Daniel Piza
Há quase dez anos, para provocar, fiz um texto perguntando onde estão os historiadores brasileiros, porque os poucos que existiam não davam conta da vastidão de assuntos por estudar e rever. De lá para cá a coisa melhorou um tanto. Francisco Doratioto fez o melhor livro sobre a Guerra do Paraguai, Robert Levine escreveu sobre Getúlio, Cláudio Bojunga biografou JK, Marco Antonio Villa perfilou Jango, Lira Neto lançou luzes e sombras sobre Castelo Branco, Elio Gaspari lançou quatro volumes fascinantes sobre a ditadura militar, etc. Há muitos outros temas merecendo releitura; na ocasião, citei ainda Farroupilhas, Canudos, República Velha, Jânio. Documentos e interpretações esperam em berço esplêndido.
Agora li uma revista mensal e um pequeno livro sobre dois assuntos sobre os quais já se escreveu bastante, mas que ela e ele mostram como ainda há o que descobrir e dizer. Ela é a Revista de História, da Biblioteca Nacional, sobre Tiradentes, e já está nas bancas. Ele é o livro Dom Pedro II, do excelente historiador José Murilo de Carvalho, da coleção Perfis Brasileiros, a ser lançado no final do mês. São dois dos temas que mais me fascinam na história do Brasil. Ambos envolvem não apenas fatos decisivos para o futuro, mas também símbolos, os quais ganharam lógica própria que nem sempre coincide com aqueles fatos. E ambos têm a ver com a noção de República adotada no maior país da América do Sul.
O ponto de partida da revista é o processo de Antônia Maria do Espírito Santo, amante de Tiradentes, em que ela reivindica a posse de uma escrava e seus dois filhos que estavam entre os bens arrestados do inconfidente quando preso. Ele teria doado a escrava à amante, e esta aproveita para se queixar de Tiradentes, que teria prometido se casar com ela e a engravidado. Alguns pesquisadores dizem que Tiradentes rompeu a promessa por causa do comportamento de Antônia, mas que reconheceu a filha e deu casa para a mãe. Para além de moralismos, os documentos parecem reforçar a imagem de Tiradentes como boêmio e falastrão, integrante pleno de uma elite escravocrata, que tinha rendas como alferes e dentista - e que, segundo outros inconfidentes, tinha ressentimentos por ter sido preterido na carreira e no movimento, do qual estava longe de ser o cabeça.
Em outras palavras, ele não era exatamente o mártir iluminista com face cristã que se pinta - que literalmente foi pintado como tal, segundo estudou Maria Alice Milliet em O Corpo do Herói (2001). Isso não é novidade. Outros livros como A Devassa da Devassa, de Kenneth Maxwell - entrevistado na revista, trinta anos depois do lançamento -, já tinham mostrado a supervalorização de Tiradentes. O próprio movimento, naquela paradoxal Vila Rica que era também a da arte religiosa e barroca de Aleijadinho, não pode ser comparado com revoluções da época como a americana e a francesa, que o inspiraram. Era mais uma revolta política contra o domínio imperial do que uma proposta de república brasileira livre e progressista. Além disso, transformado em herói nacional com mais ênfase depois de 1889, Tiradentes convinha bastante a uma República nascida de farda como a brasileira.
Aqui, a conexão com o império de d. Pedro II. O retrato de José Murilo de Carvalho mostra um rei muito culto e bem-intencionado, defensor incontornável da liberdade de imprensa, das artes e das ciências, que inclusive imaginava a monarquia constitucional como uma etapa necessária antes da República, devido à ausência de uma elite capaz de comandá-la sem anarquia. Este pensamento, que ele herdara de José Bonifácio, assimilado pelo 'patriarca da Independência' no chamado iluminismo português, influenciaria muitos intelectuais da segunda metade do século 19, como Joaquim Nabuco e Machado de Assis. D. Pedro II também era a favor do 'critério de mérito' no funcionalismo público e, sim, da abolição. Mas cessam por aqui as diferenças com a maioria de seus sucessores.
O hiato entre o homem e o governo é mais importante. O segundo reinado foi determinante para a unificação do Brasil, num período em que os vizinhos se esfacelavam em repúblicas, e, apesar das revoltas regionalistas, deu sensação de estabilidade. Mas tal sensação não impediu que o país fizesse o que fez no Paraguai. 'Pacifista radical por educação e convicção, d. Pedro se comportava como um beligerante radical. A justificativa para a intransigência (...) era sempre a honra do Brasil', escreve Murilo de Carvalho sobre a guerra no Prata. Posando de 'moderador', Pedro Banana deixou o republicanismo vicejar nas Forças Armadas. Admirador do progresso, investiu pouco em ferrovias e viu empresários como o Barão de Mauá quebrarem. Abolicionista, alimentou a crença de que a Lei do Ventre Livre, em 1871, fosse suficiente para acabar com a escravidão, 'mesmo que isso a prolongasse até o século 20'. Por último mas não em último, centralizou o poder, enquanto unidades da federação como São Paulo redesenhavam as forças produtivas.
