Daniel Piza
O simplismo para explicar a popularidade de Lula também continua alto. Na semana passada, dois institutos divulgaram dados atualizados: a aprovação do governo no CNT/Sensus subiu e no Ibope caiu, mas curiosamente elas se encontram no mesmo número, 49%. Ou seja, metade da população acha que o governo é mais que regular, é bom ou até ótimo. A aprovação do presidente, em ambos, também continua acima da de seu governo (63%). E o recorte demográfico segue parecido em ambas e em relação ao que já se mostrava desde 2003, ainda que a popularidade já tenha passado de 85% ou caído a 45%. Mesmo assim, há quem se espante, principalmente os que previam sua derrota em 2006.
O único fato ocorrido entre as eleições de outubro e este início de abril foi a crise aérea, que mancha pouco a imagem do governo porque afeta pequena parcela da população - ao contrário do apagão energético do segundo governo FHC - e tem diversas causas, muitas delas sem contexto político direto. Não adianta lembrar que o governo cortou verbas e loteou cargos e não teve a menor competência para evitar esse semicolapso do sistema aeroviário. Tampouco adianta mostrar o descaso absurdo com que a crise vem sendo tratada, a tal ponto que a Anac rejeita sua mera existência. O comportamento 'aloof', literalmente avoado, de Lula e companhia é também estudado: quanto mais justificativas ele der, mais vai parecer culpado.
É tolo também retomar teses como a de um Brasil 'dividido'. É fato que a aprovação do governo é menor nas grandes cidades do sudeste, mas isso está longe de significar que dependa essencialmente do Bolsa-Família. A classe média apóia Lula. Mais ainda: como se vê na pesquisa CNT/Sensus, a camada com renda acima de 20 salários mínimos mensais lhe confere índice maior (51,9%) do que a inferior, dos que recebem de 10 a 20 salários (45%). Ricos e pobres nunca estiveram tão em sintonia. Para usar metáfora de futebol como ele gosta, Lula se apóia na esquerda e chuta com a direita.
A cesta de fatores econômicos - assistência social, inflação baixa, aumento do mínimo, comida barata, formalização de empregos, créditos especiais - também não contém tudo. Lula não reduziu a pobreza mais do que antecessores, e não à toa foi nesse quesito que levou agora um tombo de 13 pontos no Ibope. O crescimento segue em ritmo lento, o desemprego ficou em 10%, há muitos setores com pequenas empresas sofrendo bastante com a conjuntura (vide a invasão chinesa em têxteis e bugigangas). Só grandes empresas e bancos têm realmente aproveitado os bons ventos da liquidez internacional. No duro cotidiano, continuamos a pagar 8% de juros mensais no cheque especial, e a indústria sofre com câmbio valorizado e infra-estrutura dizimada.
O fator simbólico é mais importante do que se pensa. Lula não representa apenas uma dívida social que (não é de hoje) estaria começando a ser paga, mas sobretudo aquela que falta pagar. Às vezes me perguntam o que acho que vai ser o segundo mandato - digo 'vai ser' porque, como todos sabem, ainda não começou - e respondo que, salvo intempéries mais alarmantes, vai ser esse mesmo banho-maria. Aqui e ali coisas são feitas para agradar cada camada social. Para os mais pobres, ele é 'um de nós'; para os mais ricos, pelo mesmo motivo mantém cativas as esperanças dos mais pobres, sem mexer em nenhum de seus privilégios. Em todos os sentidos, Lula é o Brasil.
O medo sentido por ele, de sucumbir como Lech Walesa às engrenagens da máquina pública, já foi superado. Em termos simbólicos, ele simplesmente se descolou dessa máquina, assim como se descolou do PT e de seu passado 'radical' (afinal, criticou o Plano Real e as privatizações e agora usufrui de suas conseqüências). Fala dos problemas do Brasil - corrupção parlamentar e partidária, juventude abandonada, violência nas cidades, etc. - como se fosse mais um observador, e quase ninguém vê problemas nisso. É uma rainha da Inglaterra, claro que sem o senso de dever de dame Elisabeth.
