Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 08, 2007

Novo governo, velhos mitos Pedro S. Malan



“Nós, os brasileiros, estamos firmemente persuadidos de que sobreviveremos ao fim do mundo que acontecerá um dia. Fundaremos então um reino de justiça, pois somos o único povo da terra que pratica diariamente a lógica do ilógico, como prova nossa política. Esta maneira de pensar é conseqüência da ‘brasilidade’.” A sofrida ironia é do grande Guimarães Rosa. O tema é recorrente entre nós. A obsessão pelo futuro e a fé no que virá nos desculpam pela relativa aversão aos miúdos labores do cotidiano: “Somos notoriamente avessos às atividades morosas e monótonas”, escreveu Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil.

Outro profundo conhecedor da “brasilidade” (Roberto DaMatta) nos brindou na semana passada com excelente artigo sobre o tema: “No vasto, triste e sábio anedotário político nacional, o amanhã tem um lugar todo especial. O resultado é isso que se vê: a incapacidade de gerenciar o mundo diário que vai se deteriorando a olhos vistos. Temos formidáveis promessas de futuro, mas um presente regado a descaso e a abandono. Os governantes, em todos os níveis, preferem governar para o futuro, freqüentemente deles mesmos, do que para o cotidiano dos seus eleitores. O futuro, sempre risonho, aponta para uma felicidade desconectada do presente. Ora, a cobrança da conexão entre presente e futuro se chama responsabilidade - essa palavra feia para quem o poder brasileiro dá, entre outras coisas, o dom da onipotência e o dom de ficar somente na promessa... Assim, enquanto vamos falando da cura pelo futuro, somos derrotados pelas rotinas que recusamos gerenciar... o certo é que temos um viés: substituímos o que é pelo que deveria ser.”

Há algo do Brasil profundo nas observações acima analisados com brilhantismo por José Murilo de Carvalho em ensaio sobre nossos três grandes mitos nacionais, comparando-os com os equivalentes norte-americanos e mostrando que no Brasil os mitos fundadores não parecem ter desempenhado o papel de uma poderosa força organizadora, como nos EUA.

O drama do País, conclui José Murilo, reside neste contraste entre sonho e realidade, aspirações não acompanhadas de ações adequadas para fazê-las realidade. As pessoas não confiam em seus políticos e em suas instituições, mas fazem pouco para tornar os primeiros mais responsáveis e para mudar para melhor as instituições. Toda a energia e a imensa criatividade de que são capazes é dirigida ao domínio privado, seja para se dedicar a seus interesses, seja simplesmente para sobreviver. O social é desconectado do político. Daí o sentimento de frustração, de desapontamento, e a persistência de uma vaga esperança de que um messias possa eventualmente trazer a solução para todos os problemas.

Não é por acaso que pelo menos quatro dos seis presidentes civis eleitos diretamente pelo voto popular desde 1950 possuíam traços messiânicos: Vargas, Quadros, Collor e Lula. Este último, após mais de cinco meses de sua vitória nas urnas, conseguiu, afinal, completar a designação de seus nada menos que 35 ministros e com eles posar para a foto oficial que simboliza o início de seu segundo mandato com cerca de três meses de atraso.

O longo e tortuoso processo de constituição desse Ministério se deveu, fundamentalmente, à preocupação em assegurar uma apropriada “base de sustentação” no Congresso Nacional, o que parece ter sido alcançado - a um custo político e econômico que ainda a ninguém é dado avaliar.

Há, contudo, algumas indicações que parecem ter base em fatos, opiniões e biografias conhecidas. Por exemplo, dos três processos de reforma, cuja continuidade o Brasil necessita para seu crescimento futuro, duas, a trabalhista e a previdenciária, dadas as escolhas dos ministros, devem ficar para as calendas. Do novo ministro do Trabalho nada se deve esperar em termos de flexibilização da legislação trabalhista. Do ex-ministro do Trabalho, agora na Previdência, é muito pouco provável que venha algo na direção de um avanço na imprescindível reforma do sistema. A constituição de amplos Conselhos Nacionais para debater estes assuntos constitui uma forma de o Executivo transferir responsabilidades sobre a condução dos processos de mudança - e postergá-los para depois de 2010.

É sintomático que, em seu discurso de posse perante o Congresso Nacional, o presidente Lula não tenha feito nenhuma menção às reformas trabalhista e previdenciária. E sobre Reforma Tributária o que teve a dizer foi o seguinte: “Vamos consolidar, em harmonia com esta Casa e com os Estados, a legislação unificada do ICMS, simplificando as normas, reduzindo alíquotas, com previsão de implantar um único imposto de valor agregado a ser distribuído automaticamente para União, Estados e municípios.” Se o Executivo federal, com o presidente à frente liderando o processo, não se empenhar nesta empreitada, nada vai acontecer nos próximos três anos e três meses que restam até a atual Legislatura encerrar, na prática, as suas atividades, em junho de 2010.

Da mesma forma, que dizer da seguinte série de promessas - para um futuro que um dia virá -, todas contidas num singelo parágrafo do mesmo discurso: “Vamos realinhar prioridades; otimizar recursos; aumentar fontes de financiamento; expandir projetos de infra-estrutura; aperfeiçoar o marco jurídico e ampliar o diálogo sistemático com as instituições de controle e fiscalização para garantir a transparência dos projetos e agilizar sua execução?”

“Brasilidades” diriam Rosa (talvez pensando em Zé Bebelo), DaMatta, Buarque de Holanda, José Murilo e tantos outros de nossos estudiosos de nós mesmos, que expressam uma sabedoria que, também ela, é parte de nossa brasilidade: uma esperança não insensata que talvez possa ser renovada em momentos de travessia, ressurreição e festa. Como nesta Páscoa, que desejo que possa ser feliz para todos.

Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC. E-mail: malan@estadao.com.br

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