Por essas contradições e demoras, a monarquia deu espaço para que a abolição implicasse em sua própria queda. Coube à República criar uma mitologia nova, ou renovada, a da 'ordem e progresso' e do Tiradentes redentor, para se distinguir do regime antigo. Foi ao longo do século 20, especialmente com os governos de Getúlio e JK, que a industrialização se desenvolveu e o Estado-Nação se firmou - que o Brasil teve, enfim, o que os países europeus e a América do Norte haviam tido no século 19. Mas a cultura monarquista não foi inteiramente superada: em grande parte a República perpetuou sua índole oligárquica, de acomodação dos privilégios, e a conseqüente dificuldade de mudanças mais agudas, sistemáticas, em vez da expansão lenta e gradual dos benefícios para a maioria.
Como Tiradentes, os autores do golpe republicano não tinham uma visão ampla e duradoura do que deveria ser uma república democrática moderna, capitalista, em que instituições como Exército e Igreja não excedam suas funções, em que a vida pública seja mais do que um prolongamento da família, em que os avanços não venham por piedade mas por justiça. Roberto Campos, com conhecimento de causa, dizia que no Brasil a 'res publica' é uma 'cosa nostra'; ou seja, que a coisa pública está repartida entre máfias que brigam, discutem e, ao final, se entendem. Ou se pode dizer que na república brasileira o público é tratado como uma rês. O Estado diz que cuida dele, só porque está interessado em sangrá-lo mais tarde.
RODAPÉ
Finalmente sai no Brasil o ótimo livro de David Sylvester, Sobre Arte Moderna (Cosac Naify, trad. Alexandre Morales), com textos sobre diversos artistas, na maioria da segunda metade do século 20. Ele é muito conhecido por seus trabalhos sobre Giacometti e Francis Bacon, nos quais defendeu um ponto de vista raro entre os críticos do pós-guerra: o de que a arte figurativa não estava morta. No Brasil dos anos 90, por exemplo, ainda se viam acadêmicos e jornalistas pensando a mesma coisa, tal foi o descaso com a morte de Bacon e com a última fase da pintura de Iberê Camargo, para ficar em apenas dois exemplos.
Sylvester também escreve muito bem sobre os mestres modernos, como Cézanne e Picasso, e sobre artistas vivos como Richard Serra e Leon Kossoff. Sobre Cézanne, que também vê numa síntese entre o apolíneo e o dionisíaco (a meu ver, especialmente nas naturezas-mortas), diz que arte não é apenas a mensagem, o tema, nem um mero arranjo de linhas e cores: 'Nossa consciência atravessa os objetos.' E sobre Bacon aponta essa confluência entre forma e conteúdo: 'Era um militante ateísta antiquado que parecia estar sempre à procura de pretextos para lembrar que Deus estava morto e martelar uns pregos a mais em seu caixão. No entanto, as pinturas de Bacon - especialmente os grandes trípticos - tendem a ter uma estrutura e uma atmosfera que as faz parecer como se pertencessem a igrejas'.
POR QUE NÃO ME UFANO
Governos, como pessoas, se revelam nas crises. Já faz mais de seis meses que aconteceu o maior acidente da aviação brasileira. Logo em seguida, uma série de acusações convenientemente precipitadas mostrou que o problema era bem maior do que um transponder desligado por americanos num jato executivo. O sistema todo, não por falta de aviso, estava à beira de um colapso: controladores de vôo sobrecarregados e desqualificados; equipamentos pifados ou ultrapassados; aeroportos além do limite de sua capacidade; desorganização; verbas cortadas; suspeitas de corrupção nas obras, etc. Os cidadãos passaram a ser submetidos à maior cadeia de desrespeitos que já se viu no setor.
Mesmo com tantos atrasos, cancelamentos e abusos, o governo não definiu um comitê para tratar da crise. O ministro, Waldir Pires, ficou sozinho na turbulência. Lula soltou algumas bravatas ('Quero tudo resolvido em 48 horas', disse há 4 meses) e nada fez. Agora, com a greve mais do que previsível dos controladores, cometeu outros três erros: prometeu anistia a eles, passando por cima das autoridades militares, que todo mundo sabe como encaram a quebra de hierarquia; anunciou a desmilitarização do setor, como se fosse fácil e rápido; depois recuou da anistia, passando a criticá-los como 'irresponsáveis' e 'traidores'. E ainda foi capaz de dizer, na quarta passada, que a crise estava resolvida... Enquanto isso, nenhum cidadão até agora recebeu a menor indenização pelos maus tratos e prejuízos sofridos. Afinal, é tudo 'burguês', não é mesmo?
E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br. Site: www.danielpixa.com.br