Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 14, 2007

Como aproveitar o fortalecimento do real

O real cada vez
mais forte

O fortalecimento da moeda brasileira diante
do dólar não é um soluço. É uma realidade
que tende a ficar e mudar para melhor a vida
das pessoas e o rosto da economia


Giuliano Guandalini

Fabiano Accorsi

NA PELE – A dermatologista paulista Juliana Okay quer se beneficiar do real forte para modernizar seu consultório. Ela negocia a compra de um aparelho americano que faz depilação a laser, cujo preço em reais caiu de 450 000 para 300 000 entre janeiro de 2003 e abril de 2007. A decisão de comprá-lo veio com o cálculo de quanto Juliana gasta por ano com o aluguel do aparelho e de quantos novos pacientes ela vai atrair com uma máquina permanentemente em seu consultório. Hospitais, clínicas e outros profissionais liberais também aproveitam o fortalecimento da moeda brasileira para se equipar


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• Um casal de classe média que pretendesse visitar a Disney World junto com os dois filhos teria de gastar, em 2003, o equivalente a dois meses de salário. Hoje a mesma viagem custa a metade.

• Uma dermatologista que quisesse equipar seu consultório com uma máquina de depilação a laser pagaria 450 000 reais pelo aparelho há quatro anos. Hoje o equipamento sai por 300 000 reais.

• Empresas brasileiras modernizam seus processos, compram máquinas novas e se associam a estrangeiros como raras vezes se viu.

• O governo praticamente recomprou toda a sua dívida em dólar.

• A entrada em massa no mercado brasileiro de produtos cotados em dólar e comprados em real forte tende a segurar a inflação, puxando todos os preços da economia para baixo.

Os fatos acima são facetas de uma única evolução, inédita e quase silenciosa, da economia brasileira, a valorização do real diante do dólar. A moeda brasileira subiu 58% em relação à americana nos últimos quatro anos, induzindo a uma mudança brutal no setor industrial e no padrão de consumo dos brasileiros. Desde o começo do ano o dólar recuou 5% e sua cotação já beira a barreira dos 2 reais. Essa marca é chamada de "barreira psicológica" – ou seja, as pessoas assumem que se chegar a 2 reais o dólar deve continuar caindo a um ritmo ainda mais forte. Muita gente, os consumidores principalmente, torce por isso. O real valorizado aumentou o poder de compra dos brasileiros. O fenômeno derrubou os preços dos produtos importados ou cotados em dólar. Pequenos empresários e profissionais liberais conseguem estudar no exterior e investir em seus negócios, importando equipamentos de última geração. Hospitais compram novos aparelhos e fábricas aproveitam o bom momento para modernizar seu parque industrial. "A julgar pela revolução das contas externas, o Brasil é hoje um outro país", diz Walter Molano, sócio do banco de investimentos americano BCP Securities, especializado em América Latina. Para Molano, os ventos deverão seguir favoráveis nos próximos anos, em decorrência da ascensão chinesa e também da Índia.

Tudo isso pode parecer familiar aos brasileiros. Afinal de contas, o país já viveu outros momentos de fortalecimento cambial. Mas há uma mudança estrutural em curso, e ela veio para ficar. O Brasil caminha, como nunca antes, em sintonia com a economia mundial. Ainda que fatores conjunturais ou momentos especulativos possam aparecer no horizonte, o fato é que a estabilidade do real se dá pelo fortalecimento de alicerces econômicos internos que se mantêm intactos há treze anos. Não se trata de um soluço, mas de uma realidade que tende a perdurar. A inflação caiu a níveis civilizados, a dívida externa deixou de ser problema e as contas públicas foram ajustadas. Pela primeira vez na história o governo brasileiro deixou de ter uma dívida externa para tornar-se credor externo. Esse amadurecimento institucional permitiu ao país adotar um regime de câmbio flutuante, no qual as cotações das moedas oscilam livremente de acordo com a lei da oferta e da procura. Quando um país vai bem, ele atrai investimentos e sua moeda ganha força. É o que tem acontecido no Brasil. O governo perdeu a prerrogativa de determinar a taxa de câmbio. No passado, o governante de plantão interferia nas cotações para beneficiar esse ou aquele setor. Em todo o mundo, tal modelo fracassou e foi abandonado, porque trouxe endividamento, inflação e baixa produtividade. A economia brasileira virou essa página e tornou-se sólida o bastante para ingressar em uma nova fase de prosperidade.

