Miguel Reale Júnior
A legislação penal brasileira sofre de falta de sistematização, vitimada por desarmonia e grave esquizofrenia: excesso de rigor ou de benevolência.
O sistema de penas no Código Penal de 1940 era rígido. Na maioria dos crimes, a pena privativa de liberdade não podia ser suspensa. Mesmo uma condenação a um ano de reclusão por crime de cheque sem fundos tinha de ser integralmente cumprida.
Foi criação jurisprudencial, em 1970, a instituição da “prisão albergue”, pela qual se evitava o encarceramento em condenações de até quatro anos de reclusão, devendo o condenado trabalhar em liberdade durante o dia e recolher-se à noite e nos fins de semana em estabelecimento prisional.
Em 1977, a Lei nº 6.416 permitiu a suspensão da pena, sursis, nas condenações até dois anos de reclusão e consagrou a prisão albergue. Em 1980, foram constituídas comissões, de que participei, para elaboração de nova parte geral do Código Penal e da Lei de Execução Penal, vigentes desde 1984.
Qual o sistema de penas adotado? As penas de até um ano de reclusão podiam ser substituídas por penas restritivas de direito, como prestação de serviços à comunidade. Para as penas de até dois anos de reclusão é possível conceder o sursis, a suspensão condicional, com a condição do cumprimento, no primeiro ano de suspensão, de uma pena restritiva.
Por essa solução, o sursis, cabível às penas de até dois anos, traz embutido a obrigação de uma pena restritiva, como a prestação de serviços à comunidade por um ano, consistente em trabalhar por dez horas semanais em entidade assistencial. Permite-se, em caso excepcional, que o sursis seja concedido unicamente com a obrigação de comparecimento mensal a juízo.
Às penas de até quatro anos de reclusão se possibilita que o cumprimento se dê, a critério do juiz, no regime de prisão albergue.
As penas de até oito anos, também a critério do juiz, podem ser efetivadas em regime semi-aberto, ou seja, em prisões agrícolas ou industriais, nas quais o condenado fica permanentemente recolhido, podendo sair eventualmente para visita à família nos fins de semana. Já para penas superiores a oito anos o regime fechado é obrigatório.
O juiz possui, no amplo quadro da lei, elevado poder discricionário, pois lhe cumpre dizer livremente o regime inicial a ser aplicado no caso concreto. Em uma hipótese pode determinar o cumprimento em regime fechado ou semi-aberto a uma condenação a dois anos de reclusão; em outra, impor a uma condenação de quatro anos a prisão albergue. É o que denomino de pena à la carte.
Contrariamente à minha opinião, a passagem do sistema fechado para o semi-aberto foi fixada em um sexto da pena e o livramento condicional para primários, em um terço da pena, sendo exigida metade do tempo para reincidentes.
Em 1998, foi aprovado projeto de lei, elaborado por secretários de Justiça, que ampliou a aplicação das penas restritivas a penas de até quatro anos de reclusão. Criou-se também a pena de prestação pecuniária, a cesta básica. Queriam esvaziar os presídios, mas os beneficiários não estavam presos, estavam em prisão domiciliar.
O sistema de penas de 1984, alterado em parte em 1998, não veio a ser cumprido pela administração pública e pelos juízes. O que ocorreu?
Houve resistências à aplicação das penas restritivas, que são, como mostra a experiência do Rio Grande do Sul, benéficas ao condenado e à sociedade. Em vez de pena restritiva ou sursis, com pena restritiva no primeiro ano de suspensão, passou-se a aplicar a medida excepcional do sursis unicamente com a exigência de comparecimento mensal a cartório.
As casas de albergado não foram implementadas, em razão do que, mesmo proibido, se adotou o cumprimento da prisão albergue na própria residência, fragilizando-se a resposta penal, até porque o recolhimento domiciliar não sofre nenhum controle. Como também não se construíram colônias agrícolas ou industriais, converteu-se o regime semi-aberto, que deveria privar a liberdade, em prisão albergue, com pernoite no presídio. A repressão penal foi para o ralo.
Por outro lado, a Lei nº 9.099, de 1995, permitiu a conciliação ou a transação para crimes cuja pena máxima não seja superior a dois anos. Milhares de delitos menores, antes filtrados nas delegacias, começaram a vir ao fórum, registrados em termos circunstanciados que nada esclarecem. Os promotores determinam, em geral, a intimação do autor do fato a comparecer a audiência de conciliação. Por não terem os juízes tempo para encaminhar a conciliação, passa-se à transação penal, constrangendo-se o presumido autor a aceitar uma pena sem processo, normalmente pagamento de cesta básica ou a vítima a desistir do processo.
Assim, pune-se o inocente, extingue-se o processo do culpado ou se lhe aplica ridícula reprimenda. O sistema é o da injustiça célere.
Ademais, editam-se, em defesa de múltiplos interesses ou a cada fato chocante, leis penais rigorosas, numa barafunda, como se o Direito Penal fosse uma panacéia.
Presidi comissão que elaborou reforma do sistema de penas que se encontra faz cinco anos no Congresso. Por nossa proposta, elimina-se o sursis, a prisão albergue, privilegiando-se a imposição de pena restritiva, especialmente a prestação de serviços à comunidade, agora aceita pela administração e, em grande parte, pelo Judiciário. A repressão passa a ser efetiva.
Pela proposta, a passagem do sistema fechado para o semi-aberto cabe tão-só após um terço da pena, e o livramento condicional, se cumprida metade da pena. O projeto foi recentemente examinado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que o considerou meritório de apoio em eventual mudança legislativa.
Neste quadro esquizofrênico, é preciso pôr ordem na casa, desfazer a balbúrdia penal, que desatende à sociedade e envergonha o nosso Direito.
Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça