cuja continuidade o Brasil necessita para seu crescimento futuro, duas, a trabalhista e a previdenciária, dadas as escolhas dos ministros, devem ficar para as calendas. Do novo ministro do Trabalho nada se deve esperar em termos de flexibilização da legislação trabalhista. Do ex-ministro do Trabalho, agora na Previdência, é muito pouco provável que venha algo na direção de um avanço na imprescindível reforma do sistema. A constituição de amplos Conselhos Nacionais para debater estes assuntos constitui uma forma de o Executivo transferir responsabilidades sobre a condução dos processos de mudança - e postergá-los para depois de 2010.
É sintomático que, em seu discurso de posse perante o Congresso Nacional, o presidente Lula não tenha feito nenhuma menção às reformas trabalhista e previdenciária. E sobre Reforma Tributária o que teve a dizer foi o seguinte: “Vamos consolidar, em harmonia com esta Casa e com os Estados, a legislação unificada do ICMS, simplificando as normas, reduzindo alíquotas, com previsão de implantar um único imposto de valor agregado a ser distribuído automaticamente para União, Estados e municípios.” Se o Executivo federal, com o presidente à frente liderando o processo, não se empenhar nesta empreitada, nada vai acontecer nos próximos três anos e três meses que restam até a atual Legislatura encerrar, na prática, as suas atividades, em junho de 2010.
Da mesma forma, que dizer da seguinte série de promessas - para um futuro que um dia virá -, todas contidas num singelo parágrafo do mesmo discurso: “Vamos realinhar prioridades; otimizar recursos; aumentar fontes de financiamento; expandir projetos de infra-estrutura; aperfeiçoar o marco jurídico e ampliar o diálogo sistemático com as instituições de controle e fiscalização para garantir a transparência dos projetos e agilizar sua execução?”
“Brasilidades” diriam Rosa (talvez pensando em Zé Bebelo), DaMatta, Buarque de Holanda, José Murilo e tantos outros de nossos estudiosos de nós mesmos, que expressam uma sabedoria que, também ela, é parte de nossa brasilidade: uma esperança não insensata que talvez possa ser renovada em momentos de travessia, ressurreição e festa. Como nesta Páscoa, que desejo que possa ser feliz para todos.
Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC. E-mail: malan@estadao.com.br