Lailson Santos
O PÉ-DE-MEIA DA PRODUTIVIDADE
Poucos fabricantes foram tão ameaçados pela competição chinesa quanto os de meias. Como reagir? A Lupo usou o real forte para renovar seu parque industrial. Deu certo. O crescimento da empresa subiu de 9%, em 2003, para 21% em 2006

Transformações estruturais como essa não são novidade na economia mundial. São vários os exemplos históricos de inovações que alteraram profundamente o modo de produção ao longo do tempo, substituindo modelos antiquados por novos paradigmas. Os computadores condenaram à morte as fábricas de máquinas de escrever, impulsionaram ganhos de produtividade em todo o mundo e criaram milhões de empregos. Seu impacto, para o conjunto da economia, excedeu com folga a perda ocasionada pela derrocada da indústria da datilografia. Inovações tecnológicas e institucionais costumam ser os motores dos ciclos econômicos – a descoberta do fogo, a invenção da máquina a vapor, a criação da linha de montagem, a revolução das telecomunicações. Tal fenômeno ficou conhecido como "destruição criativa", conceito introduzido pelo economista austríaco Joseph Schumpeter em 1942, em seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia. As revoluções não precisam ser necessariamente tecnológicas. Podem ser também trabalhistas, como a que ocorre atualmente graças à China e à Índia. O mundo todo passa por uma nova distribuição de forças, processo do qual o Brasil não escapará ileso – mas do qual tem tudo para beneficiar-se, a despeito do prejuízo de certas atividades que não terão como se manter competitivas nesse novo ambiente.

Por ora, o saldo tem sido positivo para o Brasil. Sinal disso é que o real se tornou hoje uma moeda forte e estável, e não artificialmente sobrevalorizada, ao contrário do que ocorreu na fase inicial de combate à hiperinflação do Plano Real, quando o regime de câmbio era fixo. Desde a adoção do câmbio flexível, em 1999, as vendas externas cresceram rapidamente e o Brasil, que tinha um saldo negativo na sua balança comercial, começou a ter grandes superávits. Contribuiu para isso também o forte crescimento do comércio mundial no período, liderado pela China, o que elevou a demanda e os preços das commodities vendidas pelo Brasil – produtos como soja e minério de ferro. Em 1999, o Brasil exportou apenas 48 bilhões de reais. No ano passado, foram mais de 137 bilhões. Há dez anos, a balança comercial tinha déficits superiores a 6 bilhões de dólares ao ano. No ano passado, houve um superávit de 46 bilhões de dólares. Com esse saldo nas contas externas, há dólares de sobra na economia, o que enfraquece a cotação da moeda americana e fortalece o real. Trata-se de uma situação inédita na história recente do Brasil. Nas últimas três décadas, as principais crises do país estiveram associadas justamente à falta de dólares.

Milton Michida/AE
Silvio Avila
DARWINISMO INDUSTRIAL – Um desafio, duas respostas. A Samello, de Franca (SP), sucumbiu à concorrência chinesa e teve de parar sua produção. Já a Anzetutto, de Novo Hamburgo (RS), investiu em designs exclusivos e agregou valor à marca. Com isso, ampliou sua exportação

