A pires de leite As autoridades federais responsáveis pela solução da pane do tráfego aéreo podem alegar tudo, menos surpresa com o endurecimento da posição dos controladores de vôo. Cevaram a crise a pires de leite - “como uma gata”, na expressão de Nelson Rodrigues - e onde só havia uma, produziram duas crises, nenhuma delas surpreendente: nem a militar, nem a aérea. Os avisos foram reiterados e materializados nos constantes problemas provocados nos aeroportos desde a primeira operação-padrão, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial. O presidente da República é o responsável maior. Não deu a atenção às inúmeras evidências de que em algum momento haveria um impasse, preferiu se preservar na posição de crítico da situação. Mas Luiz Inácio da Silva não é o único culpado. A Aeronáutica também tem sua parcela grande de responsabilidade. A menos que admitamos como verdadeira a hipótese de o comando militar desconhecer as razões agora muito claras das falhas sempre atribuídas a circunstâncias adversas: ora a falha de equipamentos, ora a doença de funcionários, ora as condições climáticas e até animais nas pistas dos aeroportos. Não era nada disso. O problema era, e continua sendo, o corte de verbas e a desorganização funcional do setor. Se a Aeronáutica encobriu a insurgência surda dos sargentos para não admitir que vigorava a quebra de legalidade entre os subordinados, foi cúmplice. Se ficou inerte por uma questão de hierarquia, não pode reclamar de ser incluída entre os responsáveis pelo lamentável ápice de sexta-feira passada. Durante os últimos seis meses todas as instâncias governamentais simularam controle (embora expressassem o descontrole em seus atos e declarações desencontradas) e, não raro, ironizaram a situação. O exemplo mais acintoso não foi nem o ministro da Defesa, Waldir Pires, e seus “estudos profundos” em busca de um diagnóstico escorado no “Estado Democrático de Direito”. Não foi também o então ministro das Relações Institucionais avisando no início de dezembro que o presidente Lula não resolveria a questão mediante “pressa neurótica”, nem mesmo a gerente da crise (assim nomeada a certa altura pelo presidente), Dilma Rousseff, recusando-se a comentar o assunto em público e despachando os interessados à Aeronáutica. O pior papel em matéria de descaso e devaneio tampouco foi exercido pelos líderes governistas no Congresso repetindo com convicção que a CPI do apagão aéreo seria desnecessária pois o governo já havia encaminhado devida e competentemente a solução. Vexame vistoso mesmo deu o novo ministro das Relações Institucionais, Walfrido Mares Guia, em sua estréia no cargo, dia 21 de março. Disse ele dez dias antes de os controladores suspenderem o tráfego aéreo no Brasil: “Não temos crise no setor aéreo, porque crise é quando você tem uma difícil solução. Nós temos problemas focados, cujas soluções estão em curso”. Quais seriam, não explicitou, e acrescentou: “As autoridades identificaram esses problemas e estão tentando resolver. À medida que as chuvas diminuam, tudo vai se acalmando e as falhas que já foram identificadas vão sendo resolvidas”. Sobre a necessidade de investigação a respeito dos acontecimentos, tranqüilizou: “Todas as informações para a CPI estão disponíveis. Não há informação que não tenha sido dada”. A quem? Se informaram ao presidente, ou passaram informações erradas, ou Lula não tomou providências porque não quis. Loquaz, Mares Guia arrematou: “É a lei de Murphy. Vai acontecendo uma coisa atrás da outra”. De fato, aconteceu uma coisa atrás da outra, todas devidamente deixadas de lado sem que o governo tenha explicado a razão. Em dezembro, por exemplo, aconteceu “uma coisa” bem representativa do modo como as autoridades lidaram com a crise. Os controladores de vôo cogitaram - e não fizeram segredo disso - uma operação-padrão para a véspera da posse do presidente Lula no segundo mandato, para forçar o governo a tomar uma posição frente às reivindicações. Na terça-feira, dia 12 de dezembro, os sindicatos dos controladores de vôo, das companhias aéreas e dos aeronautas apresentaram ao grupo interministerial que geria (?) a crise as seguintes propostas: sistema de controle compartilhado entre civis e militares; criação de carreiras de Estado específicas para controladores e aumento do repasse orçamentário aos fundos aeronáutico e aeroviário. Dois dias depois, 14 de dezembro, receberam do grupo interministerial a informação de que o ministro da Defesa ainda não levara a pauta ao exame do presidente da República. Decidiram, então, se retirar da reunião até que Lula dissesse o que pensava: se aceitava ou não as propostas ou se tinha outras sugestões. O governo respondeu? Não se sabe; os sindicatos recusaram, aceitaram, disseram o quê? Não se sabe. A única evidência inquestionável é que todos os envolvidos sabiam que havia uma questão posta, um movimento compartilhado de construção de dificuldades em andamento e ninguém fez nada. Portanto, surpresa nenhuma.
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Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, abril 04, 2007
Dora Kramer - Duas crises:a militar e a aérea.
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