É também muito mal criticado. Direitistas da velha e nova guarda o criticam com termos como 'bolchevique' ou 'chavismo', ou então - na maioria - aderiram à sua política tucana e aprimorada de combinar ajuda social e ortodoxia econômica. Poucos o cobram pela educação lamentável, pela falta de visão sobre a pesquisa científica e tecnológica, pela piora de serviços já ruins como a saúde e o saneamento, pela política corrupta e oligárquica que dizia combater. Movimentos sociais pedem reformas como a agrária, formadores de opinião insistem na previdenciária ou tributária... e Lula continua fingindo que ouve, para continuar decidido a não fazê-las. Se melhorou e melhora um pouco, já é muito - eis como pensam ele e os que o aprovam.
UMA LÁGRIMA
O que mais me encanta na literatura de Kurt Vonnegut, que morreu na quarta em Nova York, é a mistura de humor cômico, ficção científica, pós-modernismo autobiográfico e política contemporânea, tudo a serviço de narrativas que, embora controversas e inventivas, prendem o leitor como qualquer romance linear e ortodoxo. Parece que seu texto segue em pulso solto, mas na verdade é elaborado e detalhista. Mais do que Terry Southern, ele ultrapassou a sátira histórica e criou personagens em cuja solidão nos vemos. Sem ele não existiria Don DeLillo, por exemplo. Dos que li, Matadouro 5 e Jailhouse foram os que me marcaram justamente por essa mescla de gêneros e tons.
RODAPÉ
Ok, Terrorista, de John Updike, e Arthur & George, de Julian Barnes, são bem feitos, com as características de cada autor, para não falar suas repetições. Mas, se você quer duas dicas de ficção recém-traduzida em português, não perca Desesperados, de Paula Fox (Companhia das Letras), e O Mar, de John Banville (Nova Fronteira). São dois livros mais curtos (186 e 162 páginas respectivamente), mas que ficam muito mais com o leitor depois de concluídos.
Não é verdade que Paula Fox seja melhor que Saul Bellow, Philip Roth e mesmo Updike, como diz Jonathan Franzen no prefácio, mas ela tem um toque que faz pensar em Muriel Spark e John Cheever - uma sensibilidade pontilhista, capaz de associações inesperadas ('Tiquetaqueando dentro da carapaça de vida normal e de seus acordos rudimentares, estava a anarquia'), e ao mesmo tempo um intelecto maduro, que vê as ironias das escolhas. O livro é sobre um casamento maduro, entre a tradutora Sophie e o advogado Otto, no Brooklyn, e sobre como as concessões podem ressurgir com suas cobranças insolvíveis. Publicado em 1970, soa profético ao mostrar nas entrelinhas a degradação urbana.
O Mar, que desbancou Barnes no Booker Prize, também é extremamente bem escrito e sobre casamento. Mas de um jeito mais evocativo. O personagem, Max, crítico de arte, perdeu a mulher e decide viajar para a cidade de praia onde passava as férias de verão quando criança. Como Bonnard, pintor a quem se refere, usa uma linguagem de vibrações contidas, de 'meticulosa naturalidade', como 'num silêncio aquoso'. Os traumas do passado emergem e submergem em ondas, e a imagem final do livro é ao mesmo tempo um gesto de aceitação e ceticismo. Em John Banville, como em Paula Fox, o familiar é que é estranho.
DE LA MUSIQUE
Já estamos em abril e ainda continuo à procura de um bom CD de canções novas, seja de que gênero for. Experimentei escutar a banda Air, Pocket Simphony, mas achei sub-Radiohead, com um exercício de instrumentação eletrônica que é tudo menos uma sinfonia de bolso. O novo Guinga, Casa de Villa, tem aqueles achados harmônicos dele, mas as canções não 'pegam' e, infelizmente, ele não tem boa voz. Também fui conferir os elogios das críticas a 5:55, de Charlotte Gainsbourg, mas ela me pareceu mais uma dessas cantoras suaves que chamei outro dia de descafeinadas. Continuo com Tom Waits.
POR QUE NÃO ME UFANO
É muito curioso ler elogios a determinadas personalidades culturais, digamos assim, que são tratadas como se fossem a própria instituição que comandam ou representam. Mesmo quando se reconhecem seus defeitos de ética ou mérito, o argumento é que sem elas a tal instituição não sobrevive. Bem, uma boa instituição é justamente aquela que pode e deve sobreviver aos arroubos pessoais, especialmente quando autoritários; e um bom mandante é aquele que prepara a instituição para sobreviver aos ciclos e cismas. O personalismo brasileiro é ainda mais nocivo quando se confunde com supostas 'boas causas'.
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