Os mais céticos custam a aceitar que o país mudou de patamar e afirmam que a valorização do real nada mais é do que um reflexo dos altos juros brasileiros, que, segundo eles, atraem capital especulativo e distorcem o câmbio. Mas essa é a visão de uma minoria. Opiniões à parte, o fato é que os investidores dos mercados financeiros nunca depositaram tanta confiança na estabilidade monetária de longo prazo no país. Nesses mercados, apostas erradas podem custar prejuízos de bilhões de dólares, por isso não há indicador mais sensível da avaliação da economia do país. E o que dizem esses investidores? O Brasil goza de uma respeitabilidade inédita. Já consegue emitir títulos de longo prazo, com vencimentos de 45 anos, e a juros cada vez menores. Se os investidores não confiassem no país, não comprariam um papel de vencimento tão longo. Em momentos de crise, para se ter uma idéia, ninguém se dispunha a financiar a dívida pública, e a saída foi emitir títulos com vencimento diário – sim, de um único dia, tal a desconfiança em relação ao país. Pudera. Nos últimos 45 anos, o Brasil enfrentou o choque do petróleo, a crise da dívida externa, o confisco da poupança e períodos de hiperinflação. Entre 1967 e 1994, o país teve sete moedas. A estabilidade veio depois de onze planos econômicos malsucedidos e duas moratórias. O último estresse financeiro ocorreu em 2002, quando o temor dos investidores diante da perspectiva de um governo petista provocou uma fuga de capitais e empurrou a cotação do dólar para perto de 4 reais. Nos últimos quatro anos, o país reconquistou a confiança internacional e o real foi a moeda que mais se valorizou na comparação com o dólar em todo o mundo (veja quadro).

Parte dessa valorização recorde também se deve ao contexto mundial do enfraquecimento do dólar. Nos últimos quatro anos, tem havido dois movimentos concomitantes: de um lado, o real ganha credibilidade e musculatura; de outro, o dólar perde valor em todo o mundo. Afirma Alexandre Maia, economista da GAP Asset Management: "Em quase todo o mundo, o dólar tem perdido valor, resultado de um ajuste gradual do déficit comercial dos Estados Unidos". Isso ajuda a entender por que o real pode parecer apreciado diante do dólar, mas está longe de exibir uma ultravalorização ante outras moedas. De acordo com estatísticas do Banco Central, a cotação do real está hoje dentro de sua média histórica dos últimos vinte anos, levando-se em conta a comparação não apenas com o dólar, mas também com uma cesta de moedas dos países com os quais o Brasil mantém relações comerciais. "Não há evidências de que o real esteja valorizado, pelo contrário", diz Darwin Dib, economista do Unibanco. "Se é fato que alguns exportadores perderam rentabilidade, o setor de serviços saiu ganhando. E os empregos criados pelo setor de serviços são tão nobres quanto os perdidos por algumas indústrias."

O fato é que a destruição criativa por que passa a economia brasileira deixará feridos e vítimas fatais. Principalmente num país com juros e carga tributária pornográficos, como os brasileiros. Mas também é verdade que a situação cria um processo de darwinismo industrial por meio do qual alguns, os mais competentes, conseguirão se salvar. Exemplo disso é a fabricante de brinquedos Estrela. Em 1996, a invasão de produtos chineses quase obrigou a empresa a fechar as portas. Foram dez anos de ajustes para retomar o passo, mas funcionou. No ano passado, seu presidente, Carlos Tilkian, comemorou o aumento de 40% no faturamento. Como a Estrela escapou da guilhotina chinesa e do real fortalecido? "Deixamos de vê-los como ameaça e passamos a encará-los como aliados", diz ele. Hoje, um terço dos produtos que levam a marca da Estrela é fabricado na China. A empresa envia o projeto e mantém a qualidade de seus brinquedos. Como os custos produtivos chineses são muito mais baixos, o produto final chega ao Brasil custando 35% menos. Quando o real se desvaloriza um pouco, a empresa pode mudar o foco de sua produção para o Brasil. Trata-se da versão industrial do flex fuel, aquele motor movido tanto a gasolina quanto a álcool – neste caso, a qualquer tipo de câmbio. A Estrela não foi a única. A têxtil Coteminas, do vice-presidente José Alencar, também vai abrir uma fábrica na China. Outras, como a fabricante de meias Lupo, aproveitam o momento de dólar em queda para importar máquinas, aumentar sua produtividade e fazer produtos com maior valor agregado.

