artigo- |
O Estado de S. Paulo |
10/4/2007 |
“Começo a ter vergonha de ser brasileira.” Assim a fazendeira Maria Lúcia finaliza sua dramática mensagem, inconformada com a desapropriação de sua propriedade rural. Não é para menos. Perdeu o direito à terra querida por ter preservado um pedaço da floresta atlântica. A virtude se transforma em pesadelo.Localizada no município de Selvíria (MS), a fazenda foi vistoriada em abril de 2006 pelo Incra. Sua boa condição produtiva resultou num grau de eficiência na exploração, apelidado GEE, de 135%, superior ao índice exigido, de 100%. É simples entender. O governo estipula índices de produtividade mínimos para serem alcançados pelos produtores rurais. Se estiverem abaixo deles, são classificados como ineficientes, caindo na malha da reforma. Não era o caso.Existe, porém, outro cálculo. Trata-se do grau de utilização da terra, chamado GUT. Nessa conta, os técnicos medem quanto da área disponível do imóvel rural está sendo explorada. A lei exige, no mínimo, 80% de exploração agropecuária sobre a área total. Menos que isso, vai para a reforma agrária. Aqui residiu o problema da fazenda em Selvíria. O grau de utilização da propriedade atingiu 68%, abaixo do requerido. Acabou classificada pela matemática agrária como “grande propriedade improdutiva”. Será mesmo um latifúndio?Longe disso. A fazenda é exemplar. Acontece que a avaliação não considerou efetiva a reserva florestal da propriedade. Conforme escrito no próprio laudo oficial de vistoria, a mata virgem de fato existe, facilmente comprovada ao simples olhar. Um tributo à biodiversidade.Mas não valeu. O governo resolveu desconsiderar a área mantida com floresta. Valeu-se do argumento de que ela, a reserva florestal, não estava averbada, quer dizer, escriturada, no cartório de notas. Numa manobra de caneta, a gleba natural, moradia de bichos, foi incluída no cálculo do GUT como “área aproveitável não utilizada”. Quer dizer, virou terra ociosa. Nesses termos, a fazenda acabou declarada improdutiva. Sua reserva florestal foi menosprezada, simplesmente porque, repita-se, embora real, não constava no papel da escritura, gravada, como o governo quer, com clausura de perpetuidade. A realidade sucumbiu à teoria agrarista.Acompanhar as palavras da proprietária permite entender o equívoco histórico da reforma agrária brasileira: “Estou entre aquelas pessoas que vêm sentindo na pele a fúria arrecadatória de terras pelo Incra.” Foi à luta: “Por não concordar com essa alegação, e mais ainda, por não pretender perder a minha propriedade para o Incra, especialmente baseado num argumento como esse, fomos (eu e meu marido) pessoalmente à sede do Instituto, em Campo Grande, na expectativa de que pudéssemos reverter tal quadro, uma vez que a reserva florestal existia de fato.”Continua a missivista: “Os engenheiros vistoriadores nos aconselharam a ir ao cartório e fazer a averbação da reserva legal, o que foi feito. Porém, qual não foi a nossa surpresa quando, na análise do recurso, o Incra argumentou que o ato formal não poderia ser, infelizmente, considerado, porque foi realizado em data posterior à vistoria.” Ora bolas, um logro.“Fizemos um recurso, ajuntando laudo de engenheiros por nós contratados e que avaliaram a mata existente em nossa propriedade como Floresta Estacional Decidual e Semi-decidual, portanto, um tipo de bioma componente da Mata Atlântica! Mantemos a mata não porque há uma imposição legal, mas porque somos preservacionistas. Entendemos que a propriedade rural é um pontinho dentro do Planeta Terra.” De nada adiantou espernear. Não é de hoje que estudiosos da questão agrária apontam a influência danosa da desapropriação de terras no desmatamento. Propriedades contendo remanescentes nativos do Centro-Sul foram sistematicamente invadidas por sem-terra, contando com a conivência do poder público. Mata continua sinônimo de terra improdutiva.Insuspeito relatório do Imazon, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, comprova que 15% do desmatamento daquela região vem da reforma agrária. Cerca de 106 mil quilômetros quadrados, 49% da área dos assentamentos mapeados, foram desmatados até 2004. Desde então, a situação somente piorou.Pertence à ideologia a origem dessa peçonha fundiária. A esquerda tradicional, ao historicamente combater o latifúndio, estimula a derrubada da floresta. A idéia produtivista ganhou forma jurídica no Estatuto da Terra, em 1964. Terra com mata virgem passou a significar coisa de especulador. A ordem era derrubar tudo, em nome do progresso no campo. Naquela época, quando nem se falava em ecologia, fazia sentido. Hoje, com o aquecimento global batendo às portas, novos conceitos se impõem. Definitivamente, floresta virgem não pode ser sinônimo de ociosidade. Produtores rurais preservacionistas, raros, deveriam ser homenageados, ao invés de desapropriados.“Hoje (22 de março) saiu o Decreto de desapropriação de minha propriedade rural. Dói ler. Temos ela há mais de 30 anos. É o sustento de nossa família. Dela saiu a educação dos nossos filhos e é dela que vivemos. Custa-me a crer que, para esse governo, a minha propriedade seja improdutiva, apesar de gerar empregos, utilizar adequadamente o solo e preservar o meio ambiente. Agora só nos resta a via judicial. Lamentavelmente, vamos gastar o que não dispomos no momento.”Dificilmente o tribunal lhe dará ganho de causa. Sorte dos sem-terra. Azar dos com-floresta. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, abril 10, 2007
Matemática agrária Xico Graziano
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