Esses são apenas alguns exemplos de como é possível sobreviver e crescer nesse novo ambiente econômico. O problema é que há um limite para os ganhos de produtividade. Cedo ou tarde, os empresários brasileiros acabam esbarrando em velhos e conhecidos obstáculos – alto custo de contratação do trabalhador formal, sistema tributário perverso, gargalos na infra-estrutura, falta de mão-de-obra qualificada, entre outros. Com o dólar nas alturas, essas barreiras permaneceram disfarçadas. Agora que o real retornou a um patamar de equilíbrio, tais mazelas ficaram mais evidentes. Antes de buscar artificialismos cambiais para despistá-las, o país deveria contorná-las quanto antes. Felizmente, o governo se convenceu de que o dólar barato veio para ficar. Por isso estuda medidas que possam compensar a perda de rentabilidade das indústrias voltadas para a exportação. Entre outras iniciativas, procura uma maneira de reduzir os encargos trabalhistas. Com essa boa notícia, o governo rejeita as pressões para elevar as tarifas de importação, o que, a pretexto de proteger setores econômicos ameaçados, isolaria o país do melhor momento da economia mundial em décadas.

Isso não significa que o governo não deva observar atentamente o câmbio. Se no passado a fuga de capitais tirava o sono de autoridades econômicas brasileiras, hoje elas precisam lidar com uma enxurrada de dólares, algo inédito. Para atenuar o tombo do dólar, o BC tem comprado grandes quantidades da moeda americana e ampliado as reservas internacionais do país – em 2000, o Brasil chegou a ter menos de 30 bilhões de dólares em suas reservas de moeda forte e hoje elas já passam de 110 bilhões de dólares. Com esse colchão de segurança, mais o saldo superior a 40 bilhões de dólares na balança comercial, o BC pode seguir sua trajetória de queda de juros sem que haja o risco de reaquecimento inflacionário. Esse é mais um benefício da estabilidade e do real forte. Um ou outro setor pode sair perdendo com o aumento das importações, mas isso permite que o consumo e o crédito possam crescer rapidamente sem que haja remarcação de preços.

Então o dólar seguirá irreversivelmente em queda? Não necessariamente. O câmbio é flutuante e oscila de acordo com o fluxo de recursos. Se houver uma crise, os investidores poderão retirar parte das aplicações feitas no país, o que elevaria a cotação do dólar – mas nada similar às hecatombes financeiras do passado. O que aumenta a segurança dos investidores é que não só o Brasil, mas a grande maioria dos emergentes passou por ajustes. Como afirmou o economista indiano Raghuram Rajan, da Universidade de Chicago, em entrevista a VEJA: "Grande parte dos emergentes tem hoje uma situação muito mais saudável do que na década passada. Um dos motivos para isso é que boa parte deles tem hoje câmbio flexível, controla a inflação, solucionou o problema da dívida e acumulou grandes reservas". O Brasil figura com brilho na lista desses países mais bem protegidos.

UMA SALVADOR DE VIAJANTES

Garoto-propaganda: dólar barato vira chamariz para vender pacotes turísticos

Nunca antes na história deste país, para usar a famosa frase de efeito do presidente Lula, os brasileiros foram tanto ao exterior. O próprio Lula deu o exemplo: fez uma média de 1,35 viagem internacional por mês, contra a média de 0,85 do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O presidente não esteve sozinho nessa busca crescente por integração. Estima-se que 5,7 milhões de brasileiros tenham visitado outro país no ano passado. Recorde histórico, esse número inclui não só turistas, mas também viagens por motivo de trabalho, saúde ou educação. Comparado ao registro de 2003 (3,2 milhões de viagens), ano em que o real começou sua trajetória sólida de valorização, barateando passagens internacionais, hotéis no exterior e gastos em dólar no cartão de crédito, houve um acréscimo de 2,5 milhões de viajantes – contingente comparável a toda a população de uma metrópole como Salvador. Os gastos de brasileiros no exterior também foram recorde em 2006: 5,7 bilhões de dólares, o equivalente ao orçamento anual de programas como o Bolsa Família. Esse fenômeno elevou a acirrada competição entre as operadoras de turismo, que, com anúncios focados na valorização do câmbio, baratearam ainda mais os pacotes mais vendidos – para Buenos Aires, Bariloche, Madri, Santiago, Disney, Isla Margarita, Paris, Nova York, Miami e Caribe.

Cíntia Borsato

COM O PRESTÍGIO INABALADO

A mais recente rodada de pesquisas sobre a popularidade do presidente Lula surpreendeu quem imaginava que o apagão aéreo causaria estragos na imagem do governo. Um dos levantamentos, produzido pelo instituto Sensus, revela que a aprovação pessoal do presidente aumentou de 59,3% para 63,7% em relação à pesquisa anterior, divulgada em agosto do ano passado. A aprovação do governo é ainda mais surpreendente. Metade dos entrevistados avalia como positiva a gestão petista, um apoio inédito em quatro anos de mandato. Outra pesquisa, realizada pelo Ibope, mostrou uma pequena queda na avaliação do governo em relação a um levantamento mais recente do próprio Ibope, mas ainda assim a aprovação é muito alta – e praticamente igual à aferida pelo Sensus. A divulgação produziu interpretações variadas para o inabalável prestígio presidencial. Uma delas informa que a popularidade de Lula se mantém alta porque a quantidade de eleitores que viajam de avião é irrisória. Outra atribui os bons números ao seu carisma e à sua habilidade para se comunicar com as massas. É certo que tudo isso contribui, mas a lua-de-mel de Lula com o eleitorado se deve, fundamentalmente, à safra de boas notícias econômicas.

A história ensina que não há carisma que sobreviva a uma economia em frangalhos. O ex-presidente Fernando Collor viu sua aprovação cair à metade no primeiro ano de mandato por causa de um desastrado confisco e da disparada da inflação. Já a aprovação de seu sucessor, Itamar Franco, saltou de 16% para 37% em 1994, num período de apenas quatro meses, graças aos efeitos do Plano Real. O ex-presidente Fernando Henrique também experimentou a relação entre popularidade e desempenho da economia. Em 1999, quando as crises que sacudiam o mundo chegaram ao Brasil, sua popularidade desabou de 45% para 22% em quatro meses. Lula vive o efeito inverso. "O ambiente econômico é extremamente positivo, sobretudo para os mais pobres. A renda deles já registrou picos de crescimento de até 12%. Isso significa que há uma parcela dos brasileiros vivendo na China", diz a cientista política Fernanda Machiaveli, da Tendências Consultoria. O bom humor do mercado também parece ter contaminado o cidadão comum. Embora a maior parte dos eleitores ache que emprego, saúde e segurança pública pioraram e que a renda está estagnada, a maioria acredita que tudo vai melhorar nos próximos seis meses.

Foto: Ed Ferreira/AE

Alexandre Oltramari

Fotos: Pedro Rubens/Alfredo Franco e divulgação

Com reportagem de Julia Duailibi, Cíntia Borsato, Fábio Portela e Leoleli Camargo

Fotos: Edison Russo/divulgação


Cuba e Dubai:
dois caminhos para o capitalismo

Tão distantes e tão diferentes, ambos poderão alcançar
a mistura certa de liberalismo econômico e democracia


Maílson da Nóbrega visitou Cuba e Dubai recentemente, com intervalo de duas semanas. Eis suas reflexões sobre o que viu e leu.

"Ao despedir-se dos turistas na fábrica da Partagas em Havana, o guia recomenda que comprem muitas caixas de charutos. "Será um bom investimento." Espera o ar de dúvida e complementa com humor: "Como os americanos voltarão a comprar, os preços vão subir". Essa visão capitalista – que antecipa prováveis mudanças em Cuba – é a mesma que orienta a notável expansão de um emirado do outro lado do mundo, Dubai.

A capital cubana é o retrato da economia socialista. Estão ausentes os incentivos ao investimento privado, à inovação e aos ganhos de produtividade, que são os verdadeiros motores do crescimento sustentado. Vêem-se muitos prédios decrépitos e automóveis antigos, mas nenhum guindaste de construção civil.

Por sugestão de amigos que haviam visitado Cuba, contratei um táxi para os meus dias na ilha. O motorista-guia é professor de economia da Universidade de Havana, onde ganha o equivalente a 40 dólares por mês. Ex-diplomata, fala cinco idiomas. As gorjetas em "pesos convertibles" superam em muito o salário oficial e permitem o acesso a lojas de importados, onde pode adquirir produtos estrangeiros e superar as agruras do racionamento de comida.

Enquanto dirige o táxi estatal, nosso guia fala dos feitos da revolução e das mudanças em curso. Informa que o setor privado já domina 15% da economia, mas os restaurantes e outras pequenas empresas só podem empregar a família. Nos hotéis estrangeiros, os trabalhadores são funcionários públicos. Imagino que é a maneira de evitar a "mais-valia", a suposta exploração do homem pelo homem. Na realidade, a abertura era inevitável depois da perda dos 4 bilhões de dólares anuais da União Soviética. O prurido marxista é uma desculpa, pois metade do PIB já vem do turismo. A associação com uma empresa francesa aumentou a eficiência na produção do rum Havana Club e decuplicou as exportações.

Nosso taxista é orgulhoso dos avanços na educação e na saúde, mas afirma que o desenvolvimento exige mais. "O melhor seria o caminho chinês, e Raúl Castro poderia ser o Deng Xiaoping cubano", diz, com jeito de bem informado. A experiência da Europa Oriental ensinaria como resolver a questão das propriedades confiscadas pela revolução.

O guia da Partagas parece refletir as conversas deste momento em Cuba. Nosso taxista diz que na sua faculdade 90% dos intelectuais discutem saídas para a transição. Certamente, muitos sonham melhorar suas vidas com pequenos (e talvez grandes) negócios. Ele mesmo planeja atuar no turismo assim que a abertura vier (com empregados, claro), mas é paciente. "Assim como na China de Mao, a mudança virá depois de Fidel."

Dubai, a capital do emirado de mesmo nome, já é capitalista, mas se assemelha a Cuba no lado político: não é uma democracia. No ranking da Economist Intelligence Unit, ambas são consideradas regimes autoritários. Curiosamente, o lugar de Cuba na lista geral (124) é melhor do que o dos Emirados Árabes Unidos (150), dos quais Dubai é parte.

Antes de obter o visto, fui informado de que são barrados pelo serviço de imigração os israelenses ou quem tiver no seu passaporte um carimbo de entrada em Israel. Apesar disso, Jacob Frenkel proferiu a palestra de abertura da conferência promovida em Dubai pelo AIG Global Investment Group. Frenkel é israelita e presidiu o Banco Central de Israel. A explicação pode ser simples: como Dubai busca se consolidar como o maior centro financeiro do Oriente Médio, cuja posição cabia a Beirute antes da guerra civil de 1982, barrar a entrada de Frenkel, conceituado economista, professor de Chicago e ex-diretor de pesquisas do FMI, seria um erro estratégico contra os objetivos do país.

Esse pragmatismo incorpora um cálculo econômico, e não religioso. Dentre os emirados, Dubai não é dos mais contemplados com o petróleo, que logo vai se exaurir. A saída para preservar seu alto padrão de bem-estar é o capitalismo, incluindo a atração do investimento estrangeiro e o caminho sem retorno ao liberalismo econômico. A modernização de Dubai é intensa, mas o governo federal não fica atrás. A ministra da Economia é uma mulher, Lubna Al Qasimi, que em entrevista recente (www.mckinseyquarterly.com) enfatiza o mercado de capitais e diz que o investimento estrangeiro "transfere conhecimento e expertise em áreas que não são o forte do país".

Dubai triplicou de tamanho nos últimos vinte anos. Imagina-se que vá duplicar nos próximos dez anos. A decisão de seus xeques, de transformá-lo em um centro de turismo, serviços e finanças, incrementado por investimentos imobiliários, foi acertada. Dubai é um gigantesco canteiro de obras. Em um mesmo lugar, contaram-se cinqüenta guindastes, um recorde mundial. Sua rede de restaurantes e hotéis impressiona, incluindo o já famoso Burj Al Arab, em forma de vela de barco. Está em construção ali o maior edifício do mundo, o Burj Dubai, com 160 andares e duas vezes a altura do Empire State. O metrô será o mais automatizado do planeta. A Dubailand e suas atrações pretendem ter o dobro do tamanho da Disneylândia.

Sem dispor de pirâmides, museus famosos, ruínas romanas ou locais santos, Dubai consegue atrair milhões de turistas. Estima-se que receberá 15 milhões de visitantes em 2010, mais de dez vezes sua população atual. Para tanto, possui excelente infra-estrutura aeroportuária. Mais de noventa empresas aéreas já operam em seu território. Dubai é cosmopolita. Estrangeiros compõem 85% da população. O árabe é a língua oficial, mas fala-se inglês em todos os lugares. O respeito às tradições, ao modo de vestir e a outros costumes locais é preservado, mas os trajes ocidentais predominam.

Dubai tem economia diversificada e já se transformou no segundo maior centro de reexportação de produtos industriais depois de Cingapura. O petróleo representa apenas 5% do PIB. Além da estabilidade política e econômica, não há miséria e são muito baixos os níveis de criminalidade. Suas empresas despontam nos mercados mundiais. A DP World ganhou concorrência para atuar nos principais portos dos Estados Unidos, mas foi deliberadamente barrada diante de temores no Congresso.

Cuba pode chegar à democracia antes de Dubai, mas ainda não é claro se vai mesmo caminhar para a economia de mercado, apesar da crescente percepção de que isso será inevitável. O socialismo se torna insustentável pelas mesmas razões que o levaram a desmoronar na Europa e na China, isto é, sua incapacidade de gerar riqueza e bem-estar no ritmo do Ocidente. A saída deve demorar a aparecer. Fidel ainda dá sinais de vida e de insensatez, como no brado recente contra o etanol, que segundo ele matará bilhões.

Condições para a construção de uma economia capitalista em Cuba existem. Segundo Julia Sweig, do Council on Foreign Relations, "embora infestada por uma corrupção crescente, Cuba dispõe de uma burocracia profissional, de militares testados em batalhas, diplomatas capazes e mão-de-obra qualificada. Os cubanos são altamente instruídos, cosmopolitas, saudáveis e dotados de infinita capacidade empresarial" (Foreign Affairs, jan./fev. 2007). Uma das maiores especialistas americanas em assuntos cubanos, Julia Sweig fez 84 visitas à ilha e se reuniu algumas vezes com Fidel. Os círculos que ela freqüenta por lá reconhecem a necessidade de resolver a baixa produtividade e a ineficiência na atividade produtiva. O caminho é óbvio.

Dubai depende de si própria para continuar prosperando sob o sistema capitalista e talvez iniciar uma transição rumo ao regime democrático. Cuba depende de um líder com visão de futuro, paciência e persistência para guiá-la na direção do binômio democracia-economia de mercado, mas também das atitudes do governo americano. Depois do colapso soviético, Cuba deixou de ser um problema de segurança e se tornou uma questão política doméstica, por causa dos votos cubanos na Flórida e das pressões de grupos anticastristas para o endurecimento das relações com Fidel. O sucesso da transição dependerá muito de ganhos de racionalidade na política externa dos Estados Unidos em relação a Cuba.

Nem todos se conformarão com essas duas transições. A velha esquerda latino-americana dificilmente aceitará que o comunismo de Fidel tenha sido apenas um caminho mais longo para chegar à economia de mercado. Mike Davis, em artigo de 2006 na New Left Review (http://newleftreview.org), vê ameaças no progresso estonteante de Dubai. Para ele, os atuais aplausos de bilionários e multinacionais, seus supostos beneficiários, podem desaguar em um retorno a um pesadelo do passado. "Speer (o arquiteto do III Reich) encontrará Disney nas praias da Arábia."

Na verdade, Cuba e Dubai têm tudo para construir uma combinação bem-sucedida de democracia e capitalismo. O futuro dirá."

Maílson da Nóbrega é ex-ministro
da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria Integrada

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